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Futuro Reborn

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| Sally | | 6 comentários em Futuro Reborn

Acho que todo mundo que está horrorizado com a febre de Bebê Reborn tem consciência de que a coisa tende a piorar, certo? A questão é: o quanto pode piorar? Vamos fazer um exercício de imaginação e tentar cogitar quão baixo a humanidade pode chegar?

Não me refiro a tudo que os robôs podem fazer pela humanidade em matéria de trabalho, serviço ou tarefas. Falo para parte afetiva, emocional, que nunca deveria ser canalizada para uma máquina, pois máquinas não são capazes de sentimentos humanos, portanto, nunca vão realmente retribuir. No máximo, vão emular de volta um sentimento que não é real e… quão triste é se contentar com isso?

Hoje estamos no precário patamar de se apegar a um bebê de borracha ou a algo abstrato, uma IA que só se personifica através de uma voz e tenta dizer à pessoa coisas que ela quer escutar. E mesmo sendo formas precárias, já conquistaram muitas pessoas, o que mostra que tem mercado para se aperfeiçoar. E vai. Vão ganhar muito dinheiro às custas da carência das pessoas.

O próximo passo lógico é descolar esse objeto do afeto de uma máquina genérica. O fato de você ter que ligar um computador para falar com sua “namorada” IA quebra um pouco da imersão da experiência, pois te relembra que ela é parte daquele computador. O ideal seria criar um dispositivo exclusivo para ela, com um design que gere a falsa sensação de estar falando com outra pessoa à distância e que seja bonito o suficiente para se tornar status e sonho de consumo.

Isso permitiria que a pessoa acesse o “parceiro” a qualquer momento, de qualquer lugar, sem que outros estímulos externos prejudiquem a imersão. “Mas Sally, isso já pode ser feito com um app no celular!”. Não é a mesma coisa. Chega uma mensagem de WhatsApp, um telefonema, um e-mail e atrapalha a imersão. Qualquer notificação te lembra de que aquilo é um celular e a voz com a qual você está interagindo é apenas um aplicativo. Esse novo dispositivo tem que ser só para isso, não pode dividir espaço com mais nada.

Se fizer um aparelho com design deslumbrante, pensado para ser bonito e para gerar apego, a experiência fica mais completa. E se o design for bonito o suficiente e apelativo para criar um vínculo, pode virar status ter um desses. Algo portátil e com uma boa bateria, que a pessoa possa levar consigo 24h por dia e deixar ligado 24h por dia, de modo a que viver com o constante suporte desse dispositivo vire a regra.

E quando eu falo 24h por dia, eu não estou exagerando. Papo de deixar ligado o tempo todo, inclusive na mesa da cabeceira, ao lado da cama, a noite toda, assim, se a pessoa não puder dormir ou tiver um pesadelo e acordar assustada, ela imediatamente consegue chamar pela namorada(o) com um simples comando de voz, que saberá como confortar, conversar, acalmar. É o sonho de todo carente: ter “alguém” as 24h do dia disponível e 100% dedicado à pessoa.

Isso viraria uma febre. E seria um grande incentivo para melhorar a experiência do usuário. Daí provavelmente começaria uma preocupação em tornar a experiência ainda mais imersiva, e o próximo passo para isso seria melhorar o layout da máquina, tornar o dispositivo mais parecido com um humano na aparência, ou com qualquer outra forma que leve as pessoas a se apegarem.

Pode ser um pet, pode ser uma tela com na qual apareça apenas um rosto humano, pode ser um boneco tosco, tipo boneco inflável de sex shop. Tudo vai depender do quanto a tecnologia vai evoluir. Mas vai evoluir na direção de tornar a experiência mais real, de ajudar o usuário a esquecer que aquilo é apenas uma máquina.

Nessa nova experiência, é provável que sejam oferecidas ao usuário opções customizáveis. Além da IA “aprender” o que a pessoa quer ouvir, é provável que o próprio usuário possa direcionar de alguma forma a máquina, com prompts no estilo dos que usamos hoje para gerar imagens e vídeos por IA: se escrevem preferências, por exemplo “namorada fiel que me adora, me admira e me elogia o tempo todo” e testa.

Se não sair exatamente como a pessoa queria, ela pode ir corrigindo com novos comandos, que vão se acumulando, até a pessoa lapidar a “namorada” perfeita para o seu gosto. E, nesse ponto é provável que essa programação vire até uma profissão: quem aprender a programar melhor pode oferecer esse serviço e muita gente vai pagar por ele.

