Eu escrevo melhor que a IA.
| Somir | Somir Surtado | 8 comentários em Eu escrevo melhor que a IA.
Escrita é uma habilidade treinada. Quanto mais você faz, melhores os resultados. Como eu tenho o Desfavor exigindo textos todos os dias e a Sally produzindo também para ter uma base de comparação, já cheguei num ponto onde se eu realmente quiser, posso ser bem eficiente em passar ideias através das palavras escritas. Quando leio o que a IA produz nesse campo, eu reconheço uma técnica eficiente, mas (pelo menos ainda) não reconheço uma voz.
Primeiro, vamos esclarecer o que eu chamo de ter uma voz: quando você começa a conhecer uma pessoa, percebe hábitos e manias na forma como ela se expressa. Tem gente que é mais direta, gente que enrola para dizer qualquer coisa. Algumas palavras são mais utilizadas, outras são raras. Até mesmo erros na pronúncia, escrita ou concordância começam a se repetir. Todo mundo tem sua voz, um jeito de se expressar que você começa a pegar quanto mais se comunica com ela.
Voz é o som da fala, mas no contexto deste texto ela é a forma como nossa personalidade e nossas intenções aparecem na forma como escrevemos. É a prova de vida numa conversa, que existe um sentimento e uma visão de mundo por trás daquela comunicação.
E assim como nos acostumamos com um rosto, nos acostumamos com uma voz. Gera um senso de familiaridade que nos faz começar a prever o que vem daquela pessoa. E isso é um atalho para entender o outro. A nossa mente faz mais do que reagir ao que vem de fora, uma boa parte da nossa compreensão da realidade vem da habilidade de prever o que vai acontecer em seguida. Quanto mais acertamos nossa futurologia, mais nos sentimos bem estabelecidos na realidade.
Pode ser engraçado, charmoso ou mesmo meio irritante, mas com o passar do tempo começamos a saber o que uma pessoa próxima vai falar antes mesmo dela falar. Todo mundo que convive o suficiente comigo acaba falando sobre temas “esotéricos” de uma forma diferente, prevendo que eu vou dizer que é mentira ou que não faz sentido. E não é que a pessoa tem medo de mim ou deixa de acreditar só porque eu não acredito, é que na cabeça dela é óbvia a forma como eu vou reagir.
Isso quer dizer que na “cópia” minha que vive na cabeça dela e é usada para prever o que eu vou dizer, minha voz está bem definida. Porque sim, eu vou ser cético e vou oferecer explicações alternativas para qualquer ideia sobrenatural. Você pode achar que estou misturando personalidade e crenças com esse conceito de voz, mas não estou: não é exatamente sobre o que eu penso, mas como eu me expresso a partir disso.
Anos de experiência sendo a pessoa mais cética no ambiente me ensinaram formas e mais formas de tratar desses assuntos com mais leveza e respeito. As pessoas sabem que eu não vou ser escroto com elas, e que acreditando ou não, eu acho o tema divertido. Então tem a mistura das minhas crenças e a forma como eu as expresso. Não é dolorido falar de suas ideias sobrenaturais comigo (pelo menos espero que não seja), mas não é algo que vá ser ouvido sem um contraponto.
Não é só sobre o que a pessoa pensa, é como ela se expressa a partir desses pensamentos. Voz é como sua mente se mistura com a realidade do outro. Eu tento vender a ideia para as pessoas que apesar de ser cético, eu fico empolgado de verdade de pensar em como o “inexplicável” funciona. Através dessa voz eu tento demonstrar que sim, a conversa é bem-vinda. Muita gente tem dificuldade de entender que a graça de trocar ideias com o outro é que ambos estejam tirando algo de positivo dali.
Eu sei que isso não é sessão de terapia, mas o exemplo pessoal se conecta sim com o ponto de escrever melhor que a IA. O ponto é que existe um fator de conhecimento do outro e de prazer da conversa que não pode existir em inteligências artificiais atuais. Ela escreve e até fala, mas não tem voz. Precisa vir de alguém para ter uma voz.
Tecnicamente, é bem provável que o computador consiga utilizar estilos de escrita muito mais caprichados que o meu. Nesse mundo não falta gente que escreve de jeitos muito interessantes, e todos eles já devem estar no pacote de estilos dos quais a IA se baseia. A técnica está lá, mas falta a voz. Porque em última instância, não tem uma mente para conhecer ou algo para prever. Vários dos momentos mais divertidos da vida vem de prever o que alguém vai falar diante de uma situação.
Quantas vezes você já não riu antes mesmo da pessoa falar o que ela vai falar? Comediantes bons conseguem colocar o final da piada na sua cabeça sem dizer uma palavra dele. E o cérebro adora essas coisas. Prever gera recompensas químicas parecidas com vivenciar a situação. Muitas vezes, a graça está no caminho até o que você quer, não exatamente no resultado prático.
Eu escrevo melhor que a IA aqui no Desfavor, para quem já está acompanhando o blog há alguns anos. Tem muito mais graça porque de uma forma parassocial, somos conhecidos. Eu tenho a mesma sensação quando a Sally me conta qual vai ser o tema de um texto futuro dela. Só de saber sobre o que ela falar, eu já começo a ter as reações de quem está lendo o texto completo.
