Grandes mentiras.
| Somir | Flertando com o desastre | 4 comentários em Grandes mentiras.
O jornalismo profissional anda preocupado: sua fonte de renda está secando. Primeiro foi a queda vertiginosa na audiência disposta a pagar por um jornal ou uma mensalidade. Depois veio uma mudança de foco de anunciantes para influencers. Agora, a IA está pegando suas informações e reproduzindo sem pagar nada por elas. E se você acha bem-feito… cuidado com o que deseja.
Muitas vezes chamado de quarto poder numa democracia, a imprensa tem um papel essencial de informar o cidadão sobre o que acontece no mundo. Sem pessoas fazendo o trabalho de coletar informações e resumir para consumo geral, é praticamente impossível para um indivíduo ter qualquer ideia sobre como se posicionar sobre as estruturas de poder que existem ao seu redor.
Não é à toa que a primeira coisa que ditaduras controlam é a imprensa. Nos países mais totalitários, apenas o Estado pode produzir informação, sob pena de prisão ou morte para quem quiser competir no mesmo mercado. Transformam imprensa em máquina de propaganda e censuram todo o resto. Controlar a imprensa é tão importante quanto controlar o Legislativo e o Judiciário.
O jornalismo é uma ponte direta entre quem tem o poder e quem em tese cede o poder. É a ferramenta mais eficiente que inventamos para manter os poderosos sob algum controle. Onde tem imprensa livre sempre existem riscos para quem abusa do seu poder. Informação adiciona caos no sistema, porque você não sabe exatamente qual vai mexer com o povo. Sem imprensa, o sistema é previsível o suficiente para que déspotas consigam se planejar por décadas.
Com imprensa livre ações tem consequências na opinião pública. E opinião público mexe com eleições, uma das únicas formas de controlar esses agentes. E mesmo no caso de sistemas mais autoritários, informações indesejadas podem ser o estopim de uma revolução.
Acho importante dizer que imprensa é fundação indispensável da sociedade democrática. E vou mais longe, sob o risco de irritar muita gente: imprensa profissional vale mil vezes mais que qualquer influenciador, por mais que você odeie as opiniões de jornalistas e ame as do seu influenciador preferido. São coisas diferentes por causa da parte… mecânica do trabalho.
Alguém tem que botar o pé na rua, entrevistar pessoas, analisar documentos, ver ao vivo e filmar ou fotografar cenas. É uma parte chata e repetitiva que nenhum influenciador consegue fazer sozinho. Tem que ter gente para dirigir o carro, para fazer manutenção de equipamentos, tem toda uma logística que a internet até facilitou, mas que não desaparece.
Cobertura de eventos por rede social não substitui jornalismo. Complementa muito bem, porque adiciona mais imagens e versões em tempo real, mas de forma nenhuma é a mesma coisa. Não existe esse cenário onde a grande mídia desaparece e o cidadão assume a responsabilidade. Nós podemos ter imprensa ou podemos não ter imprensa. Essa são as duas opções.
O que temos aos montes hoje são analistas e influenciadores políticos. Pessoas que, a partir do produto gerado pelo jornalismo, oferecem uma camada extra de opinião. Nós, por exemplo, somos curadores e analistas, mas não produzimos as matérias. É um complemento, não é o jornalismo. Se por um acaso os meios de imprensa particulares falirem, esse povo todo que trabalha em cima das notícias não conseguem cobrir o buraco.
Durante o seu trabalho de coletar informações, o jornalista não é alguém que analisa o mundo todo: é alguém focado numa questão. Para que pessoas como eu consigam juntar dados e tirar conclusões, alguém teve que bater perna na rua, conversar com um monte de gente, muitas vezes em lugares perigosos, em temas que não geram recompensa financeira imediata.
Com contas para pagar, as pessoas não conseguem fazer isso no ritmo que os profissionais fazem. Mesmo que a pessoa tente monetizar a atenção que recebe nas redes sociais, isso causa um segundo problema: a pessoa vai ficar presa no que rende dinheiro para ela. Isso gera uma fraqueza em quem coleta as informações, primeiro porque ela fica tentada a focar no que gera mais atenção, segundo que ela é mais vulnerável a pressões.
