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Tempo africano.

Tempo africano.

| Somir | | 3 comentários em Tempo africano.

Tempo africano é uma expressão europeia antiga que começou como crítica. É a ideia de que na África negra, as pessoas não se importam com pontualidade. Não é que atrasam muito e inventam desculpas, não existe desculpa: atrasar ou mesmo deixar de aparecer num encontro sequer registram como problema para alguns povos de lá. E como estamos na Semana de Sísifo, me chamou a atenção como hoje tem gente tentando reapropriar a expressão como mera diferença cultural. Compreender não é sinônimo de justificar. Misturar as coisas é um exercício de futilidade intelectual.

Quer dizer que todo mundo na África, ou todo mundo que é negro ignora pontualidade? Não, boa parte do continente já se adaptou ao estilo ocidental de vida, mas alguns comportamentos diferentes do que esperamos acontecem, especialmente em lugares mais pobres. Todas as culturas têm suas peculiaridades estranhas para quem vem de fora.

Como já disse várias vezes, rejeito o racismo não por me fazer uma pessoa boa, rejeito por não ser a análise mais inteligente da realidade. Se você cair de paraquedas numa capital africana, pode demorar um tempo para perceber que não está numa grande cidade brasileira. Da mesma forma como se você cai num bairro rico de cidade brasileira ou africana, pode ficar em dúvida se não está nos EUA ou na Europa. Dadas condições parecidas, seres humanos são bem repetitivos em comportamento e valores.

A ideia de tempo africano vem da época da colonização pelos europeus. Ao lidar com povos que não tinham histórico de contato com sua civilização, os colonizadores lidaram com um enorme choque cultural: eram pessoas que viviam em grupos muito menores, essencialmente agrários. Pega esse povo e coloca eles à força no paradigma social europeu e você descobre o tempo africano. Se você não vive numa sociedade que conta o tempo com relógios, o tempo não é uma propriedade externa da realidade.

Relógio é o tipo da invenção que passa despercebida no seu impacto na humanidade. De repente o tempo não é mais algo baseado nas suas ações, ele existe numa máquina, separada da pessoa. Uma das anedotas mais comuns utilizadas para explicar o tempo africano é o europeu correndo para entrar num ônibus na África, sentando no seu lugar e esperando o ônibus sair. Depois de vários minutos, o europeu pergunta para o motorista africano quando o ônibus vai sair. O motorista africano olha surpreso de volta, e explica como se fosse a coisa mais óbvia do mundo: o ônibus vai sair quando estiver cheio.

Porque é óbvio: se ele sair com lugares vazios, vai perder dinheiro com combustível e manutenção desperdiçados, e até por altruísmo, vai que tem alguém precisando da viagem e ainda não conseguiu chegar? Se você entende o tempo como algo fora de você, essa ideia de tempo africano é bizarra, porque significa que todo mundo vai atrasar ou mesmo furar um encontro. Se você entende o tempo como algo interno, que só vale quando você está presente, não faz diferença que horas são.

Durante a maior parte da nossa existência neste planeta, essa noção de tempo foi a dominante. Chamam de tempo africano agora, mas era só tempo no passado. Sem relógios o tempo não existe da forma como entendemos agora. As pessoas se encontram quando chegam num mesmo lugar, as coisas demoram o tempo que demoram. É parecido com a ideia de Chronos e Kairós: Chronos é o tempo que medimos e controlamos, Kairós é o tempo da natureza. A planta demora o tempo que demora para crescer, ela não se importa se você está com pressa.

Se você não tem um conceito de tempo divisível e compartilhado entre as pessoas, a própria ideia sobre tempo de um povo é completamente diferente de como entendemos hoje. Você não marca hora. Eventos são baseados na natureza, por isso que tantos dos nossos festivais combinam com passagem de estações. Sem um calendário, o tempo é dividido entre blocos climáticos. Na melhor das hipóteses você tem blocos mensais baseados nas fases da Lua.

Você só se compromete em longos blocos de tempo. E mesmo assim, sem os ponteiros do relógio correndo em paralelo para todo mundo, atrasar não é a mesma coisa que é para a gente agora. O ponto aqui é que grupos humanos que não estão acostumados com o fluxo de tempo moderno simplesmente não conseguem entender qual o problema de atrasar algumas horas ou simplesmente não aparecer. “O tempo é seu, vai fazer outra coisa enquanto isso! Quando eu chegar a gente vê isso.”

