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Eficiência demais.

Eficiência demais.

| Somir | | 6 comentários em Eficiência demais.

O mundo já discutia os resultados da globalização – a integração cada vez maior entre sociedades e economias de países diferentes – muito antes de Donald Trump assumir o poder nos EUA. As suas tarifas apenas fizeram o tema ficar mais popular. Temos defensores e detratores por todos os lados, mas eu acho que tem uma verdade inconveniente por trás de tudo isso: competência não funciona de forma homogênea ao redor do mundo.

Tem quem queira dizer que a diferença entre produtividade do brasileiro e do japonês, por exemplo, seja genética. Que alguns povos sempre vão ser mais competentes que outros, e que isso nasce com a pessoa. Continuo achando tão cientificamente válida como o terraplanismo. Nunca isolamos a variável genética para fazer qualquer afirmação do tipo.

E provavelmente nunca vamos conseguir isolar. Você nunca vai saber se diferenças entre competências valorizadas na sociedade não são resultado de criação e ambiente. O simples fato de tentar isolar uma pessoa num experimento desses torna o experimento inválido, porque não é mais como as pessoas reais vivem. É quase como se fosse um princípio da incerteza social: você pode medir o resultado se não interferir, e sem interferir você nunca vai conseguir isolar variável genética.

Reconhecimento de padrões é razoável, mas mesmo que algo aconteça muito mais com um povo do que outro, você não consegue saber de verdade se foi a raça que definiu o resultado. Dito isso, alguns povos são menos competentes no jogo capitalista atual do que outros.

E reforçando o argumento de variável genética ser irrelevante: se perguntassem para alguém 50 anos atrás se chinês era bom de produzir tecnologia, a resposta seria uma gargalhada. Eles se tornaram extremamente eficientes numa combinação de mão de obra e cadeias de produção focadas nesses produtos. É mais fácil montar seus produtos inovadores na China do que nos EUA ou na Alemanha. Não pelos trabalhadores baratos, mas pelos trabalhadores especializados e a cadeia produtiva pronta para ser usada.

Alguns lugares do mundo acumulam competência em partes da economia, e quanto mais fácil for o acesso de outros mercados a essa competência, menos sentido faz produzir localmente, ou mesmo treinar localmente. A globalização nos permitiu produtos muito baratos, mas também forçou a concentração de atividades econômicas em alguns lugares específicos.

E então, precisamos fazer uma escolha: vamos tratar o mundo como uma grande cidade cheia de distritos especializados ou vamos tentar garantir que cada nação tenha capacidade de planejar e produzir o que precisa? Até pouco tempo atrás, parecíamos confortáveis com a primeira opção. Mas empregos começaram a migrar entre nações e muitos povos se sentiram abandonados pelo sistema.

É muito por isso que o nacionalismo voltou a ser moda. Venderam as benesses da globalização sem mencionar a contrapartida. Se a fábrica do mundo é a China, isso os torna tão eficientes que derrubam o preço de tudo. O consumidor fica feliz até descobrir qual é o verdadeiro custo disso: ele não tem mais o seu salário nas áreas dominadas pelos chineses.

A competência se acumula em alguns lugares, e quem dependia dessa competência localmente percebe o problema. Certeza que você vai produzir parafusos no seu país se a China faz o mesmo produto por um décimo do preço? Tem subsídio do governo para o produtor chinês ganhar a disputa, mas isso acumula até o ponto onde só faz sentido produzir algo no local mais eficiente. Foi um investimento que deu certo. Em várias indústrias, é inviável cortar a China do processo, se você achar quem produz fora do país asiático, vai ser num preço muito mais alto e acreditem ou não: de qualidade inferior. Depois de décadas, eles tem mais especialistas e mais maquinário especializado até mesmo que os antigos gigantes da produção como EUA, Japão e Alemanha.

O que nos leva ao problema da globalização: ela não está falhando, ela está funcionando muito bem. Em algumas décadas, a competência e a eficiência foram para os lugares mais dedicados. O que muita gente está percebendo agora é que não queriam esse padrão altíssimo de capitalismo. Queriam eficiência suficiente para terem seus empregos e oportunidades em casa, e pagar um pouco menos pelo que consumiam.

Considerando a complexidade de um smartphone, é um milagre que quase todo mundo tenha um. Isso só acontece porque as empresas na cadeia produtiva aperfeiçoaram o processo com essas competências espalhadas pelo globo, derrubando o preço com o volume e a concorrência. Era para custar muito mais caro do que custa (mesmo sendo caro). Smartphones e basicamente tudo o que você tem que passa por comércio internacional.

E é muita coisa: de eletrônicos aos vegetais que você compra no supermercado, tudo tem algum elemento de troca internacional que derruba o preço final. Alguém produz o insumo de forma muito eficiente em algum lugar do mundo, e a competência para produzir assim se acumula por causa disso. Entra mais dinheiro, podem investir mais…

Em tese era para ser assim mesmo. Fazemos isso desde que especialização começou a ter função social. Nas primeiras cidades já era mais prático e barato comprar seus potes de alguém que só fazia potes. Isso acumula com o passar dos milênios, mas ainda é a ideia de eficiência por especialização.