Se você é um grande conglomerado de mídia e uma grande empresa diz que não gosta de como você fala dos produtos dela, você tem tamanho para enfrentar. Não quer dizer que sempre enfrentem, mas raramente um cliente publicitário tem força suficiente para ameaçar grandes jornais e canais de notícias. Nem mesmo o governo consegue em países minimamente democráticos.
É um perigo estar sozinho contra grandes adversários. A imprensa de massa com todos seus defeitos ainda têm esse ponto extremamente favorável à liberdade de um povo. Jornalista que não precisa resolver sozinho a parte de divulgação do seu trabalho e que tem o suporte financeiro e jurídico de uma grande empresa é alguém muito mais talhado para informar de forma independente.
Evidente que isso não torna o jornalismo imune a ser tendencioso, ainda são seres humanos trabalhando numa estrutura com interesses corporativos. É claro que podemos e devemos desconfiar do que imprensa de massa nos diz, às vezes a informação é distorcida por idealismo, às vezes por dinheiro, mas se você acha que a imprensa é suja agora com uma estrutura enorme por trás… imagina se ela virar um monte de pessoas isoladas diante dos interesses de grandes empresas e governos?
Se continuarmos nesse caminho de queda constante das fontes de renda do jornalismo “clássico” numa sociedade sendo manipulada por poderosos que querem controlar a imprensa para só dizer o que querem, aí sim toda a histeria contra a imprensa profissional vai se realizar. Se eles caírem, a democracia fica sem sustentação. E não vai ser o lobo solitário na rede social que vai ser capaz de cumprir essa função.
Uma pessoa sozinha não vai ter tempo ou recursos para investigar algo a fundo e ainda sobreviver, e quando mexer em algum vespeiro, não vai ter força institucional para enfrentar. Os blogueiros bolsonaristas quase sempre estão falando asneira, mas eles são um bom exemplo do que acontece quando você não tem estrutura para peitar algo como um governo. O Xandão corre solto contra eles, e só porque o Elon Musk comprou a briga com seus bilhões que nos EUA eles conseguiram um pouco de segurança.
Se continuassem sozinhos, não tinha o que fazer. Vê se o STF vai para cima da Globo ou da Folha de SP? Às vezes eles batem nos juízes, é mais raro, mas acontece. Você realmente acha que os poderosos preferem dar entrevista para os jornalistas desses grandes veículos ao invés de mandarem eles calarem a boca? Quando foi contra um bando de perdidos bolsonaristas, não teve pedido de entrevista para esclarecer as coisas para eles, teve censura prévia descarada. Esses bolsonaristas são uns imbecis? São. Mas de repente a lei brasileira podia ser interpretada para evitar que eles se expressem no futuro, a definição direta de censura prévia, algo proibido no Brasil.
É um jogo de poder, e até mesmo grandes grupos de mídia que você acha insuportáveis adicionam caos suficiente no sistema para manter outros poderosos sob algum controle. Pode ser até a Jovem Pan, se eles abrirem um esquema de corrupção do governo Lula, o tamanho da empresa é suficiente para terem que lidar com a notícia sem poder censurar. Porque o jornalismo profissional é corporativista: os meios de comunicação podem se odiar, mas se vazar alguma ameaça contra a liberdade de expressão de jornalista, eles se unem para fazer o povo ficar sabendo.
Imagina alguém ligando para o William Bonner e dizendo que é melhor ele não falar nada sobre a empresa X? Se fosse só uma pessoa, podia dar certo. Mas é a face do jornalismo de uma das maiores empresas do Brasil. Tem bilhões em poder atrás dele. Não só viraria notícia, como seria a mais comentada do país. Político precisa ser educado com jornalista de grandes redes e jornais, senão só piora para ele.
Se a gente fizer uma transição entre imprensa de grandes grupos para imprensa de influenciadores, quem ganha poder são justamente grupos que deveríamos confiar menos ainda que a imprensa: empresas e políticos. Quem já tem o dinheiro e o poder na mão agora está rindo feliz com os números cada vez mais fracos da imprensa. Porque sabem que quanto mais seus recursos secarem, menos podem resistir às suas pressões.
