
Gasto ou investimento?
| Somir | Des Global | 4 comentários em Gasto ou investimento?
Conversando com a Sally sobre o tema da USAID, eu levantei uma dúvida que tinha sobre o valor das ações americanas ao redor do mundo. Muitas coisas parecem bizarras, especialmente considerando o uso de dinheiro público, mas por que fizeram por tantas décadas? Será que é puro desperdício?
Tempo de leitura: mais de um século
Resumo da B.A.: a gente é nacionalista, tá okay? Então a gente se preocupa primeiro com os Estados Unidos e depois com o nosso país, forte abraço!!
Sobre o ponto que ela levantou que cada país que decida onde usar seu dinheiro e que é ridículo considerar os EUA como “obrigados” a continuar distribuindo dinheiro ao redor do mundo, eu concordo. Essa mentalidade de considerar caridade como direito não é uma expectativa realista. Ajuda é ajuda. Se você misturar as coisas, pode acabar se acomodando numa situação precária sem um plano B.
O meu ângulo aqui é outro: do ponto de vista de quem doa bilhões para combater a fome em países muito pobres ou até mesmo financia óperas trans na Colômbia… qual é a lógica por trás de tirar dinheiro do seu país para colocar em ações de caridade e fomento cultural em outros lugares que nem pagam imposto para você?
Bom, a primeira coisa a se mencionar é o conceito de Soft Power, a estratégia de projetar a imagem e a influência do seu país sobre outros sem usar táticas agressivas militares ou econômicas. Desde filmes até mesmo caridade, quase tudo pode ser um mecanismo desse tipo de poder. É melhor ter amigos e admiradores do que inimigos e rivais, regra simples da vida que escala do nosso cotidiano para as maiores relações internacionais.
E aqui temos que entender as coisas pelo ângulo americano: o que diabos eles ganhavam gastando todo esse dinheiro? O começo da USAID é uma boa indicação: foi criada durante a Guerra Fria, quando o objetivo explícito era combater a influência da União Soviética. Era na dor como no caso das várias ditaduras apoiadas pelos americanos na América do Sul, mas era no “amor” da cultura de massa e da caridade também, havia um objetivo claro de pintar os EUA como os mocinhos do mundo.
Mas tudo parece tão abstrato, não? Como fazer pose de mocinho mexe no preço do dólar? Como dar comida para um queniano esquelético ajuda os EUA? E aquela ópera trans? Como isso rende para os EUA?
Existe um segundo elemento para considerar aqui: gerenciamento de mundo. Isso é supercomplexo, eu não sou especialista em relações internacionais, mas acho a parte mais fascinante da coisa toda e vou tentar explicar o meu entendimento. Se você é uma grande potência e seus tentáculos militares, econômicos e culturais se espalham por todo o mundo, é essencial que os outros países joguem o seu jogo.
O Brasil, por exemplo, não se importa muito com o sistema político ou a cultura da Indonésia, não temos interesses por lá. Os EUA sim. Tem acordos comerciais gigantescos, empresas que trazem dinheiro de lá, bases militares para projetar poder… o mundo todo é problema deles. E quanto menos estável e previsível for o mundo, menos esse sistema funciona.
Não é só sobre ter um presidente amigo em outro país, é sobre ter capacidade de se planejar em relação àquele povo. Ironicamente, o poder imenso de um país como os EUA não deixa de ser um castelo de cartas: são tantas coisas interligadas que uma carta bamba na base cultural africana pode cair e virar problema nas relações comerciais com a Europa. O mundo tem que fazer sentido para os americanos, hoje e amanhã.
Doar dinheiro para países passando fome é um jeito de criar uma memória afetiva positiva por lá, meio como dar um presente para uma pessoa e a pessoa lembrar de você toda vez que vê o presente. Mas também é uma forma de evitar que as coisas mudem muito rápido. Países em crises humanitárias sérias trocam de líderes rapidamente, e em alguns casos, ficam girando em falso entre senhores da guerra, um mais maluco e imprevisível que o outro.
Países muito desesperados por comida são presa fácil para fanáticos religiosos e generais sanguinários. Doar bilhões em alimentos é simpático para a maioria da humanidade, mas também é uma excelente forma de baixar a fervura em lugares muito afeitos a revoluções. Não resolve, mas deixa o lugar mais estável.
