Crise da meia idade digital.
| Somir | Somir Surtado | 8 comentários em Crise da meia idade digital.
Eu tenho mais uma teoria: e se a polarização política não for nada além de populações chegando na meia idade e na velhice com acesso à internet?
Como fã da Navalha de Occam, a ideia de que a explicação mais simples normalmente é a mais provável, de tempos em tempos eu tento cortar a complexidade da minha visão de mundo. As coisas que eu acredito hoje podem ser explicadas com menos complexidade? Ou, qual o número mínimo de peças necessárias para fazer o mundo de hoje funcionar da forma como eu acredito que funcione?
E aí, podemos tentar achar peças fundamentais. A primeira que eu quero colocar aqui é que seres humanos envelhecem e vão perdendo a conexão com gerações posteriores. A pessoa da geração millenial cresceu com pais da geração X, então desde cedo elas receberam um impacto enorme desse tipo de pessoa. Podem discordar em muitas coisas, mas é uma discordância nascida da convivência e da cultura formada por essa geração. Já pessoas que vieram muito antes têm algum impacto, mas é na figura de avôs, avós e figuras de poder bem longínquas.
Ou seja, mesmo quem se rebela contra os pais entende de alguma forma contra o que está se rebelando, algo que estava em casa. A pessoa lidou com essa geração ao vivo e a cores, viu o que os seus pais achavam certo, errado, divertido… tudo através de uma cultura que estava com ele desde que nasceu.
A geração que vem depois, por motivos óbvios, é uma geração de filhos. Pessoas com as quais também conviveram na prática. A geração Z se rebela em vários aspectos ao que o millenial considera o certo, mas novamente, mesmo do ponto de vista dos pais, é uma rebeldia “dentro de casa”. O millenial está vendo acontecer e lidando com a questão no seu dia a dia.
O ponto aqui é que existe uma empatia especial em gerações sequenciais. Pais e filhos, supervisores diretos, amizades e relacionamentos amorosos entre pessoas que não estão tão distantes assim na idade e no mundo em que cresceram. Em condições normais, em sociedades funcionais, costuma ser até saudável ter essas disputas entre gerações, para não deixar a sociedade estagnar.
Essa empatia é menor quando as gerações começam a se separar. As pessoas ainda podem se gostar, é claro, mas a compreensão direta que só a convivência próxima gera fica mais e mais difícil. Podemos perceber até os millenials ficando meio confusos com a geração pós-Z, que já chamam de alfa. A geração X então, realmente em dúvida se são humanos de verdade.
É normal e não significa que nada está piorando por si só: quanto menos você convive com uma pessoa, menos você a entende. Da tradição oral ao redor de fogueiras às redes sociais com filtros de garotas de anime, ainda somos nós passando perrengue para entender como pensa alguém diferente.
Vamos a um segundo ponto fundamental: tecnologia mexe com a forma como lidamos com o mundo. Eu argumento que no sentimento o ser humano não muda tanto assim, mas como esse ser humano age no mundo é muito impactado pela tecnologia presente na sua vida.
Como pessoa que viu o mundo antes da internet e depois, tenho um ponto de vista privilegiado: se você também viu pode até ter esquecido, mas era outro planeta. Fica ao critério pessoal decidir se era um planeta melhor ou pior, mas toda a parte de socialização, uma das fundações da nossa existência, mudou de escala muito rapidamente. O seu mundo antes era um grupo limitado de pessoas com algumas notícias sobre o resto. O seu mundo agora é uma confusão sobre quantos dos oito bilhões de seres humanos presentes realmente impactam a forma como você pensa.
Da mesma forma como carregamos coisas de uma forma diferente depois da roda existir, comunicamos coisas de uma forma diferente depois da internet existir. Tecnologia molda comportamento, e não precisa ser uma decisão racional. Com água encanada em casa, é muito difícil uma pessoa decidir que quer andar quilômetros até um rio e voltar carregando um pote pesado de água, não?
Rapidamente, o mundo que só deixava de ser sobre o seu caminho diário e suas pessoas mais próximas meia hora por dia num jornal televisivo virou informação constante sobre basicamente tudo o que acontece ao mesmo tempo. Tecnologia mexeu com socialização, seja a do dia a dia de formar relações, seja a de entender a humanidade como um todo e se posicionar diante dela.
