Skip to main content

Colunas

Arquivos

Desumanização.

Desumanização.

| Sally | | 4 comentários em Desumanização.

Todo ser humano, independente da cultura, classe social ou religião, vem com uma trava de fábrica que lhe faz sentir antinatural matar outro ser humano. Se supõe que seja um mecanismo evolutivo dos tempos em que todos tinham que cooperar com todos para sobreviver em um mundo hostil. Essa trava não te impede de matar outra pessoa, mas te torna menos eficiente em fazê-lo.

Por isso, durante muito tempo, fez parte do treinamento de soldados de exércitos pelo mundo todo tentar eliminar essa trava, dessensibilizando seus soldados antes do combate. Como eu disse, essa trava não te impede de matar alguém, mas pode te levar a hesitar alguns segundos, o que, em uma guerra, geralmente significa a morte.

Essa trava pode ser removida de diversas formas, desde colocando as pessoas para atirarem diariamente em imagens realistas de seres humanos até campanhas de medo, desumanizando o inimigo, colocando-o como alguém perigoso, cruel e que quer seu mal. Esta última funciona muito bem. Tão bem que essa dinâmica parece estar sendo importada para a nova modalidade de guerra que vivemos: a guerra ideológica.

À medida que a polarização foi aumentando, estratégias de guerra começaram a ser usadas por ambos os lados para “vencer”. E por “vencer” não estamos falando do povo triunfar em seus ideais e sim de político filho da puta conseguir poder, prestígio e dinheiro, cagando para as necessidades do povo, mantendo o povo distraído, desunido e brigando.

A tática da desumanização é hoje o carro-chefe na guerra ideológica que assola diversos países no mundo, entre eles, Brasil e EUA. Se você desumaniza o rival com eficiência, ninguém vai ouvir o que ele fala, as pessoas vão pegar antipatia por ele e as chances de trazer mais gente para o seu lado, por coerção, aumentam, afinal, ninguém quer ser tachado de algo ruim e se você não está a favor do lado A, só pode ser favorável ao lado B.

Caso você não esteja ligando o nome à pessoa, permita-me especificar como isso acontece no Brasil: um lado te diz que o outro lado é, entre outras coisas, nazista, fascista, racista, machista, odeia o pobre, não quer ver o pobre bem, explora o trabalhador e é homofóbico. O outro lado te diz que os rivais são comunistas, pedófilos, promíscuos, vagabundos, drogados, contra a família, perseguem os cristãos e são a favor de bandido e traficante.

Certamente, em algum momento, você já ouviu estes contrapontos. E provavelmente, em algum momento, você foi pressionado a se posicionar em um dos lados sob a presunção de que, se não o fizesse, você era tudo de ruim do outro lado. Mais provavelmente ainda, se, por algum motivo, você criticou algo pontual de um dos lados, deve ter sido desacreditado te jogando automaticamente para o outro.

Um exemplo: se você disser que acha desproporcional uma mãe de família ser condenada a uma pena maior do que estupro ou homicídio por passar batom em uma estátua, certamente virá alguém desqualificar seu argumento afirmando que você é bolsonarista ou “extrema-direita”. Da mesma forma, se você se disser a favor de aborto por entender que se trata de uma questão de saúde pública, virá alguém te jogar no saco dos petistas com todas as ofensas correlatas destinadas a esse grupo.

Isso, meus queridos, é a mesma desumanização que faziam com o soldado inimigo na guerra. Se atribuem adjetivos extremos, dos quais muitas vezes os interlocutores nem ao menos sabem o conceito preciso, para te desqualificar, para te calar, para te jogar na lama, assim você não ousa criticar a preciso ideologia da pessoa ou seu querido político de estimação.

Se desumaniza para tentar desmoralizar a pessoa, anular seus argumentos, calar a boca, intimidar, fazer com que os outros não respeitem ou repudiem. É ataque através da desumanização. E quem faz, geralmente, não percebe o que está fazendo. Só quem te insufla a fazê-lo entende a tática e suas consequências.

Quem o faz é massa e manobra, idiota útil, pessoa de pouco cérebro que está cega pelo medo, pela ideologia ou que apenas precisa se sentir bem consigo mesma achando que está fazendo um bem para o mundo. Quem o faz acredita, de coração, que está fazendo algo bom, combatendo o mal, lutando por um mundo melhor. Pois bem, não está. Todos vocês que fazem isso, não importa de que lado estejam, tornam o mundo pior, mesmo sem perceber.

