História sem começo.
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Émerson se espremia entre os caixotes, tentando ouvir melhor a conversa. A voz do segurança de Armando era fácil de identificar, um outro homem interferia às vezes, concordando. Rouco, grave, familiar de alguma forma. Enquanto formulava teorias sobre quantas pessoas estavam envolvidas, uma voz feminina começa a falar sobre o pagamento.
Ele reconhecia essa voz também. A mente procurava desesperadamente por explicações alternativas, não queria acreditar no que estava ouvindo. Era Letícia. O medo de ser descoberto não era mais obstáculo: ele levanta a cabeça rapidamente para confirmar seu maior medo. Uma das caixas de madeira arrasta pelo chão, fazendo barulho.
Por uma fração de segundo, Émerson e Letícia trocam um olhar. Ela aponta para a direção dele, que se esconde novamente. O coração partido dele bate de forma acelerada. O primeiro tiro ecoa pelo galpão. Émerson procura por um caminho de fuga, e antes do segundo tiro, escuta os passos acelerados dos dois homens.
A porta pela qual entrara com certeza estaria no caminho dos dois, ele precisava de uma alternativa, rápido. Ele enxerga uma placa pendurada do teto, uma seta apontava para a direita, descrevendo algo em chinês que ele não tinha capacidade de entender, mas o ícone de uma maleta sugeria que fosse a área administrativa da fábrica. Ele dispara naquela direção.
Ao virar a esquina rumo a uma saída de garagem fechada, escuta o terceiro tiro. Passou perto. Muito perto. Colada na parede, uma escada de ferro subia até o segundo andar, ele a segue tão rápido quanto pode. A porta no final parecia trancada. Ele dá uma ombrada, duas, três. Nada dela ceder. Os passos ficam mais próximos, até que uma pistola entra em seu campo de visão por trás da parede atrás da escada. O segurança coloca a cabeça para enxergar melhor. Quando percebe que Émerson está desarmado, ele se posiciona, arma apontada.
Émerson levanta as mãos. O outro homem se posiciona também ao lado do segurança. É o detetive Ferreira. As últimas semanas começam a fazer mais sentido. Ferreira tinha o demovido de contar tudo para a polícia, dizendo que tinha gente do Armando infiltrada. Não era mentira. A escolta na frente da sua casa, os homens que o seguiam, nenhum deles era policial.
Ferreira começa a avançar alguns passos, arma também em riste. Ele diz para Émerson descer lentamente, com as mãos visíveis. Émerson obedece, pensando em como escapar daquela situação. Acabaram de atirar em sua direção, era óbvio que ele seria eliminado. Talvez quisessem mais informações agora que o tinham em mãos. Talvez… ele pudesse ganhar mais algum tempo.
O detetive puxa algemas do bolso do paletó. O segurança se aproxima um pouco mais. Ferreira pede para Émerson esticar os braços em sua direção. O segurança pega o telefone e começa a digitar algo. Nesse momento, Ferreira se volta para o segurança, grita “Cuidado! Ele está armado!” e atira três vezes na cabeça do segurança, que desaba imediatamente. Émerson fica em choque, recuando as mãos. Ferreira se volta para Émerson e faz sinal de silêncio com o dedo em frente a boca. Ele aponta a arma para o alto e atira mais duas vezes. Com outro movimento da mão, ele aponta para um botão na parede e depois para a porta da garagem. Joga a arma no chão, pega outra no coldre dentro do terno e corre na direção oposta, gritando para Letícia que “ele fugiu”.
Depois de vacilar por alguns segundos, Émerson pega a arma, aperta o botão vermelho na parede e vê a porta automática da garagem se levantar. Apesar de nunca ter usado uma arma antes, sente-se estranhamente confortável com a pistola deixada por Ferreira. É como se fosse memória muscular manusear a arma. Ele passa pelo portão, olha para os dois lados, não vê ninguém.
Segue em avanços curtos entre obstáculos, sempre procurando proteção. Por trás de uma pequena casa de máquinas, consegue observar mais homens armados vindo do estacionamento. Eles se vestem como o segurança, e parecem conversar entre si através de aparelhos instalados nos ouvidos. Se quiser chegar até seu carro, Émerson precisa passar por eles. Enquanto espera uma oportunidade, ele ouve um zunido vindo de cima.
Um drone. Olhando de volta para os homens armados, percebe que eles começam a se mover. O drone começa a descer, e ele percebe algo parecido com uma granada presa na parte inferior do aparelho. O reflexo é imediato, Émerson aponta e acerta um tiro perfeito no drone, evitando a granada. O objeto começa a chacoalhar no ar e vai descendo rapidamente.
