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5 sigma.

5 sigma.

| Somir | | 2 comentários em 5 sigma.

No meio científico entende-se que 100% de certeza é um objetivo inalcançável. Quanto mais rigoroso você é com a precisão de seus cálculos e experimentos, mais você sabe quanta coisa pode estar errada. Reconhecer a possibilidade do erro é importante, mas… não é bagunça. Tem diferença entre conhecimento estabelecido e opiniões.

O mundo “normal” pega emprestado vários conceitos da formalidade científica para discutir suas questões. E é um self-service de conceitos: cada um pega o que for mais útil para sua causa, raramente se importando se isso distorce a fundação científica da coisa.

Estudos apontam que se você começar uma frase com “estudos apontam que” as pessoas ficam mais abertas a levar qualquer coisa a sério. Mesmo quem quer jogar contra o consenso atual científico acaba se aproveitando do jargão e do método para inventar evidências onde elas não existem. Vai desde o coach quântico até o defensor de “tratamentos alternativos”.

Parece ciência se você não souber como ciência deveria se parecer. Por isso, eu quero falar sobre o conceito de sigma, uma ideia da estatística que descreve o desvio-padrão de uma média. Numa distribuição de probabilidades, aparece uma curva em forma de sino, no topo do sino estão as coisas mais comuns, nos extremos as menos.

Se você pegar uma coisa das que foram usadas para tirar a média, você pode medir qual a distância dela do topo. Quanto mais distante, maior o sigma. Exemplo prático: digamos que um estudo resolveu medir a altura média de 100 pessoas. A média deu 1,70m. Mas é claro, não quer dizer que todos tem essa altura, e sim que se somar a altura de todo mundo e dividir pelo número de pessoas, dá esse número.

Uma pessoa com 1,69m ou 1,71m de altura está tão próxima desse centro que dizemos que ela tem sigma 0. Agora, um baixinho de 1,40m ou um gigante de 2m estão tão longes desse centro que vão ganhando sigmas. sigma 5, nessas curvas, é um ser tão diferente da média que é quase impossível achar ele aleatoriamente. Quase todo mundo vai estar perto dos 1,70m, então se você fechar o olho e apontar para uma dessas 100 pessoas, sua chance de acertar um sigma 0 é imensamente maior que um sigma 5.

Sigma vai até o infinito se você quiser, você pode ser mais rigoroso e exigir sigma 6 se quiser, que é 99,9996% de certeza, mas os ganhos de confiança são cada vez menos relevantes quanto mais você sobe o sigma. Sigma 5 é suficiente em boa parte da ciência, sigma 6 em outras áreas.

Em experimentos científicos, essa regra é muito usada para demonstrar qual a chance de um resultado ter sido apenas acaso. Se um cientista disser que o número que encontrou estudando tem grau 5 sigma de confiança, quer dizer que ele tem 99,997% de certeza que não foi um engano. Num exemplo bem bobo: é a confiança que o objeto na foto dos céus é um asteroide e não um grão de poeira na lente.

Normalmente, a ciência que rege coisas que podem te matar ou causar problemas sérios em caso de erro precisa dessa confiança estatística para virar ação. Tanto remédios quanto projetos de pontes dependem de comprovações prévias para serem validados. É interessante falar sobre “só sei que nada sei”, mas na prática, precisamos saber mesmo.

E como 100% é uma fantasia matemática, uma chance em 3.5 milhões de estar errado (sigma 5) costuma ser uma fundação confiável para construir nossa tecnologia e sociedade. Não é que alguém tirou uma ideia da cabeça, começou a fazer e deu certo: os grandes avanços foram testados com um padrão super rigoroso. Milhões de vezes mais rigoroso do que qualquer opinião.

Se um cientista chegar para os outros dizendo que os resultados dos seus testes só ter um terço de chance de estarem errados, internam o coitado, porque claramente ele está com problemas cognitivos sérios. Se você não consegue empurrar a chance de estar errado para muito longe da média de um palpite, não serve como ciência. Não porque os cientistas estão fechados para novas ideias, mas por questões práticas mesmo: imagina ter que levar a sério o achismo de todo mundo? Ninguém mais faria nada da vida, muito menos ciência.

Me incomoda quanta gente discute por aí como se fosse cientista sem ter sequer a base da ideia de significância estatística. Boa parte das conversas sobre política e comportamento costumam ser bem complicadas porque raramente temos estudos com altos sigmas nesses campos. É tudo muito relativo – e não estou falando da relatividade de Einstein comprovada com muitos e muitos sigmas – porque o ser humano é um elemento imprevisível e mentiroso. Tudo o que depende do nosso comportamento pode ter elementos escondidos que bagunçam os resultados.