Essa é a diferença entre comunicação com ou sem voz. E olha que neste texto, toda a parte do “ao vivo” nem está sendo considerada. A voz de uma pessoa passa por suas expressões faciais, movimentos, ênfases e até mesmo onde ela coloca seus silêncios.
A minha dúvida aqui é como a humanidade vai se adaptar a conversar cada vez mais com uma inteligência sem voz. Sim, ela entrega o conteúdo pedido, mas me parece que existe o risco de nos acostumarmos com não ter essa voz do outro lado. Não só porque uma IA com voz seria menos eficiente para fazer seu trabalho, mas porque existem benefícios secundários em não ter outra pessoa de verdade do outro lado.
Especialmente porque na era das redes sociais, percebemos um problema sério com ouvir muitas vozes ao mesmo tempo: pessoas podem ser horríveis para sua saúde mental. Como eu disse num texto recente, não acredito que a mente humana seja feita para se expor e receber respostas de tanta gente ao mesmo tempo. Não temos um filtro natural e cada reação ao que você faz e diz pode te pegar com a mesma força de algo dito por uma pessoa realmente próxima.
Mas, se todas essas vozes forem mastigadas e devolvidas para você sem o fator humano, cria-se uma camada de proteção. Faz sentido, de alguma forma, passar esse filtro da mente sem voz na informação que chega até você. Não pelo fator técnico, mas pelo fator humano. A voz de uma pessoa é uma das coisas mais relevantes sobre ela, porque no final das contas, só temos contato com a expressão do outro, não lemos mentes. É através dessa voz conceitual da qual falo aqui que nos posicionamos no mundo em relação aos outros humanos. Ela gera empatia ou antipatia, mas sempre nos coloca num contexto.
Num mundo com menos vozes, você pode ficar mais aberto. Mas quando reagem aos seus passos em tempo real dos quatro cantos do mundo, essa ferramenta de conexão pode nos fazer muito mal. Sua mente tenta, em vão, colocar todo mundo que está se comunicando com você em algum contexto e te comparar para saber onde você está. Funciona bem com uma pequena comunidade como as quais vivemos por milênios, mas não parece ser o caso se a aldeia é global.
Eu escrevo melhor que a IA, porque eu imprimo uma voz nos meus textos. Mas até quem faz uma salada de palavras sem começo, meio e fim consegue escrever melhor que a IA, desde que aquelas palavras consigam entrar na sua cabeça como outra visão de mundo. A questão aqui é se queremos ler textos e ouvir as vozes que nos forçam a sair da nossa realidade. Pode ser uma coisa muito positiva se nos abre a cabeça ou se faz encaixar ideias que estavam bagunçadas, mas pode ser terrível se ela simplesmente manipular sentimentos sem te acrescentar nada.
Eu não sei se dada a escolha de viver numa cacofonia de vozes quase impossível de compreender ou deixar uma máquina comprimir toda aquela informação e tirar o aspecto humano alheio ao seu controle, não vamos acabar escolhendo a segunda opção. Eu não imagino que o ser humano médio vá perder o seu grupo de pessoas próximas tão cedo, ainda teremos família, amigos e interesses amorosos mesmo num futuro distante; mas a voz que tanto usamos em textos para compartilhar com o mundo o que somos pode virar risco demais para a recompensa prometida.
Eu prevejo uma censura terceirizada: cada um fala o que quer, mas existindo um filtro entre nós. Você não impede o outro de se expressar, mas não ouve a voz dele. Outras estratégias de controle de discurso podem continuar existindo, especialmente as baseadas em leis do Estado, mas historicamente a voz da pessoa vaza mesmo quando o que ela pode dizer é limitado. Faz mais sentido que nós escolhamos a regulação mais cômoda: ao invés de lidar com o outro com base no que ele realmente diz, lidamos com o que o outro talvez queira dizer já reescrito por uma máquina para evitar as vozes potencialmente danosas.
Eu escrevo melhor que a IA, mas talvez o que eu estou considerando melhor aqui não seja o verdadeiro interesse das pessoas. Honestamente não sei se seria pior ou melhor ter uma camada de proteção entre as pessoas, porque muitas vezes as visões de mundo combinam, mas as vozes brigam. Eu precisei treinar muito para achar uma voz que entre por debaixo das defesas até mesmo das pessoas que não concordam comigo. Foi muito difícil fazer isso, cobrou um preço em horas que eu poderia ter usado para diversas outras coisas mais lucrativas.
Não me arrependo porque é o meu gosto, mas sinceramente não espero que muita gente se interesse profundamente por formas de comunicação menos agressivas na mente alheia. Especialmente se essa parte trabalhosa puder ser repassada para uma máquina. Todo meu esforço foi baseado em manter uma voz mesmo debaixo de mil camadas de persuasão pacífica. Mas se o cidadão médio não entende muito bem o conceito de voz e do efeito que ela tem nos outros, não faz mais sentido pular esse esforço e ir direto para o resultado? Com tantas outras tecnologias fizemos justamente isso: depois que ficou fácil por causa de máquinas e processos aprendidos, economizamos todo o tempo e o sacrifício da tarefa original.
