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Palavras pesadas.

Palavras pesadas.

| Somir | | 4 comentários em Palavras pesadas.

O tema de ontem da Sally me inspirou: concordo muito como rótulos são colocados em pessoas para desumanizá-las, e como isso é uma das fundações da polarização e da violência política dos nossos tempos. Mas algo me chama atenção em quão pesados são esses rótulos hoje em dia. A cada vez que são usados, parecem perder um pouco mais da intensidade que deveriam ter…

Chamar alguém de nazista deveria ser algo grave. O movimento relacionado fez das maiores barbaridades que um ser humano pode fazer com o outro. Genocídio industrializado. O mundo demorou algum tempo para perceber o verdadeiro grau de horror sofrido por judeus e outras vítimas dos alemães na Segunda Guerra Mundial. Até os campos de concentração se tornarem públicos, as pessoas ainda viam o acontecido como uma guerra sangrenta.

Mas depois disso, a ideia se assentou de tal forma que uma população muito mais brutalizada que a nossa atual se compadeceu e gerou mudanças radicais na forma como a humanidade se organizava. Direitos humanos como entendemos hoje é resultado direto do choque com o que nazismo tinha realmente feito.

Por muitas décadas, ser chamado de nazista era ser comparado diretamente com aqueles que torturavam e matavam milhões da forma mais desumana possível. Hoje o termo é utilizado de forma bem mais “descontraída”. Visões mais conservadoras sobre a sociedade já são suficientes para ganhar o rótulo.

O que até se explica pela tendência natural das palavras mudarem de significado e intensidade com o passar das gerações. Mas nesse caso, entramos numa confusão de intensidade: usa-se a acusação de nazista de forma muito mais abrangente, só que a ideia de como se enfrentar o nazismo não acompanhou essa mudança.

Nazismo no significado grave mais próximo do que aconteceu nos anos 30 e 40 do século passado realmente se combate de forma agressiva. Se qualquer grupo começar a exibir sinais de que acha aceitável fazer aquilo de novo, o corte tem que ser rápido e decisivo. O problema é que se o termo começa a ser usado em outros contextos e a ideia de como se combater fica presa no original, as pessoas começam a sentir a desconexão, antes mesmo de conseguir racionalizar onde está o problema.

Hitler e outros líderes nazistas estavam num nível de insanidade tão grande que fazia sentido considerar um tiro como resposta. Ainda mais naquele contexto de guerra, eram literalmente pessoas dando ordens para matar. É razoável considerar legítima defesa da humanidade. Mas se você começa a enxergar alguém dizendo que transexuais não deveriam participar de esportes femininos ou que programas de inclusão não são uma boa ideia como um nazista, você claramente não está mais falando de literalmente Hitler.

E veja bem, não é um juízo de valor. Sagrado direito seu de defender ideais de justiça social de forma apaixonada. E ser agressivo nesse contexto também é uma forma válida de se posicionar. Pessoas nem sempre reagem só com conversa tranquila. Às vezes precisa protestar e agir de forma dura para conseguir mudanças sociais. O ponto aqui é sobre usar palavras como nazismo ou fascismo para rotular pessoas que enxergam as coisas de forma diferente da sua.

O primeiro resultado do uso indiscriminado desses termos é que os termos vão ficando menos eficientes em incomodar o alvo. Era esperado que quase um século depois as pessoas não vissem da mesma forma. As pessoas falam de Napoleão hoje como uma figura curiosa, até engraçada: um baixinho invocado que conquistou a Europa. Mas quem viveu durante ou logo depois desses acontecimentos tinha outra memória das guerras napoleônicas. Viram pessoas morrendo e todo tipo de abuso de tropas invasoras. Napoleão não era engraçadinho para quem viu seu exército marchando contra sua cidade.

Não é surpresa que toda a ideia de Hitler e o nazismo fosse perdendo a gravidade com a distância do evento. Só que nessa velocidade? Em pouco mais de duas décadas do século XXI, nazismo entrou numa superposição entre leveza e gravidade que não está ajudando ninguém. Se ficou fácil chamar alguém de nazista, deveria ser difícil matar alguém por ser nazista. Mas estamos vendo as duas coisas acelerando juntas: é mais fácil do que nunca ser chamado de nazista ou fascista por opiniões, e existe mais gente racionalizando violência contra os acusados, ao mesmo tempo.

As palavras ficaram perigosas, e não parece que a resistência à ideologia está crescendo junto. Na verdade, mais e mais pessoas começam a enxergar posições chamadas de nazistas ou fascistas como senso comum. O que é um desastre por motivos de justiça social também: fica parecendo que basta estar incomodado com imigrantes no seu país para ser nazista. Uma pessoa que não está sequer cogitando genocídio é colocada na categoria do grupo mais maligno da história recente! E ela começa a perceber que outras pessoas que estão pedindo mudanças que não incluem campos de concentração estão no mesmo grupo.