Com esses dois fatores, choque de gerações e tecnologia da informação, existe uma forma de explicar toda a bagunça ideológica do século XXI. Pode não ser a explicação certa, mas é simples o suficiente para colocar uma pulga atrás da minha orelha. Vejamos se você vai reagir da mesma forma:
Se você for exposto constantemente a pessoas que não pensam como você e as coisas que elas fazem no mundo, faz sentido ficar estranhado. E mais, faz sentido achar que o mundo está acabando. Pessoas mais velhas dizem que os jovens vão acabar com o mundo desde… bom, desde antes que começamos a registrar a história.
Vamos juntar os pontos: até pouco tempo atrás, as pessoas que começaram a entrar nessa fase da vida “o jovem tem que acabar” não conseguiam nem ver direito o que a internet trazia sobre o mundo. Só que talvez nem tenhamos percebido: a era da internet já é meio velha agora, passou mais de uma geração. O público típico do “o mundo está perdido” mal sabia mexer no computador, quiçá no smartphone.
Mas o tempo passou. O cidadão de meia idade que começa a lidar com esse sentimento está inserido na cultura global, sendo impactado pelo conteúdo e produzindo conteúdo. A internet não é mais jovem. Ela é de quase todo mundo. Existe um ecossistema enorme de conteúdo para pessoas de mais de 60 anos. Você pode até não ver, mas ele está lá. Tem influencer que mal chegou na vida adulta, tem influencer na crise da meia idade e tem influencer que só quer que esses meninos parem de fazer barulho.
A gente está tão treinado para entender a cultura da internet como coisa de jovem que passou batido o envelhecimento médio da base de usuários. O jovem da geração alfa enxerga rede social como nós dos millenials para trás enxergávamos TV, algo estabelecido. Não existe rebeldia em usar rede social, é o padrão de quase todo mundo que não está literalmente em situação de miséria ou subsistência rural.
Então, era óbvio que com o passar dos anos, a visão de mundo que emana da internet passasse da inocência rebelde do jovem para o incômodo do pós-adulto com esses “jovens malucos”. As teorias conspiratórias, a ideia constante de que existe um plano para destruir tudo o que conhecemos, o choque de comportamento e o clássico incômodo da pessoa mais velha com comportamentos “adultos” de crianças e adolescentes viram parte integrante da informação que chega até a gente.
Muito se fala do crescimento da direita no mundo. Será que mudou alguma coisa na forma como o cidadão médio enxerga as coisas? Porque pela minha teoria aqui, não seria mais simples considerar que com mais pessoas mais velhas participando de verdade da comunicação digital, não pareceria que o mundo ficou mais conservador? Se puxar pela memória, nossos políticos estão mais de direita do que eram… nos anos 80 ou 90?
E mais… os jovens estão mais rebeldes hoje com a tal da lacração? Não sei o quanto você conhece de história do século XX, mas os jovens dos anos 60 eram uns malucos para seus pais e avós. Para a sociedade dos anos 50, a turma do amor livre era talvez até mais chocante do que a turma dos pronomes para a sociedade dos anos 2010. A humanidade passa por alguns impactos culturais fortes de geração para geração.
O que eu proponho de mudança de paradigma aqui é o fato da comunicação em massa. A pessoa mais velha reagindo contra o jovem está fazendo mais barulho do que nunca. E mesmo não achando que seja um plano maligno, esse alcance enorme dos reacionários nos pegou de surpresa e começou a montar uma espécie de culto do fim do mundo. 2025 é a prova do que acontece se de repente todas as pessoas dizendo que “esse mundo está perdido” falassem ao mesmo tempo.
É normal achar que o mundo está perdido e que o jovem não sabe o que faz. Não é normal ouvir tanta gente falando isso ao mesmo tempo. Sabe aquelas pegadinhas quando fazem um monte de gente correr na mesma direção para testar a reação de um incauto? O comportamento esperado é sair correndo também sem nem saber do quê. Achamos engraçado que seja assim, mas é uma estratégia evolutiva que funciona. Se você vir muita gente correndo de uma direção, o instinto te diz na hora que é para fazer o mesmo.
O culto do fim do mundo que é mais comum em quem se diz de direita, mas que também mostra sua cara feia na esquerda de tempos em tempos, parece ser resultado direto de ver tanta gente correndo ao mesmo tempo. Não era assim antes, as informações eram lentas e limitadas. Faz parte do nosso pacote básico de instintos correr junto. E se de repente (em termos de geração) milhões de pessoas começam a falar ao mesmo tempo que o jovem está acabando com o mundo, você tem ferramentas para lidar com isso sem… correr?