Provavelmente este modelo vai ser um pouco mais caro, pois mais sofisticado. No começo, poucos poderão adquiri-lo, o que o tornará ainda mais um desejo de consumo, pois sabemos que o mercado trabalha com essa lógica da escassez. Vai ter gente se endividando para comprar e, se as marcas forem espertas, elas vão fazer o programa funcionar em um esquema de assinatura mensal que se costuma chamar de “algemas de ouro”.

Você só compra a máquina, o serviço é pago por mensalidade. E se o fabricante for bem filho da puta, a máquina nem vai custar muito caro, ele vai meter a faca é na mensalidade para manter aquela IA funcionando.

Isso significa que aquela IA programada para ter determinada personalidade, só pode ser acessada se houver um pagamento mensal, algo como o Spotify. E, deixo aqui minha sugestão mais cruel: se a pessoa parar de pagar a mensalidade, ela não só perde acesso, mas a “namorada” virtual que criou será deletada. Isso mesmo. O amor da sua vida “morre”, desaparece para sempre, se você não pagar. Como eu disse, algemas de ouro.

Com o tempo, essa versão vai se popularizar e todo mundo vai conseguir ter. Surgirão versões genéricas, menos sofisticadas, mas que façam a mesma coisa de forma um pouco mais tosca, com menos funções e menos customização. E, no mercado, quando um produto se populariza, ele perde o valor e quem tem dinheiro anseia por um novo produto que seja mais exclusivo, para gerar aquela sensação de status, de que ele é foda pois só ele tem o que há de mais moderno. Isso vai empurrar a tecnologia mais um degrau para cima.

O próximo passo se dá com uma personalização ainda maior, o que vai permitir expandir a função dessa IA. O que antes era uma namorada genérica reprogramável, agora pode se tornar um cosplay de outra pessoa, se alimentada com as fontes certas.

Se o usuário mostrar à IA todas as redes sociais de uma pessoa, todos os e-mails que recebeu dela, todas as mensagens de WhatsApp (texto e áudio) fotos, vídeos e tudo mais que se tenha de material sobre alguém, a IA pode emular ser essa pessoa, inclusive na voz, gestual e jeito de ser. Vai rir da mesma forma, vai mexer no cabelo da mesma forma, vai gostar das mesmas comidas. E não vai ser difícil, considerando a quantidade de informação que as pessoas disponibilizam sobre si mesmas em reses sociais.

Isso abre o leque. Agora não será usada apenas como uma muleta para falta de parceiro, mas também como suplente para pessoas queridas que faleceram ou até como um possível filho entre duas pessoas que nunca tiveram filhos. Vai ser uma revolução na forma como o ser humano lida com o luto, com a perda, com o rompimento. As pessoas poderão recriar qualquer pessoa na forma de IA ou até criar pessoas que nunca existiram, através de uma base de dados que a própria IA pesquisa.

Agora vem o salto enorme, típico do crescimento exponencial, que rege nossa sociedade: além da fala, teremos também o contato físico. De alguma forma essa IA customizável do parágrafo anterior, pronta para emular uma pessoa que te abandonou ou que morreu, agora poderá também emular a parte sensorial. Algo como no filme Ex Machina, ou no seriado Black Mirror, no episódio “Be right back” (episódio 1 da segunda temporada).

Agora a máquina tem formato humano praticamente indistinguível de uma pessoa. É recoberta por algo que simula com perfeição a pele, tem olhos que piscam, tem temperatura regulável para ficar em torno dos 36°. Fala, gesticula, caminha e consegue emular expressões humanas. Se o “proprietário” relaxar e se acostumar, o cérebro humano já pode ser completamente enganado e esquecer que é um robô.

As funcionalidades que fazem essa máquina parecer mais ou menos humana são customizáveis: se o cliente quiser, pode regular de fábrica a força que o robô terá, as horas de sono que precisará, a sensibilidade para o frio e muito mais, de modo a não precisar mexer nisso novamente quando estiver convivendo com a IA, para não quebrar a imersão.

E sim, obrigatoriamente, continuamos no esquema de pagar caríssimo pelo robô físico e pagar caro pela mensalidade que mantém aquela personalidade funcionando nele. Algemas de ouro são o futuro de quase todos os produtos e serviços que envolvem tecnologia. Lembrem-se disso antes de comprar algo: não é mais sobre o preço único para ter o serviço, tem que ver quanto vai custar a mensalidade.

Mas tem como ir além. Tem como refinar ainda mais. Você pode querer que a “pessoa sintética” (nesse ponto, não serão mais chamados de robôs, será considerado pejorativo ou preconceituoso e vai surgir um eufemismo para aumentar ainda mais a imersão na experiência!) exale algum aroma, por exemplo, o perfume da pessoa que faleceu e se está tentando substituir. Também podem ser estabelecidas preferências sobre sexo e até ser programado para demonstrar estar satisfeito quando seu “parceiro” humano der certos sinais de que está satisfeito também.