Aí, o suposto nazista olha ao seu redor e percebe que seus pares não são monstros, quando começam a ouvir discursos de “extrema direita” e ninguém está falando de sair matando pessoas diferentes, quando são impactadas apenas por pessoas de esquerda agindo de forma histérica e insensível com eles… a pessoa começa a desconfiar do rótulo todo. Hoje ainda é mais comum que a pessoa não queira ser chamada de nazista, mas… quanto tempo até a palavra perder o peso inteiro?

Quanto tempo até a definição de nazista ser uma pessoa com visões conservadoras sobre costumes? E do outro lado, o uso indiscriminado da acusação não está mudando o significado da mesma forma. Chamam de nazista mantendo a ideia de que é legítima defesa ser violento contra o nazista. Vira um problema de comunicação: os acusados perdem a noção de que estão sendo acusados de algo punível com a morte, os acusadores perdem a noção de quem são seus adversários, e começam a ficar com medo honesto de estarmos à beira de uma tomada de poder nazista. Como não se comunicam, acabam reforçando a visão um do outro.

E tem outra palavra que foi sendo alterada com o passar dos anos: comunista. Os acusados de nazistas incorrem em erros muito parecidos ao chamar todo mundo que discorda deles de comunista. Parecidos, mas não iguais. Explico: por uma série de motivos, o principal sendo a existência de um poder comunista gigantesco por boa parte do Século XX, a palavra comunismo conseguiu envelhecer um pouco melhor.

Quando o termo se espalha, espalha-se também a parte revolucionária armada da coisa. Muitas vezes a bala chegava até antes da palavra. A tomada no poder na Rússia e inúmeras tentativas em outros países nos anos seguintes estabeleceram um caráter violento que vinha a cabeça do cidadão ao mesmo tempo.

A primeira imagem do comunismo foi tomada violenta do poder. Mas a história dos países comunistas seguiu em frente no século, de heróis da guerra contra os nazistas a inimigos “do bem” da máquina de propaganda americana a ideal de igualdade derrotado pelo capitalismo… foi uma jornada complexa que tornou a coisa bem mais cheia de nuances que o nazismo, por exemplo.

Chamar alguém de comunista já foi sinônimo de pedir a morte da pessoa em legítima defesa da sociedade, já foi colocar definir ela como simpatizante de um dos maiores poderes do mundo, já foi termo generalista para falar sobre quem defende os direitos dos mais pobres e oprimidos… o que pode até parecer uma crítica neste texto, mas não é: é uma ideia complexa que não vai se resumir em ser bonzinho ou malvado a não ser que você queira muito.

Não sou do time conspiratório, acredito que a evolução das palavras nazismo (ou fascismo) e comunismo segue o fluxo de acontecimentos natural. A reação visceral do ser humano moderno ao nazismo ficou definido pelo seu período curto e intenso, a do comunismo teve muito mais o que fazer nesse tempo todo de União Soviética, China e cia. E não é papo furado da direita: desde o fim da Guerra Fria, ficou muito comum aprender sobre o mundo com professores e veículos de mídia tendenciosos a desfazer a propaganda americana sobre o comunismo no mundo ocidental.

E francamente, um sistema que diz que quer igualdade entre todos e um sistema que pregava uma raça superior que dominaria as outras… independentemente do resultado prático dessas ideias, são ideias que não são contadas da mesma forma. As críticas ao comunismo deixaram de ser institucionais, era mais coisa do seu tio ou avô com memórias dos grupos armados revolucionários ou da propaganda incessante dos americanos.

Sim, a direita moderna acusa todo mundo de comunismo por motivos banais como a esquerda faz com nazismo e fascismo, mas ser chamado de comunista não é uma posição indefensável. Eu nem acho que é autocontrole desse grupo ideológico, é que a palavra mais forte que sobrou era comunismo mesmo. O rótulo ruim que a esquerda tinha em mãos era muito mais poderoso para ser mal utilizado.

E eu enxergo hoje como isso faz diferença: numa guerra onde as armas são palavras, um grupo tinha uma muito poderosa para usar, e usou sem parar por décadas. Eu acredito que estamos vendo uma combinação explosiva acontecer: quem é chamado de nazista ou fascista não se dói mais pelo significado de genocida não ser mais essencial para o rótulo, mas quem chama de nazista continua enxergando como a mesma coisa um conservador genérico e um defensor ferrenho de superioridade racial, por exemplo.