E se tem alguma estrutura para recuperar, pode ser o suficiente para instalar uma democracia ou ditadura simpática aos EUA. E muitas vezes, é só o que eles precisam. Não é bondade porque existem vários exemplos de como eles bagunçam países rebeldes como Irã, Iraque e Síria. Arábia Saudita joga dentro das regras de mundo deles, virou um bastião de estabilidade regional. Pode esquartejar jornalista à vontade se for aliado.
Então, existe essa ideia de estabilidade mínima mundial para eles. Manter todo mundo num padrão básico de funcionalidade que torne possível empurrar seus objetivos para frente. De novo, desde que seja aliado, senão eles mesmo armam rebeldes para explodir o sistema indesejável. A mesma lógica de dar comida para congoleses desemboca em bombardear iraquianos. Não deixa de ser uma espécie de jardinagem global.
Nos EUA, as consequências do mundo são maiores: como são um dos maiores destinos de imigrantes e estão economicamente conectados com virtualmente todos os países do mundo, são alvos de diásporas e refugiados em geral, tem acordos de defesa com mais da metade dos países que podem os colocar em guerras aleatórias; e mesmo doenças que não são controladas na sua origem fatalmente chegam por lá. Eles já estão amarrados com o mundo todo, por isso é diferente quando eles fazem as contas do que vale a pena fora de suas fronteiras ou não.
Se você corta esses gastos, a lógica se desfaz. Os países vão começar a ter que resolver seus problemas, e é bem imprevisível como isso balança o tal castelo de cartas. Concorde ou não com a tática, é uma tática. E medidas como acabar com a USAID vão de encontro com ela. Esse dinheiro pode ser tratado como desperdício ou como investimento. Investimento difícil de entender se você só conecta os pontos entre usar dinheiro dos pagadores de impostos americanos e os esfomeados em países aleatórios, mas que começa a fazer sentido se você quer o mundo funcionando de uma forma que te beneficia. Não é sobre a troca imediata entre dólares e refeições emergenciais, é sobre como essas pessoas vão funcionar em seus países dali para frente.
Deixa um grupo radical islâmico tomar conta? Um senhor da guerra canibal? Os chineses? Não existe vácuo de poder. Alguém vai querer explorar aqueles recursos, e o ser humano pode ser movido por objetivos bem abstratos, como direito religioso ancestral a um pedaço de terra.
E a ópera trans? Essa parte eu acho ainda mais interessante, tire todo seu juízo de valor sobre óperas ou transexuais, lembre-se de novo da estratégia de jardinagem global. A cultura americana está fortemente relacionada com liberdades individuais, foi isso que nos venderam por décadas e décadas. Os EUA como bastião de liberdade e justiça, onde todos são iguais e podem seguir seu “sonho americano”, da pobreza à riqueza só com iniciativa pessoal.
Lá vou eu ser escroto de novo: não importa se é verdade. Importa se as pessoas acreditam nisso. E como isso impacta as relações delas com os americanos. O que muitos da direita chama de degeneração cultural é um aspecto dessa cultura que os americanos empurram mundo afora: não é sobre ser gay, hetero ou qualquer outra coisa, é sobre individualismo. Existe um ganho secundário na estratégia americana se mais pessoas se sentirem livres para serem quem acreditam que são.
Como eles meio que sequestraram a ideia de liberdade pessoal no mundo, não deixa de ser interessante para eles que mais pessoas cortem relações com a cultura e a moral local para abraçar uma identidade mais global. Um transexual na Colômbia é uma ferramenta para essa colonização cultural. No Afeganistão então… vale por uns 100. Novamente, não é sobre ser bonzinho, é sobre o efeito que essas pessoas podem ter na cultura local, deixando-a mais aberta para o jeito americano de ser.
Culturas muito homogêneas formam barreiras de entrada para todo o pacote de influência ianque. Uma pessoa que “sai da vila” é um potencial consumidor de tecnologia e cultura americanas. É alguém que aprende inglês, que usa dólar, que começa a valorizar coisas que os americanos valorizam. É colonização, mesmo que não seja óbvia.
Não adianta produzir teorias de como uma sociedade deve funcionar se isso não chegar na ponta. E são justamente nesses “investimento aleatórios” que podemos ver a capilaridade da influência americana. Estão sempre com o dedo em alguma ação internacional, porque é assim que a gente começa a entender a mentalidade americana como a mentalidade “padrão”. Não sei se tem algum país no mundo que ainda considere os EUA como exóticos. Mesmo quem critica, critica muito “de dentro”.