Charlie Kirk não foi assassinado por “ser fascista e nazista”. Ele foi chamado de fascista e nazista à exaustão para desumanizá-lo, na tentativa de destruí-lo politicamente e, como consequência dessa desumanização, ficou mais fácil que um imbecil com meia dúzia de parafusos soltos o mate. Como sociedade, vocês estão agindo como facilitadores de homicídio ao desumanizar alguém. Será que isso é mesmo uma boa ideia?

Uso o exemplo do Charlie Kirk por ter acontecido alguns dias atrás, mas ambos os lados fazem. E é um desfavor, não importa de qual lado venha. E a maior parte das pessoas que o faz não tem ideia do mal que está causando. Na verdade, a pessoa acha que está fazendo o bem e periga nem ver relação entre a desumanização e tentativas de homicídio.

E continuam fazendo mesmo depois que a pessoa foi morta. Esta semana assistimos um show de horrores em redes sociais de pessoas que, supostamente tiveram oportunidade de estudar e deveriam ser esclarecidas, comemorando publicamente uma morte bárbara de alguém apenas pela vítima ter uma ideologia diferente da sua. A desumanização continua. “Bem-feito” que mataram ele, ele mereceu pelas coisas que falou.

A sociedade está doente. A ponto de gente que desumaniza, antes, durante ou depois da morte ficar indignada por estar perdendo o emprego. As pessoas realmente não conseguem ver o problema. As pessoas não entendem o conceito de liberdade de expressão e acham que qualquer trava no que elas falem é censura. É desesperador. A desumanização está virando um novo modo de funcionar.

Todo mundo se acha certo. Todo mundo se acha coberto de razão. Todo mundo acha que tem bons motivos para desumanizar alguém, seja o fato da pessoa ser ruim, má, perigosa ou qualquer outra coisa. Essas pessoas que estão imersas na desumanização como método a gente não vai alcançar, nem com este texto, nem com conversa. Para essas pessoas, resta a lei, que no Brasil é bem fraca. Resta a sua iniciativa de não contratar ou demitir. Resta o seu repúdio de todas as formas possíveis. Mas para alguns talvez ainda exista resgate.

Para a pessoa que ainda não esteja totalmente imersa na desumanização talvez este texto tenha alguma utilidade. Também pode ajudar quem nunca tenha entrado na desumanização por sentir que tinha algo errado ali que a pessoa não entendia bem o que era e causava um mal-estar: agora isso tem nome, e é mais fácil combater o que tem nome. Ainda tem gente que consegue voltar ou não entrar, então, este texto vale à pena.

Acima de qualquer coisa, de cor, religião, ideologia ou nacionalidade, somos todos seres humanos. E se esse vínculo não basta, além de seres humanos, vocês são todos brasileiros, um país, uma nação, um povo, mega sacaneado por políticos e figuras de poder. Um povo que tem força e poderia se unir e fazer valer a sua vontade, conquistar direitos, viver melhor, mas, em vez disso, está imbuído da sanha de desumanizar quem pensa diferente.

Todos nós temos concordâncias e divergências com outras pessoas. Você nunca vai encontrar uma pessoa com a qual concorde com tudo ou discorde de tudo. Cabe a nós escolhermos onde queremos focar: nas divergências ou nas concordâncias.

Aqui mesmo no Desfavor vocês podem ver isso. Somir e eu somos muito diferentes em algumas coisas, mas em vez de olhar um para o outro como inimigos por isso, nos unimos e fazemos o que falta em um ser suprido por aquilo que sobra no outro. Toda semana discordamos na coluna Ele Disse, Ela Disse e concordamos na coluna Desfavor da Semana. E vem dando certo, por mais de 15 anos.

Se, em algum ponto a gente tivesse resolvido focar na discordância, poderíamos estar brigados e sem escrever o Desfavor. Somir diria que eu sou uma controladora, chata, fútil que fala sobre temas superficiais e eventualmente um potencial perigo de processo para o blog. Dependendo do ângulo, dá para me ver como tudo isso, como um desfavor para o Desfavor. Eu poderia ver o Somir como um indisciplinado, relapso, megalomaníaco que só escreve para ele mesmo e arrogante que acha todo mundo que discorda dele burro. E eu poderia achar ele um desfavor para o Desfavor.

Porém, escolhemos olhar para o que nos une e conversar sobre o que nos separa, para que aquilo que nos separa possa ser atenuado e se torne menos insuportável para ambos. Escolhemos olhar para o que nos separa não como uma característica de um filho da puta que quer destruir o Desfavor e sim como um equívoco, uma falha ou um erro de alguém que, assim como o outro, está querendo fazer o melhor pelo Desfavor.