O som do tiro entrega sua posição, e os primeiros tiros começam a bater no concreto da estrutura a sua frente. Émerson se abaixa, costas para a casa de máquinas. Ele respira fundo, e entre os estampidos, calcula a posição dos passos de cada um dos três homens que vinham em sua direção.
Ele se joga para o lado direito da estrutura, e assim que as mãos ficam firmes, dispara. Dois dos homens caem imediatamente. O terceiro parece ter sido acertado na altura do ombro, e procura abrigo atrás de uma parede avançada na lateral do galpão. Só quando volta para a proteção que percebe a sequência inacreditável de disparos precisos.
Aquela conversa estranha com Letícia sobre vidas passadas finalmente fazia sentido agora. Ela não estava falando sobre reencarnação. Ninguém atiraria da forma como ele acabou de atirar se não fosse extremamente experiente e bem treinado. Nada disso estava em sua memória, até poucos minutos atrás ele era apenas um jornalista que ficava nervoso até mesmo para confrontar alguém com uma opinião diferente.
O instinto ativa mais uma vez. Eram cinco vindo do estacionamento, dois derrubados, um ferido e dois à solta. Eles foram mandados para dar a volta na fábrica e emboscá-lo, é claro. Se volta para trás e observa um vulto se escondendo atrás de tambores de produtos químicos próximos da doca de embarque. A troca de tiros seria uma péssima ideia, pois qualquer lado que escolhesse, ficaria vulnerável ao outro.
Émerson arrisca correr na direção do estacionamento, suprimindo reações ao dar um tiro na direção dos tambores e um na direção de onde o homem ferido se escondeu. Ele consegue se reposicionar atrás do primeiro carro da fila quando os primeiros tiros retornam. Dessa posição, ele avança entre os carros, sempre abaixado. Erro de iniciante: tinha deixado o seu carro com o alarme ligado, ia avisar aos adversários seu próximo passo. Era tudo tão óbvio para ele agora.
O pente só tinha mais duas balas. Qualquer time bem treinado teria mais um carro protegendo a saída, de preferência estacionado diante da cancela, sem chave. O novo plano era… era…
A cabeça de Émerson começa a doer. A mente fica turva, pensamentos cada vez mais confusos. Memórias sobrepostas, vidas paralelas. Uma jovem Letícia vestida com roupas de época, os dois conversando numa carruagem em direção… em direção a Praga! Armando ao seu lado numa trincheira, segurando um rifle, Verdun. O chão enlameado e o céu tomado por fumaça. A primeira entrevista com Timothy para o projeto Retorno, o aperto de mão, o sorriso confiante.
O som de tiros deixa de ser abafado, ele se sente de volta ao presente. Por baixo do carro, enxerga os pés de alguém. Os sapatos se voltam para a traseira, Émerson percebe o movimento do pé se inclinando como se o homem estivesse se agachando. Duas balas. A primeira é disparada na altura do calcanhar, forçando uma reação. A segunda disparada por sobre o crânio do homem, enquanto rolava por cima do porta-malas.
Precisava recuperar a arma do homem caído, mas sua ação iniciou mais um salvo dos outros que explodiu os vidros do carro sobre sua cabeça. Coberto de cacos, calcula quão exposto ficaria se fosse buscar a arma. Mais tiros na sua direção confirmam a péssima ideia que seria. Pelos furos no carro ao lado, presumiu a direção dos disparos: já eram os homens que provavelmente estavam protegendo a saída do estacionamento.
Sem alternativas, ele vai na direção oposta, tentando voltar para a segurança das paredes da fábrica, onde poderia recuperar algumas armas e eliminá-los um por um em emboscadas. Sente a perna esquerda queimando ao mesmo tempo que mais um disparo é registrado pelos ouvidos. Rola mais uma vez para buscar proteção, quando escuta uma voz conhecida berrar ordens: era Letícia, dizendo para trazê-lo com vida.
Logo está na mira de três armas. Ergue um braço, enquanto o outro tenta controlar o sangramento na perna. A dor começa a atravessar o corpo, evitando qualquer tentativa de resistência. Émerson é revistado e carregado pelos ombros para Letícia, que espera calmamente na frente de mais dois capangas.
“Você foi ativado antes da hora, meu bem.” – ela diz, com um olhar condescendente.