O grande sucesso da tática americana, da qual a USAID faz parte, é que todos nós vivemos na América (roubei essa do Rammstein). Se é positivo para os EUA ou para os países presos nessa teia de influências é discutível, mas que eles transformaram esse dinheiro num mundo muito mais aberto e previsível para eles, não é. Se você parar para pensar mesmo, é complicado saber até onde eles influenciaram o que cada um de nós pensa e se a nossa cultura local chegaria nas mesmas conclusões sozinha.
Então, o meu ponto sobre o fim da USAID e desses gastos com o resto do mundo é que não era só jogar dinheiro para o alto. Tinha um plano que estava funcionando. Querer mudar o plano continua sendo direito inalienável do país que estava pagando a conta por ele. Pela forma como Trump e Musk funcionam, não fica claro se eles sabem exatamente o que estão fazendo ao mexer nessa parte da política internacional americana. Agora economiza uma nota, mas e se os outros países começarem a sair da linha preferida pelos EUA? Isso pode começar a tornar mercados consumidores menos interessados nas marcas americanas, no estilo de vida americano, nos valores americanos.
Claro, agências como a CIA vão continuar com orçamentos secretos bilionários para continuar fazendo esse tipo de influência, mas a deles não tem nem verniz de benevolência. Pode ajudar a derrubar um ditador de Republiqueta das Bananas e colocar outro no lugar, mas não é mais o tipo de ação que cria na cabeça das pessoas ao redor do mundo o desejo de seguir a liderança americana.
Um dos erros mais comuns de quem acaba de analisar um sistema é achar que são os descobridores dele. Que ninguém mais pensou naquilo antes deles. Se você olhar para alguns dos gastos exóticos da USAID, não é para se perguntar por que ninguém percebeu que era desperdício, e sim porque alguém achou que valia a pena. Acreditar demais na “agenda woke” que Trump diz combater é acreditar que era tudo feito por puro idealismo. Não, os EUA não chegaram aonde chegaram por ter ideais maiores que bom senso econômico.
Talvez lacradores estivessem forçando a mão com alguns dos gastos, mas eles só chegaram nessa posição porque há muito tempo o governo americano decidiu que empurrar a sua cultura vigente no mundo todo era muito bom para os negócios. Um mundo que segue o tempo deles, década a década, moda a moda. Cria países mais alinhados e previsíveis, onde pode-se investir sem medo. Os gastos mais bizarros da lista não eram uma falha, eram parte do projeto.
Era de propósito. E se acabar, vai ter consequências. Nada nessa vida é de graça.
Nessa ótica faz menos sentido ainda a política isolacionista do governo Trump. Eles estão se retirando e deixando o campo livre pra quem quiser. É bizarro como tão entregando tudo.
A pretensa “agenda woke” é o novo “politicamente correto”. Um espantalho conveniente para a turma reacionária mirar como alvo.
Nessa bravata toda, se ignora propositalmente as divergências entre os grupos identitários presentes à esquerda do espectro político, da mesma forma que se ignorou que o politicamente direcionado (seja “correto”, seja “incorreto”) veio a ganhar espaço com o advento da internet como mídia “alternativa”.
Acredito que eles estejam mudando a maneira de fazer políticas de Soft Power. Não sei se você acompanha redes sociais, Somir, mas já tinha notado algumas iniciativas russas com influencers de beleza e relacionamento. Todas elas tinham alguns pontos em comum que faziam referências políticas e ideológicas de um jeito sutil, mas reconhecível. Comecei a ver influencers americanas fazendo parecido, e quando algumas delas apareceram na posse do Trump, tive certeza disso. É o mesmo discurso de decadência da sociedade americana com a cultura woke, às vezes comparando americanos e eslavos de forma pejorativa. São bem mais engraçadas e agradáveis de assistir do que o pessoal woke, mas acho que nessa altura ninguém acha que woke traga algo de bom.
Agora, se pararem de vez, ou diminuírem ajuda humanitária drasticamente, de fato vai haver consequências e elas provavelmente não serão boas. Mas todas as grandes mudanças trazem consequências, essa é só mais uma variável. Países inviáveis (sim, é um conceito real de relações internacionais e a maioria deles nunca deixará de depender de ajuda humanitária) têm mais a se preocupar que nós, mas talvez também seja hora de haver uma solução mais permanente para a pobreza do mundo.
Concordo totalmente com o último parágrafo do seu comentário, Paula.