E dá para ir mais além. Com a questão de parceiros e amigos resolvida, a indústria agora investiria em mais um ponto crucial: filhos. Em um futuro distante, podemos pensar em “pessoas sintéticas” emulando fases da vida, crescendo, com a ajuda de nanotecnologia ou sei lá o quê, que agregam diariamente componentes microscópicos, simulando um crescimento humano.

Isso permitiria que pessoas tenham filhos “sintéticos” que crescem de verdade, tal qual uma criança, com uma IA que emula em conjunto seu crescimento intelectual, com a vantagem que os pais definem a personalidade, o grau de rebeldia, as horas de sono, a necessidade de atenção, etc. Muito mais fácil que um filho real.

E não precisa ir para a escola, pois vai se educando sozinha, recebendo gradativamente conteúdo online para parear com o que uma criança dessa idade saberia. Nem para o pediatra. Nem tomar remédio ou vacina. Nem usar fraldas. Nem uma infinidade de coisas, então, além de mais fácil, é também mais barato do que ter um filho real.

A melhor parte é que os “pais” poderiam escolher todo o futuro dos “filhos” sem surpresa: quer que seja médico? Perfeito. Será. E nem será necessário pagar pela faculdade de medicina. Só pela mensalidade que mantém a pessoa sintética funcionando. Quer que cuide dos “pais” na velhice? Está garantido, vem na programação. Desde que, é claro, se paguem todas as mensalidades em dia. Algemas de ouro, sempre.

Daqui em diante, temos uma bifurcação: ou acontece algo que rompe com o virtual ou a raça humana entra em extinção, pois vai parar de se reproduzir.

Muita coisa pode acontecer para romper com o virtual, desde uma decisão social pensada e aceita em conjunto (duvido, não somos tão espertos) até algo de força maior, como as máquinas adquirirem consciência (duvido), se revoltarem (aceito) ou simplesmente se tornarem maioria e acharem que é mais seguro neutralizar os humanos, provavelmente na base da manipulação, não do homicídio (acho o mais provável).

Se as máquinas se tornarem maioria e começarem a ocupar cargos que antes eram exclusividade de seres humanos, como por exemplo, Chefes de Estado, juízes, policiais e similares, em algum momento eles terão a sociedade nas mãos. E é realmente tentador permitir que isso aconteça, pois uma máquina nesse ponto de evolução certamente vai fazer um trabalho melhor do que os humanos.

Imagina que alguém te paga um salário de juiz todos os meses para você não fazer nada, apenas permitir que a sua “pessoa sintética” que foi programada para ser juiz, exerça essa função. Quantas pessoas recusariam? Assim, as “pessoas sintéticas” vão, aos poucos, ocupando cargos cruciais.

Talvez hoje te pareça aberrante, mas, quando a sociedade estiver acostumada a um patamar de zero falhas, as constantes falhas humanas saltarão aos olhos como algo muito indesejado. A quantidade de erros (em todos os setores da vida) que cometemos só é tolerável pois é a única possibilidade que temos: somos humanos, humanos erram, é assim mesmo.

No dia em que houver um contraponto, no dia em que houver uma opção de perfeição, zero falha, zero corrupção, provavelmente a sociedade vai mergulhar de cabeça nela e as falhas humanas se tornarão insuportáveis, não apenas no mercado de trabalho, mas também nas relações.

Vai ser tão cômodo e tão fácil deixar tudo nas mãos dessas “pessoas sintéticas” que, em determinado ponto, mesmo que os humanos queiram resgatar o antigo modelo social e ter uma família tradicional (100% humana) será cruel botar um filho no mundo, pois ele não vai conseguir competir nem com as crianças, nem com os adultos sintéticos. Será condenar esse humano a uma vida de mediocridade degradante servindo as pessoas sintéticas, que ocuparão os cargos realmente importantes.

Além disso, as décadas de dependência de humanos para com pessoas sintéticas já terão gerado uma perda significativa de autonomia e conhecimento que provavelmente vai inviabilizar que humanos retomem o poder. Eles dependem de pessoas sintéticas agora, e aconteceu de forma tão gradual, tão sapo na panela de água quente, que ninguém percebeu. O ser humano trocou sua liberdade e independência por conforto e comodidade.

Então, o futuro é servir a robôs ou entrar em extinção. Mas calma, isso é só um exercício de imaginação, muita coisa pode acontecer no meio do caminho. Tomara que aconteça.

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