Se quiser, pode entender como uma sabedoria ancestral que é o antídoto perfeito para a ansiedade do Século XXI. A gente acaba ficando escravo do relógio, e tem algo no âmago do ser que diz que não precisa ser assim. Evoluímos num mundo sem relógio. O tempo africano é o tempo humano. Você não quer terminar suas tarefas de acordo com o ponteiro, você quer terminar quando terminar. Seguir o relógio foi uma concessão que fizemos em várias sociedades.

E aqui, importante separar compreensão e aprendizado de baboseira ideológica. Porque na sanha de se declarar uma boa pessoa contrária ao racismo estrutural, tem gente que tenta vender o tempo africano como 1) invenção africana e 2) mera diferença cultural. Tratar essa ideia de descaso por pontualidade como se fosse um conhecimento ancestral reprimido pelo colonizador é glorificar atraso civilizatório.

O fato de chamarem de tempo africano é uma ofensa ao povo negro dos diversos países do continente. Até os intelectuais que querem vender essa ideia como algo cultural que não merece as críticas que recebe estão empurrando ideias racistas. Ninguém precisa ser negro e nascer num país africano para enxergar tempo dessa forma, basta ser humano e não ter acesso a relógios. O europeu demorou séculos para internalizar a ideia de tempo externo até começar a viver em função de minutos e horas.

Quando olhamos para o mundo hoje, percebemos que existem vantagens em aceitar o domínio do relógio. Sociedades regidas por tempo divisível em parcelas menores produzem mais, perdendo qualidade de vida em alguns lugares, mas ganhando diversos processos eficientes que geram abundância de recursos e previsibilidade. A conta fechou para os povos que adotaram o tempo externo. Tanto que tempo africano não é a realidade da parte mais abastada da população do continente. Quem consegue fazer a transição começa a acumular mais recursos e oferecer qualidade de vida maior para seus descendentes.

O esforço de retomar tempo africano como algo motivo de orgulho é um exercício de futilidade acadêmica. Ao invés de lutar contra o preconceito de chamar atrasos na África de tempo africano, isolando numa cor de pele um comportamento humano generalizado que é resultado do ambiente, luta-se contra a ideia de que atrasos são uma coisa ruim. O preconceito vira ficar incomodado com alguém que não cumpre o que promete tendo todas as condições de cumprir. Se a pessoa tem um relógio, não é sabedoria ancestral atrasar, é falta de respeito com o outro mesmo.

E da mesma forma que outros povos passaram por essa fase de ter relógios mas não darem muita bola para eles, uma parte do continente africano vai ter que passar por isso. Se justamente na vez deles a mentalidade virar para entender como cultura que não deve ser criticada, é um abandono. Quem fica defendendo essa ideia de que atraso é cultural continua se beneficiando de seguir o relógio e ganhar os recursos extras que isso proporciona. Sociedade rica para mim, sociedade “pura” para você.

E sim, eu acredito que exista o tempo brasileiro. 15 minutos de atraso é pontualidade no Brasil. É uma versão menos hardcore do tal do tempo africano, mas existe. O ônibus até atrasa, mas sai vazio se precisar. E se você estava tentado a conectar cor de pele com pontualidade, lembre-se do Brasil. A pessoa atrasada aqui vem em todas as cores e classes sociais. É uma prova de que é cultural e não individual. O Brasil segue o relógio, mas a cultura do jeitinho tolera o atraso. Sua visão de tempo é baseada no grupo humano ao seu redor.

Os fatos apontam para que aumento de pontualidade e previsibilidade aumentam qualidade vida para todo mundo, mesmo que não seja de graça para nossa saúde mental. Precisa adicionar uma boa dose de disciplina para não acabar nas garras da ansiedade, mas quando as coisas encaixam, encaixam muito bem.

É um exercício fútil revisar nossas opiniões sobre evolução social para não parecermos intolerantes, porque você se esforça, esforça, e tudo o que consegue é atrapalhar um povo a conseguir as mesmas benesses que os outros. Contar minutos é chato, nem é o que a natureza desenvolveu para a gente originalmente, mas… funciona. Acho razoável deixar quietos povos que não querem viver essa vida, mas não oferecer a opção? Não seria a mesma coisa que achar que eles não são capazes de fazer diferente?

Chamar de tempo africano de forma ofensiva ou elogiosa não muda o fato de que ainda é atraso. Inutilidade da mesma forma.

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