“Quem é você?” – Émerson pergunta.
“O mais próximo que sua memória consegue compreender agora… eu… sou uma espécie de irmã. E você decepcionou muito a sua família.”
“Foi você que mandou matar todas aquelas pessoas? Foi você que colocou a culpa em mim?” – Émerson diz, sôfrego pela dor do tiro.
“Eu faço os planos, você puxa o gatilho. Desde que chegamos aqui funciona assim. Nada mudou.”
Émerson começa a ter memórias dele atirando em Vanessa, no deputado Robinson, em Catarina e até mesmo os gêmeos.
“Não, eu não fiz isso…” – Émerson começa a ficar com os olhos marejados.
Com um gesto, Letícia faz com que os homens comecem a carregar Émerson até um furgão branco estacionado no final da fileira. O motorista sai e abre a porta traseira, Émerson é preso com algemas plásticas e jogado dentro do veículo. Os dois homens que o carregavam se posicionam em bancos laterais e o mantém sob mira constante enquanto o carro se move.
A dor na perna vem e vai, o sangramento escorrendo até formar uma poça que avança e recua com as freadas. Ele sente a cabeça leve. Mais memórias surgem, um ser estranho de pele acinzentada, humanoide sem muitos detalhes, mas que de alguma forma sabe que é Letícia. Ela se vira, e ao trocarem um olhar, ele entende imediatamente que precisa voltar e resolver o problema que começou mais de um século atrás.
Armando não era o chefe da organização. Ele era só mais um servo, o disfarce perfeito criado em anos controlando o crime organizado em Buenos Aires. Por isso os negócios em Praga, a primeira sede. A cidade onde Letícia formou uma família, família… que… Émerson tinha eliminado. Eram apenas ordens.
A visão finalmente apaga.
Retorna ao som de bipes, luz forte. Uma cama de hospital, mas não era um hospital. Uma cortina plástica separava seu ambiente de um lugar escuro. Os braços e pernas presos. Ele tenta falar algo, mas a voz não entrega mais que um grunhido. Uma bela moça vestida de branco entra em seu campo de visão. Ela parece falar algo e em espanhol e aponta uma pequena lanterna para seus olhos, fazendo movimentos laterais em busca de reações.
Ele tenta se mover sem sucesso. A mulher, com expressão calma, apenas gesticula para que ele se acalme. Logo ele percebe mais alguém em seu campo de visão. É Letícia.
“No final das contas, eu prefiro que você tenha sobrevivido. Mesmo que você seja tão difícil de controlar, quando funciona é insubstituível. Nós podemos recomeçar. De oito vidas, você só partiu meu coração em uma.” – ela sorri de forma terna.
“Você vai fazer isso de novo?”
Émerson não consegue virar o rosto para ver de onde vem a voz, mas tem certeza de que é Armando.
“Vou. Quantas vezes eu precisar. Alguma objeção?”
“Não. Não senhora.”
Émerson se esforça mais uma vez para falar:
“Eu… lembro… agora eu lembro.”
Letícia ergue as sobrancelhas, e diz com um leve sorriso: “Então você sabe o que vai acontecer.”
“Sim… você vai tentar me usar novamente para assassinar pessoas para completar seu plano insano de vingança. Só que dessa vez… você não vai conseguir.”
“E por que eu não vou conseguir?”
“Eles aprenderam seu jogo, sepht. Eles não vão ser controlados por um grupo de bandidos interestelares, especialmente um que tem um desertor forçado a continuar trabalhando.”
Armando se aproxima, assustado. Letícia mantém a pose, embora seja traída pelos lábios se contraindo.
“O detetive português era agente duplo. Um dos seus homens acertou minha perna numa distância que seria fácil acertar um tiro fatal. Eles queriam que você me trouxesse até um lugar onde nós três estaríamos juntos. Agora eu entendo… é a primeira vez em quantas décadas que estamos nós três no mesmo lugar? Quanto tempo até eles perceberem que se um de nós sobreviver começa tudo de novo? Aposto que se vocês procurarem bem no meu corpo, vão achar um transmissor.”
Armando começa a correr. Letícia segura a respiração.
Depois disso, um clarão.
Essa hhstória toda parece roteiro de um primeiro episódio de série… Bem movimentada e já estabelecendo que a trama tem vários mistérios , com pistas sutis a serem reveladas aos poucos no restante da história, desafiando o letor/espectador a tentar desvendar o enigma antes que tudo seja enfim revelado no final…
Ou é o Somir evitando Free Hugs