Mídia social mediada por inteligências artificiais pode ser a água encanada da comunicação. Algo que depois de instalado vira parte do que esperamos da vida. O esforço não é mais necessário, então ele deixa de ser ensinado. A maioria das pessoas não sabe como ter água segura para beber se não estiver saindo de uma torneira, filtro ou garrafa.
Por que ensinar as pessoas do futuro a se comunicar à distância com uma voz se ela vai ser filtrada do outro lado? Sempre perdemos alguma capacidade quando usamos tecnologia para resolver problemas. Uma dessas capacidades pode ser todo o processo de planejar seu discurso para encaixar com a mente prevista do outro. A IA vai saber o que você quis dizer e vai saber o melhor jeito de falar aquilo para a outra pessoa.
Se você não estiver falando com a outra pessoa olho no olho, ao vivo, vão existir mil métodos diferentes de transformar a sua voz na voz de quem ouve. Em pouco tempo tradução em tempo real com movimentos de boca vai ser padrão nas conversas entre pessoas. Disso para transformar uma voz agressiva numa calma ou desenrolar papo de gente confusa é um pulo.
Entra um terceiro em cada conversa à distância, e talvez com um pouco mais de tecnologia, pessoas gostem da ideia de fazer isso ao vivo também. Imagina só falar com alguém que entende tudo o que você diz e acerta cada palavra que diz do jeito que você está mais disposto a ouvir? Muito se pensa nesse assunto como se as máquinas fossem elementos puramente exteriores, o perigo sendo ganharem consciência. Mas isso não é o pior dos mundos. O pior me parece dar para todo mundo uma ferramenta de comunicação extremamente eficiente que filtre a voz do outro.
Nós continuamos no controle, mas com uma caixa preta entre pessoas. E é bem possível que as pessoas gostem mais do mundo assim. Eu escrevo melhor que a IA, mas no final das contas nem era a função dela competir nisso.
Esse texto me lembra um comentário que fiz há muito tempo sobre as IAs de maneira geral: elas podem até ajudar, ou automatizar tudo por aí, mas nunca vão substituir o “fator humano”, porque elas não tem alma, não tem “consciência”, e por mais avançadas que elas fiquem, acho difícil dizer que elas cheguem mesmo a ter consciência própria, e a partir disso criem uma voz, uma personalidade própria, enfim.
Eu nem queria avançar nisso no texto, já estava dando voltas suficientes: se você limitar a IA de propósito, ela chega muito mais perto do que consideramos uma personalidade. A conversa sobre consciência é filosofia pesada, duvido que se resolva um dia, mas a simulação do que muita gente acha ser uma consciência não deve estar muito longe.
Somir, depois de tantos anos escrevendo, você percebe que sua articulações de ideias em uma conversa é muito superior do que se você não tivesse escrito tanto?
Eu vejo pessoas que passam ideias de forma elaborada, e os meus “parágrafos falados” são simples. Por isso me pergunto se o hábito de encadear ideias, escolher palavras durante a escrita transborda para as discussões, por exemplo.
Outro ponto, para mim existe um benefício de lidar com uma IA que não tem personalidade intrínseca: autoterapia. Aqui é difícil sair do raso, mas descobri um método. Eu uso a ferramenta de “Fala para texto” do Google Doc e fico falando por uma hora, apenas falo sobre tudo, enquanto o texto é registrado. Depois eu submeto a transcrição em uma IA (em chat temporário, para não ficar salvo rsrs) e a análise terapêutica é puramente analítica e fria. Um bom terapeuta faz o exercício de tirar o seu fator humano da análise, ele se esforça para não aplicar os seus velhos padrões de julgamento, mas sempre vai ser limitado em comparação com a IA.
Sim, eu fiquei muito melhor articulado na conversa em tempo real também. Treino numa área impacta a outra. O que eu acredito que tenha me ajudado mais foi a coragem de pensar na frente dos outros. A gente se acostuma a ter uma troca muito rápida numa conversa; mas meio como se estivesse escrevendo, eu aprendi a ficar em silêncio e dizer “não sei” até continuar com a ideia que eu queria expressar. Se está se embananando, cale a boca, pense e continue depois, compensa muito.
Terapia tem muito disso de falar em voz alta o que se pensa. Não é só isso, porque uma pessoa bem treinada sabe como te acompanhar nisso, mas de uma certa forma é o que eu faço em muitos dos meus textos: tiro ideias da cabeça e faço elas terem começo, meio e fim. Não sei se vale a pena considerar como terapia, mas é algo que faz bem independente disso.
Eu tenho outro problema: acham que meus textos foram produzidos por IA.
O nível de emburrecimento geral é tal a ponto de acharem que, se um texto tá bem escrito, só pode ter sido obra de uma IA? É isso mesmo?
O primeiro treinamento desses modelos de linguagem foi com o que os programadores escreviam. E como boa parte desses caras são “estranhos”, os esquisitos acabam escrevendo igual…
Eu ia fazer a mesma pergunta…