Por mais que se desumanize o outro lado à exaustão, acho que todo mundo aqui concorda que, salvo raríssimas exceções, todos os brasileiros querem o melhor para o Brasil, afinal, é seu país. O caminho que cada um dos lados considera ser o melhor pode ser altamente questionável, mas dificilmente algum dos envolvidos está pensando “vou fazer isso pois eu quero destruir meu país!”.

As pessoas estão fazendo o que elas acham certo, estão fazendo o melhor que podem de acordo com sua capacidade cognitiva, sua vivência e seus medos. Presumir, apenas pelo seu posicionamento ideológico, que elas são más, ruins, que querem te destruir, está apenas na sua cabeça e é fruto dessa cultura da desumanização, de colocar o outro como inimigo, como um risco, como alguém que pode te destruir.

Mas, se é tão simples, por qual motivo a maior parte das pessoas está caindo nessa armadilha de desumanizar seu colega, povo do mesmo povo, cidadão do mesmo país? Pelo mesmo motivo de sempre: traz ganhos secundários que pegam justamente nos maiores pontos de carência do brasileiro.

Primeiro, essa compulsão por ser “bom” ou “do bem”, que eu atribuo ao massacre religioso que europeu fez quando chegou ao país. É uma necessidade doentia de querer ser visto como bom, virtuoso e correto, em parte por não ser, em parte por medo de uma punição imaginária que permeia o inconsciente coletivo. Quando existe um inferno (ou coisa que o valha), é muito importante que existam pessoas mais incorretas que a gente, assim, são elas que vão para o inferno e a gente, pelo parâmetro comparativo, fica do lado do bem e vai para o céu. Então, vamos passar uma vida apontando o defeito dos outros aos berros, para tentar esconder os nossos.

Obviamente a questão não é tão simples, mas há um limite do quanto você pode aprofundar em um único texto. Tem muito mais mecanismos e interesses por trás disso, mas o ponto principal é: estão induzindo um povo a desumanizar seu semelhante a ponto de estar ficando fácil matá-lo. Se o preço para manter o povo ocupado brigando for um grupo desumanizando o outro até que se quebre a trava e se torne mais fácil matar outra pessoa, quem está no poder vai pagar.

Desumanizar uma pessoa que discorda de você, por pior que seja a barbaridade que ela fala, é um desfavor para toda a sociedade, mas principalmente para o povo. Não sai nada de bom de desumanização. E está nas suas mãos escolher se quer focar no que te une ou no que te separa de outra pessoa.

“Quer dizer que eu tenho que abraçar e ser amigo de uma pessoa que eu detesto?”. Não, Pessoa Quer Dizer, não quer dizer isso não. Quer dizer que, por mais que você deteste, ache a pessoa errada e até nociva, não devemos desumanizar a ninguém. Pode se afastar. Pode criticar. Só não pode desumanizar. E, seguindo essa linha, eu aproveito para informar que aqui no Desfavor não vou mais aprovar nenhum comentário que esteja desumanizando uma pessoa ou um grupo.

As pessoas têm que ter o direito de discordar, de ter outro posicionamento e inclusive de ter pensamentos merdas, toscos, pequenos, sem serem desumanizadas. “Ain tá defendendo bandido”. Não, meu anjo, estou defendendo uma sociedade mais sã, na qual tenhamos mais travas antes de matar o coleguinha. Se o colega é nazista, ele comete crime e para ele existe a lei. E sabemos que quase ninguém que é chamado de nazista ou comunista realmente é nazista ou comunista, 99% dos casos é desumanização pura.

Então, sempre que vocês caírem na armadilha de pensar que tal pessoa ou tal grupo “nem gente é”, que é fascista, comunista, nazista, pedófilo ou qualquer outra merda, respire fundo e lembre desse texto: vocês são filhos da mesma pátria, desumanizar seu irmão é ruim para ele, para você e para todo mundo. Dá para discordar e criticar sem desumanizar. Não seja baixo, não seja vil, não seja rasteiro.

Como eu disse no começo, não temos esperança de mudar o mundo com este texto, a desumanização vai continuar galopante, mas temos esperança de ajudar algumas mentes, não só a não fazer, mas a compreenderem que tem que se afastar de pessoas que fazem isso. É preciso se policiar, pois quando se vive em uma sociedade que normaliza um comportamento, é muito fácil cair nesse comportamento sem perceber.

Comentários (4)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.