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Insanidade profissional.

Insanidade profissional.

| Somir | | 6 comentários em Insanidade profissional.

Continuam pipocando histórias sobre pessoas tentando produzir conteúdo com bebês reborn às custas de tempo e recursos alheios. Muito se fala sobre os supostos problemas mentais dessas pessoas, mas tem toda uma parte de “insanidade fabricada” por atenção de rede social que deveria ser considerada também.

Ser maluco é conteúdo. O ser humano tem uma curiosidade mórbida sobre ver outros seres humanos se desfazendo. Pessoas mentalmente estáveis são excelentes para se ter por perto, mas até por essa estabilidade, não estão sempre forçando a atenção alheia. Excelente para a vida, problemático para a profissão de influencer.

Muitos dos conteúdos mais divertidos do Desfavor são resultado de Sally e eu surtando com nossas maiores mesquinharias e opiniões mais polêmicas e intolerantes. Porque todo mundo tem esse lado mais descompensado, se a essência da pessoa for compatível com a sua, as “loucuras” dela não tendem a ser muito problemáticas. Dá uma graça na vida, se não for nada violento costuma no máximo ser engraçado.

Mas como todo tempero, existe um limite. Você não vai conseguir achar uma pessoa 100% livre de momentos malucos, mas consegue sim achar uma que na convivência não passe dos seus limites, sejam eles de paciência ou risco. Para a tal da vida real, buscar equilíbrio faz bem.

Mas na vida virtual? Aí temos que considerar que as regras mudam: as pessoas que mais geram atenção tendem a ser aquelas que passam dos nossos limites. E isso vai se tornando um comportamento aprendido. Assim como comida de restaurante, a vida da pessoa online tem que ser muito mais temperada.

E isso nos leva a uma máscara de intensidade que muitos influencers e aspirantes a influencer se obrigam a usar todos os dias. A pessoa levando bebê reborn para tomar vacina no posto está com um celular para gravar o processo. Continua sendo insano, mas é uma insanidade manufaturada. O conteúdo dita o quanto a pessoa passa da linha da normalidade.

Com mais e mais gente procurando fama de rede social como caminho na vida, mais incentivo para desenvolver essas personalidades extremas e pior, mais competição pelo que se passa por extremo no mundo. A moda é falar de bebê reborn? Tem gente que vai se jogar de cabeça no tema pela chance de sucesso, e se o simples fato de tratar uma boneca como gente não gera mais o choque social que causava tempos atrás, o próximo passo é forçar terceiros a participar da encenação.

Porque isso sim vai chamar mais atenção. Na curiosidade mórbida com os desajustados sociais, temos uma validação da nossa sanidade. Pelo menos não somos a maluca que leva boneca para vacinar, não? A minha ideia neste texto é pensar sobre a artificialidade disso. Quando abrimos um “mercado de atenção” sobre um tema, vai sempre ter gente tentando explorar.

Uma hora ou outra a moda passa. Pessoas do futuro lendo este texto podem nem saber muito bem do que se fala aqui sobre bonecas, mas com certeza vão saber identificar o comportamento de “fingir ser maluco” por visualizações. Porque esse é dos mais antigos e só tende a ficar mais concentrado no futuro.

O problema é que existe uma quantidade limitada de atenção disponível no mundo. Em textos passados eu falei sobre a indústria da pornografia nesse sentido: chegou num ponto onde ser explícito não destacava mais, então muitas modelos adultas apostaram em simular uma relação com seus clientes. Ainda vivemos num tempo onde isso é suficiente para manter o mercado aquecido com OnlyFans e similares, mas como tudo nessa vida, a tendência é que precisem achar outro ângulo para enfrentar a concorrência.