O que me preocupa é que a tecnologia está criando muitos buracos para a renda do jornalismo escapar. No começo as pessoas pagavam pela notícia em jornais físicos, depois a publicidade começou a pagar na era da TV e no começo da internet, mas com os modelos de negócio mudando para veículos cada vez menores e com a IA roubando na cara dura as notícias produzidas por pessoas, podemos estar vendo a espiral da morte do modelo de jornalismo de massa financiado por publicidade.
E o que aparece como alternativa me soa muito pior: pulverização de fontes de informação sem tamanho suficiente para enfrentar pressões externas. Se você faz como eu e senta para escrever um texto sobre as notícias que leu, você não faz jornalismo, você modifica o conteúdo produzido pelo jornalismo. As pessoas parecem achar que é uma coisa boa que mais pessoas ajam como seu próprio jornal porque vamos ver mais verdade. Eu argumento o contrário: vai faltar independência e trabalho prático para falar a verdade.
Super a favor de você encontrar bons curadores de conteúdo, mas sem esquecer que alguém tem que produzir o conteúdo. Acho muito possível criticar quando a imprensa falha sem ter esse desejo suicida de ver a imprensa falindo. Se ela cair, a liberdade cai junto. E vou além: o pouco de paz que ainda temos também, porque grandes meios de comunicação servem como estabilizadores de realidade, criando uma visão compartilhada de mundo para bilhões de pessoas por vez.
Sem isso, radicalização é muito mais perigosa. A pessoa não tem mais nada além da bolha, qualquer mentira pode virar verdade porque num sistema de imprensa feito por influenciadores, você só vai ver o que o algoritmo acha que te mantém grudado na tela: informações (reais ou não) que confirmem sua visão de mundo e informações (reais ou não) que te deixam medroso ou irritado com o que o “inimigo” está fazendo.
E mais nada no meio. Eu não sei como a imprensa de massa vai navegar por essa secura de financiamento, mas mesmo ficando puto com o jeito que muitos deles noticiam as coisas, eu torço demais para eles conseguirem se manter de pé. Precisamos de imprensa grande o suficiente para enfrentar os outros poderes. Eu não acho que seja possível ter liberdade e democracia sem grandes empresas no mercado da informação.
“Who watches the Watchman?”
Meios alternativos devem ser sempre complementares. O que tínhamos (e espero que não percamos) são outros meios independentes deixando claro à imprensa que várias atitudes tendenciosas devem ser criticadas.
“Meios alternativos devem ser sempre complementares”. Concordo, Torpe. Por isso é que eu sempre fico com o pé atrás com essa expressão depreciativa “velha mídia”. Não gosto. E a tal da”nova mídia”, pra dizer a verdade, é tão ou mais tendenciosa, viciada, polarizadora e falha (por deficiências de estrutura e de formação técnica) que sua antecessora…
Tive que compartilhar o link deste texto de hoje com um monte de gente do meu convívio, Somir. Eu me senti compelido a isso porque você acertou em cheio! A popularização da internet deu voz a muitas pessoas que, cansadas das mancadas e da tendenciosidade da chamada “imprensa tradicional”, passram a acreditar que poderiam ser jornalistas também. Só que fazer bom jornalismo DE VERDADE dá trabalho, consome tempo e dinheiro, requer preparo técnico e intelectual que não é todo mundo que tem e tampouco é algo que possa existir sem uma grande infra-estrutura por trás. Isso sem falar também em uma coisa chamada “credibilidade”, que leva décadas para ser construída e apenas um segundo para desmoronar. Tem a ver com respeito à ética e com a confiabilidade gerada pela precisão e correção com que a informação é tratada diariamente. Ficar espalhando por aí fofocas, achismos ou meras invenções com muito estardalhaço não passa de sensacionalismo puro e simples. E, como você disse, imprensa forte é essencial para o equilíbrio entre poderes e para a liberdade de expressão. Claro que há muita podridão no jornalismo, mas, “ruim com ele, pior sem ele”.
Significa: https://www.facebook.com/jornasfazendojornice