E a pessoa que se sente injustiçada não vai ficar pensando em todas as nuances históricas da coisa. Ela vai se sentir perseguida. Ela vai ficar achando que pode morrer por uma opinião diferente, e quando vemos reações públicas como as pós-assassinato de Charlie Kirk, com tanta gente justificando ou comemorando a morte de um nazista… o cidadão que já ouviu o que Kirk dizia vai comparar a ideia de nazismo com o que ele defendia… e não vai ver a conexão. Nazismo era escravizar, torturar e matar pessoas por uma causa de uma crença de superioridade racial e nacional.

Eu entendo que os dois lados jogam esses rótulos uns nos outros de forma irresponsável, querer salários melhores não tem nada a ver com derrubada violenta da democracia, dizer que as pessoas não podem ser controladas por religião não é comunismo. Nesse caso eu diria que é até bom senso. Agora, é muito mais fácil viver com o rótulo de comunista. Eu me chamo de comunista de brincadeira toda vez que argumento contra corporações e bilionários, porque comunista pode ser um monte de coisas diferentes e existem “níveis seguros” de crença no sistema político.

Boa parte da direita até brinca que se não for comunista na adolescência não tem coração. De alguma forma, a sociedade consegue se autorregular para acomodar a ideia de uma pessoa comunista. Mas não tem muito o que fazer para evitar o problema de acusações infundadas de nazismo: a alternativa seria relativizar aquele movimento horrível. Na falta de alguma válvula de escape, sobra a negação do nazismo como ele foi. Negar o holocausto é uma forma de lidar com a acusação de nazismo, porque não dá para achar um lado positivo ideológico como se faz no comunismo.

A defesa contra ser chamado de comunista pode ser dizer que existem ideias boas no comunismo. A defesa contra ser chamado de nazista não. Porque isso só cola em grupos declaradamente nazistas no sentido violento da coisa. Sobra para a pessoa tentar desmantelar a palavra nazismo ou mesmo fascismo para não significar mais nada. As palavras estão morrendo e deixando no lugar apenas ódio por grupo que é diferente. Sim, triste, mas irônico.

Nazismo e fascismo começam a virar palavras sem significado na direita porque o significado ficou abrangente demais na esquerda. Sobram dois grupos acreditando de verdade que estão sendo exterminados por inimigos incapazes de conversar. E o uso errado de palavras tem muito mais a ver com isso do que se imagina.

Comunismo é xingamento até certo ponto, as pessoas ainda têm alguma capacidade de entender mais do que “alguém que está vindo para te matar”, porque mesmo nas fantasias mais insanas da direita, dizem que se o Lula ganhar vão colocar mendigos para morar na sua casa. O que é bizarro, mas pensa comigo: você não consegue enxergar ao mesmo tempo que estão te forçando a dividir o que tem com quem tem menos?

Não é uma bizarrice que se você pensar um pouco mais, parece mais… humana? Não é imensamente diferente da ideia de que se a direita ganhar vão começar a matar todos os gays e negros? Até a insanidade conectada com o comunismo é menos horrenda do que a insanidade conectada com o nazismo ou fascismo. São palavras diferentes e conceitos diferentes. Você pode ser um comunista maluco e ter reconhecido um coração.

Você não pode ser um nazista e ter a mesma percepção. Se você chama alguém de nazista, a pessoa não tem escapatória, ela não é mais passível de conversa. Para “sobreviver” à acusação de nazista ou fascista você tem que buscar suporte em quem é nazista ou fascista descaradamente ou negar o significado com um todo. Isso radicaliza por companhias negativas ou radicaliza por criar a sensação que está sendo perseguido por… existir. Se chamaram de nazista e você não é nazista, só pode ser pessoal.

Não existe simetria no uso das duas acusações mais comuns entre direita e esquerda. A esquerda está usando uma arma muito mais poderosa, e está usando de forma tão indiscriminada que muda até a visão das pessoas sobre o que é nazismo de verdade. Ser contra o nazismo não é a mesma coisa de chamar de nazista quem é contra você.

“Mas o outro lado faz coisa errada também!”

Sim. Mas até numa análise puramente egoísta é uma péssima ideia. Não radicalizou a sociedade contra os conservadores, só fez com que eles ganhassem muito poder de mobilização e elegessem candidatos cada vez mais conservadores. E a cada dia que passa, chamar alguém de nazista ou fascista tem menos força. Um dia não vai ter mais, porque vai deixar de ser uma ofensa inescapável. Ou vão começar a falar sobre como os regimes fascistas não eram tão ruins assim ou vão simplesmente ressignificar nazista para conservador e não vai ter mais impacto nenhum.

No dia que surgir um novo Hitler, é muito importante ter a palavra afiada para ser usada contra ele. Tomara que ela aguente até lá.

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