É normal estar sobre uma base “bamba” quando você está falando sobre melhor sistema de governo, sobre como as pessoas têm que agir, o que é belo, nobre, moral… e é um fato da vida. A gente fica tão acostumado à maleabilidade intelectual das ciências humanas que acaba influenciando a parte mais exata da coisa. Tudo bem discutir capitalismo e comunismo sem reforço estatístico considerável, tudo mal em achar que conversas sobre física, química e biologia são parecidas.

Não são. Se quiser falar sobre física quântica ou funcionamento do corpo humano, opinião não sobrescreve estudos e resultados com um grau de confiabilidade acima de 99,99%. E pode ter sigma 5 de confiança que boa parte do que você pensou já foi estudado de uma forma ou de outra. Desenvolver uma ideia nova nessas áreas passa por fazer uma grande pesquisa para descobrir se já não pensaram nisso e se já pensaram, o que deu errado para não ser conhecimento geral.

Curioso como de tanta coisa que podíamos pegar da formalidade científica para uso cotidiano, justamente a parte que protege a ciência profissional de erros perigosos é uma das mais ignoradas. Custa caro ter confiança numa ideia, custa experimentos e mais experimentos com um monte de detalhes técnicos que visam justamente impedir que o aleatório contamine os resultados.

Evidente que não tem nada a ver com aceitar bovinamente tudo o que te dizem ou não ter curiosidade sobre o mundo, é sobre reconhecer que depois de tantos milênios de sociedade pós-histórica, não é como se estivéssemos com falta de ideias diferentes na ciência, falta comprovar que o diferente é mais válido que o reconhecido hoje.

Porque isso se conecta muito com o discurso conspiratório comum de “eles não estão contando tudo para você”. Olha, é esperado que ainda existam segredos nos mais altos níveis de empresas e governos, mas a ciência? Eles estão publicando tudo há décadas. Tem gente argumentando que publicam até demais por motivos financeiros.

É bem provável que a maioria das dúvidas que você tem sobre tecnologia e ciência avançada já estejam publicadas para todo mundo ver em algum lugar. Tem que entender o básico para saber pesquisar, mas não podemos confundir ignorância com segredos. É muito difícil que um influencer de saúde tenha a solução para a pressão alta num alimento que todo mundo conhece. Ou que um coach tenha descoberto um segredo do universo que “os físicos não te contam”.

Todo mundo pode contribuir para a ciência, mas se estiver se esforçando para fazer ciência. A comunicação científica pode até ser meio complicada por causa dos termos e do foco interno das publicações, mas não é como se estivessem te escondendo. Uma pessoa te dizendo como chegar num lugar da cidade em uma língua que você não fala ainda está te informando, é você que não entende. A ciência moderna não cala a boca, é uma enxurrada de estudos e experimentos todos os dias.

E se a ideia que você teve ou ouviu falar em algum lugar aleatório fora do universo profissional científico não é “discutida na sociedade”, sugiro pesquisar sobre o tema com mais afinco, porque quase sempre vai ser o caso de alguém ter pensado na hipótese, tentado achar um resultado e saído com um sigma baixo. Às vezes não era mesmo algo que tinha fundamento, às vezes está muito antes da nossa capacidade tecnológica de testar a hipótese para ter um resultado decente de apresentar para o mundo.

E muitas vezes também a ideia já está avançando na ciência, é que demora bastante para gente suficiente testar e revisar para chegar em resultados apresentáveis. Opinião todo mundo tem, o sigma 5 ou superior é que são elas. Vai ser raro o mundo inteiro se unindo para fazer estudos e testes em modo de urgência como no caso da vacina da Covid-19. O normal é ser lento por pura e simples falta de gente trabalhando no caso. E só um aparte: ajudou muito que vacina já era algo comprovado e que a mecânica da versão utilizada para controlar a pandemia já era testada com níveis altos de confiança. Foi rápido porque precisaram só testar um pedaço da solução com literalmente todo o suporte do mundo.

Ao invés de falar de sigma como papo furado de coach de incel, falemos de sigma como a ideia de que ciência não cai de árvore (tirando aquele caso da maçã) e para definir alguma coisa tem que estudar muito o tema, fazer uma quantidade doentia de experimentos até chegar no maior nível de confiabilidade praticável.

E se quiser ter certeza de alguma coisa, é importante saber o custo.

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