Como sempre, eu vou te dar a visão otimista: é dor do crescimento, a tendência é que não vire mesmo um culto do fim do mundo generalizado e acabemos todos em ditaduras violentas. Eu entendo que é missão do cidadão sabotar qualquer chance de autoritarismo, porque mesmo que você não acredite que vai ficar assim para sempre não é bom deixar acontecer nem por alguns anos, mas muito cuidado com a lógica de culto. Essa porcaria funciona: deixa a pessoa com medo, o medo faz ela ceder liberdades e acreditar que só um líder específico pode salvá-la.
Formar cultos de medo não é complicado, é algo que fazemos há milênios com muito sucesso (para os líderes do culto, não para os seguidores). E se a explicação para toda essa histeria for o choque de gerações óbvio somado com a tecnologia de alcance enorme gerando algo que sempre acontece em momentos de medo generalizado?
Não consigo afirmar que é verdade, mas explica muito com pouco. Velhos barulhentos e jovens chocados, quando normalmente deveria ser o contrário. É natural ficar confuso com esse mundo.
“É normal achar que o mundo está perdido e que o jovem não sabe o que faz. ”
Mas será que é normal mesmo, Somir? Quer dizer, acho que a questão não é bem “não saber o que fazer”, mas sim o fato de que, pelo menos nós, das gerações mais antigas, vemos que o jovem está cada vez mais burro, ignorante, não sabe o que faz, nem sabe como faz, enfim, é um inapto pra viver em sociedade. Inclusive, me lembro por alto que já falamos sobre coisa parecida em alguns textos da Sally sobre essa nova geração: gente cheia de mimimi, que não sabe se comportar em ambiente profissional, que é desinteressada, não tá nem aí pra nada, enfim. É esse tipo de gente, e esse tipo de comportamento, a meu ver, que preocupa a nós, mais velhos, e nos faz pensar que realmente o mundo tá acabando etc. Até porque, acho difícil imaginar um mundo, num futuro próximo, governado e dirigido por essa geração mimizenta que não sabe nem preparar o próprio café da manhã.
O problema é que eu não sei qual geração NÃO disse isso sobre as mais novas. Gerações que achamos que fizeram um trabalho decente em manter o mundo funcionando e avançaram questões de direitos humanos e acesso a recursos abundantes que temos hoje foram chamadas de burras, fracas e mimizentas.
A geração que foi lutar na Segunda Guerra contra os nazistas era mole para a turma da Primeira: “nem tinham que ficar o tempo todo em trincheiras! A gente aguentava gás mostarda sem ficar chorando crime contra a humanidade.”
Não é sobre dizer que a crítica que fazemos ao jovem não tem mérito ou função. É sobre dizer que existe uma mecânica natural de pesos e contrapesos entre gerações, os novos se rebelam contra as inúmeras falhas existentes na sociedade, os mais velhos reclamam e tentam segurar as rebeldias que parecem estúpidas. A teoria do texto é sobre um momento histórico da era da informação que faz isso parecer mais grave do que realmente é, criando um culto do fim do mundo.
Somir, peço desculpas por esta minha intromissão e eu posso estar enganado, mas talvez a questão seja que as rebeldias de agora NÃO pareçam estúpidas, mas SEJAM DE FATO estúpidas. Lembra do estudo que apontou que esta é a primeira geração com QI menor que o dos pais? Pois é…
Como eu disse, não é que a crítica não tem mérito ou função. Eu estou aqui fazendo críticas dia sim, dia também.
A sutileza aqui é saber se você está criticando esperando um resultado positivo ou não. O culto do fim do mundo termina no… fim do mundo, é uma ideia inerentemente derrotista.
“A teoria do texto é sobre um momento histórico da era da informação que faz isso parecer mais grave do que realmente é, criando um culto do fim do mundo”.
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Choque de gerações é algo que sempre existiu e, creio, sempre irá existir.
“A gente está tão treinado para entender a cultura da internet como coisa de jovem que passou batido o envelhecimento médio da base de usuários. ”
Muito louco pensar que tem crianças e idosos frequentando os mesmos lugares virtuais, praticamente.
Concordo com tudo. Por isso eu nem faço questão de interagir seriamente na maior parte da internet atual, a chance de eu estar discutindo com uma literal criança é cada vez maior.
E digo mais. Muitas pessoas, independente do espectro político, parece que praticam a religião do culto à morte e ao suicídio. Muita gente procurando justificativa pra desistir de tudo e ir de
arrasta: crise ambiental, crise populacional, crise política, crise existencial… Um pessimismo que beira à doença. No fim essa gentalha vai ser deixada pra
trás, se extinguir e o mundo vai continuar girando. É seleção natural que chama.