Não é necessariamente ruim que o Brasil não seja capaz de produzir eletrônicos como a China, ia ser pior e mais caro feito aqui. Mas por essa lógica, é muito importante que estejamos fazendo alguma coisa de forma muito mais eficiente que outros países para ter margem de negociação. O mundo rodou, rodou, e a lógica continua sendo trocar o que sua plantação tem demais pelo que a do vizinho tem demais.

Se o mundo fosse capaz de ter vários polos de competência interconectados, a globalização acharia um equilíbrio eventualmente. Mas era questão de dobrar, triplicar e quadruplicar a aposta nesse sistema. E ter como encarar os problemas que viriam disso: países muito especializados não conseguem mais acomodar liberdade pessoal de empreendimento. Não porque não querem, mas porque não tem como oferecer nada para o cidadão que quer entrar na “parte errada” da economia.

É uma bola de neve, países cada vez mais especializados que acabam incentivando o mundo a depender mais de países especializados. Num mundo ideal, as pessoas fluiriam de um local para o outro como se estivessem indo morar num bairro mais próximo do emprego; no mundo real a mobilidade é muito mais limitada. Temos mais e mais pessoas “presas” em lugares onde seus talentos e interesses são desperdiçados em nome da eficiência do mercado globalizado.

Como resolver os problemas da globalização então? Como atender às demandas do povo que vota desesperado em nacionalistas? Bom, pode parecer bizarro, mas eu acredito que a resposta seja: eficiência é supervalorizada nessa escala global. Realmente faz diferença se o prego chinês é meio centavo de dólar mais barato que o prego brasileiro?

Talvez para um projeto que utilize milhões deles seja, mas mesmo assim… não seria melhor pagar um pouco mais e ter mais diversidade econômica no seu país? Existe algum método na loucura da direita nacionalista atual, mas por incrível que pareça, é um método que beira ao comunismo: colocar o bem-estar acima da eficiência econômica. Eu só não sei se Trumps e Mileis da vida sabem que estão indo por essa linha.

O globalismo é muito discutível se termina com nações extremamente eficientes na produção ao ponto de eliminar competidores internacionais. O preço do produto até cai, mas cai em troca de menos empregos produtivos em geral. Se um funcionário num país especializado produz dez unidades no mesmo tempo e preço que um funcionário de outro produz cinco… você está matando um emprego.

E talvez o grande drama do século XXI seja escolher entre produtividade e empregos. Num mundo com empregos demais, temos estagnação, num mundo com produção demais, temos acúmulo desenfreado de capital. Abrimos as fronteiras no final do século passado e ficamos muito mais eficientes. Agora chegou a conta.

Porque por mais que não estejamos vendo uma crise de desemprego generalizada, muitas dessas novas vagas sendo ocupadas são pouco produtivas. Quantas pessoas realmente precisa no RH da sua empresa? Ou mesmo no marketing? Temos vários novos empregos difíceis de medir com produtividade assumindo o lugar dos removidos pela globalização.

Mas a tecnologia continua correndo, e a IA parece ser mais um passo para aumentar a eficiência desses “empregos modernos” ao ponto de reduzir quanta gente vai ser necessária. Pode parecer um pensamento ultrapassado se preocupar com empregos que são feitos por máquinas ou países mais eficientes hoje, mas tem algo mais profundo aí. Tem um problema de eficiência desigual no mundo que vai criar uma crise de ocupação tremenda.

Não sei quanto esses líderes antiglobalização entendem de verdade sobre esse problema, mas eu sei que o prospecto não é dos melhores se continuarmos em linha reta rumo à eficiência total das cadeias produtivas. Quer dizer, pelo menos não para a gente que está na parte debaixo. Se você já for rico, vai ser só mais dinheiro mesmo.

Eu acho que se não lidarmos com essa ideia que países como a China são eficientes até demais no que fazem, vamos ter que lidar com uma massa cada vez maior de gente sem função nesse mundo. E ao invés de tentar equilibrar as coisas para a mudança não ser tão brusca, a tendência é que populistas autoritários continuem vendendo a “direita comunista” como se fosse uma grande solução. Se é, não deve ser por muito tempo, porque o país que quebrar sua eficiência sozinho vai ser destruído pelo mercado.

O ser humano até pode achar graça em eficiência, mas não parece ter a cabeça necessária para viver num mundo ditado por ela. Eficiência acaba batendo de frente com liberdades pessoais, porque você não pode mais fazer as coisas do jeito mais agradável ou saudável para você ou sua comunidade, você tem que fazer do jeito que funciona melhor, senão a concorrência te engole. E quando as leis que você segue não podem regular como a concorrência age, pior ainda.

O que eu vejo é a gente chegando num limite de eficiência produtiva antes de decidir se vamos até o fim custe o que custar ou se vamos corrigir a rota para colocar ocupação e qualidade de vida na frente, para fazer a transição aos poucos. Não vejo muitos políticos se posicionando dessa forma, ou é totalmente contra ou acha que não tem nada errado acontecendo.

E a verdade, como sempre, é bem mais cinza.

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