Assim como quase todo mundo tem um corpo e uma sexualidade para explorar, todo mundo tem uma personalidade que pode ser turbinada para gerar mais atenção. O mercado saturado da pornografia é só mais uma versão do mercado saturado da atenção em geral. Se quase todo mundo consegue competir com você – e boa parte do conteúdo gerado em redes sociais independe de quem está na tela – a tendência é que com o tempo as pessoas mais intensas e dedicadas ganhem a disputa.

O número de smartphones com conexão de internet no mundo é o tamanho potencial do mercado de influencers. É a competição mais selvagem que jamais vimos na nossa história. E ele ainda não chegou no limite, existem bilhões de seres humanos ainda para entrar na “aldeia global”. Gente que pode ser interessante de mil formas diferentes, e que se colocar na cabeça que quer ser influencer (boa parte dos jovens enxergam isso como carreira tão válida como qualquer outra) vai manter o mercado aquecido ao ponto de ebulição.

Nessa fervura (estou cheio de analogias culinárias hoje, talvez seja fome) de personalidades competindo por atenção limitada, eu percebo que casos como esses de mulheres levando bebês reborn no médico não são uma queda de sanidade natural da humanidade, e sim resultado de pressões econômicas. É gente criando personalidades chamativas por interesse financeiro.

A linha entre insanidade honesta e insanidade com fins lucrativos vai ficando mais borrada. Se muita gente começa a exagerar porque isso gera mais interesse nas redes sociais, o comportamento se normaliza para quem está sendo criado na frente de uma tela. Quem é mais safo e experiente até consegue perceber o excesso falsificado, mas e quem está lidando com isso pela primeira vez?

E se a maluquice proposital de influencers querendo seus quinze segundos de atenção passar para novas gerações sem a noção de ser armação? A primeira vez que eu vi luta-livre na TV, eu jurava que era real. Quem está num lar de pessoas mais equilibradas tende a não ser tão influenciado, mas alguma coisa dessa intensidade diante das câmeras vai passar.

Algo me diz que estamos rumando para uma humanidade mais teatral, onde é comum exagerar nas ideias e nos sentimentos, mais ou menos como gente que mora em casa de gente que grita sempre fala mais alto na média. Não adianta ficar teimando contra o futuro, ele vem de qualquer jeito, mas podemos ser exemplos melhores de personalidades sem fins lucrativos.

Porque esse tipo de teatralidade que ocupa as redes sociais acaba pegando até na gente. Você começa a se perguntar se está agindo de forma calma e controlada ou se está abaixo do esperado. O nível de energia de influencers é definido quando a câmera é ligada, ninguém é assim sem filtros. Eu teorizo até que muita gente acha que está deprimida ou desanimada só por causa dessas comparações.

E mesmo o que assistimos por curiosidade mórbida é num nível de intensidade acima da vida cotidiana. Pode até achar a pessoa uma vergonha, mas é uma vergonha tão cheia de energia, não? Claro que é, porque mesmo os que estão fingindo serem malucos, estão fazendo isso para chamar sua atenção. Eles precisam fazer isso.

Eu sei que parece extremamente óbvio dizer que não podemos acreditar em tudo o que vemos na internet, mas nem toda mentira vem em pacotes fáceis de detectar. A pessoa berrando que a Terra é plana deixa tudo muito óbvio, mas a intensidade falsa que se esconde por trás da maioria dos conteúdos de rede social também é mentirosa.

A câmera ligada empresta energia até mesmo para quem não está fazendo isso de caso pensado. A pessoa levando bebê reborn para vacinar nunca teria feito isso num mundo sem possibilidade de gravação da cena, seja ela louca de verdade ou não. A atenção influencia no comportamento. As pessoas têm muito menos energia e propensão à insanidade do que aparece na internet. E como a internet simplesmente tomou nossa visão de mundo fora do núcleo mais próximo, é garantia de influenciar o que achamos que acontece de verdade.

Você provavelmente não está devendo nada em intensidade, nem mesmo é tão mais são que a média, você só é amador perto de quem trabalha pedindo atenção.

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