Quem estupra?
| Somir | Flertando com o desastre | 7 comentários em Quem estupra?
Semana passada saiu um estudo dizendo que 15% das brasileiras já foram estupradas. A imensa maioria antes dos 13 anos de idade, muitas sem nem entender o conceito de estupro na época. E isso impacta muito na análise do que está acontecendo. Importante avisar: o tema vai ser ainda mais pesado do que parece.
Quando eu comecei a pensar nesse tema, caí numa armadilha que provavelmente muitos homens caem também: acreditar que o que está sendo discutido são casos de estupros de mulheres adultas por criminosos desconhecidos. E aí, talvez por corporativismo, é natural pensar: mas isso não pode ser o caso de um estuprador ser responsável por vários casos? Porque em tese, isso reduz o grau do absurdo sobre os homens, se você imagina que tem meia dúzia de estupradores muito “produtivos” por aí, significa que o números de homens que realmente comete esse crime é muito menor.
E aí, passa a impressão de ser muito mais um problema de segurança pública. Para baixar o número de mulheres abusadas, basta ter mais polícia, mais repressão… ou até mesmo alguns caminhos mais tortuosos de pensamento como dizer para mulheres tomarem mais cuidado. Tortuosos porque embora seja bom senso evitar situações perigosas para todos os sexos em todas as idades, só vale se você estiver com essa ideia de “mulher andando sozinha numa rua deserta de noite” como situação de risco para estupros.
De fato, se fossem só esses casos, mais polícia e até mesmo cuidado pessoal de mulheres poderia ser um caminho. Mas, quando saem dados dizendo que a maioria das vítimas são crianças e pré-adolescentes em casa ou em lugares supostamente seguros… é muito importante mudar o foco de segurança pública e “soluções práticas” e olhar para a realidade horrível da coisa. O problema dos estupros no Brasil não se resolve com mais policial na rua ou atenção a quanta bebida se toma.
Ainda seria um número terrível se fossem os 3% de mulheres que relatam ter sido estupradas depois dos 14 anos, mas 3% estão dentro das capacidades de repressão com mais competência de polícia e autoridades. Dos 15% da pesquisa, 12% são menores de idade, e 9% ainda mais: menos de 13 anos. O Brasil tem um problema mais ou menos comum em sociedades desiguais com estupros, e tem uma hecatombe nuclear de problema com abusos de crianças e adolescentes.
Mais um ponto: a legislação brasileira e quem coleta esses dados segue a mesma definição sobre relações sexuais com menores de 13 anos, é sempre estupro, não importa o que diga a pessoa menor de 13 anos. Se uma pessoa adulta sugere algo sexual para uma criança e a criança concorda, é estupro do mesmo jeito. Mesmo assim, a pesquisa não presumiu estupro, ela perguntou para as mulheres explicitamente se tinha sido estupro. Não tem nada a ver com começar a vida sexual antes dos 13 e a “sociedade” chamar de estupro, é literalmente sobre a parte das pessoas que responderam que reconheceram suas experiências como estupro.
Daqui uma presunção bem incômoda: essas são as que lembram de algo que sabem reconhecer como não consensual. Provavelmente tem as que bloquearam, as que acharam que foi consensual e as que simplesmente não conseguem falar disso, mesmo lembrando. Pode ser muito mais do que isso.
Estabelecidos esses pontos, temos que entender também quem está cometendo o crime. Se 12% das mulheres entrevistadas foram vítimas antes dos 13 anos (9% até os 13, 3% antes e depois dos 13). E aí, qualquer “esperança” que o número de homens estupradores ser muito menor que 15% em comparação desaba. Com vítimas dessa idade, é imensa a probabilidade de ser uma escala de um por um, ou seja, é um homem próximo com acesso e muitas vezes confiança de meninas.
Do crime imaginado de um homem correndo atrás de uma mulher adulta num beco escuro, sobra quase nada. Não acho que estou sendo polêmico ao dizer que o Brasil tem um problema muito maior de abuso contra crianças do que propriamente a ideia de estupro que a maioria das pessoas tem.
E como a parte do abuso em casa ou com conhecidos é a mais incômoda de pensar, por ser praticamente impossível de resolver de fora para dentro, pode ser que até mulheres se enganem achando que o problema do Brasil é que não tem repressão suficiente ao estupro violento. Podemos começar a pensar sobre educar homens a respeitar mulheres, e mal nunca vai fazer, mas não é exatamente esse o ponto.
Não estão tratando meninas de forma humanitária. Não estão tratando crianças de forma humanitária. Um dos problemas mais conhecidos sobre sociedades brutalizadas e desiguais é abuso de pessoas muito frágeis. Não estou falando apenas de sexualização precoce, é covardia descarada contra todo mundo que não pode se defender.
Acho que essa parte acaba bloqueada na mente de quem analisa a situação. É algo terrível de pensar: quantas pessoas frágeis estão sofrendo na mão de absolutos covardes nesse país, enquanto você lê este texto? E o motivo não precisa ir além de baixíssimo desenvolvimento intelectual e inteligência emocional negativa. Quem está no caminho dessas pessoas vai apanhar física e emocionalmente na primeira oportunidade.
Evidente que homens são desproporcional maioria em abusos de todos os tipos contra crianças e/ou qualquer pessoa mais frágil, pela agressividade e pela força física, mas não sei se adianta discutir esse assunto pelo ângulo da mulher. Mulheres brutalizadas também abusam muito de crianças, mas não da mesma forma sexual que tantas meninas relatam.
Sociedades evoluem virando essa chave de abuso contra os mais fracos. O grau de escrotidão do ser humano não pode nem ser comparado com Lei da Selva, porque mesmo que o bicho ataque quem é mais fraco, normalmente tem um objetivo prático. Mesmo que seja o instinto de caçar. O grau de abuso que o ser humano chega ao lidar com seres mais frágeis que ele tem um fator psicológico muito mais complexo. Maltratam para se sentir bem.
O meu ponto aqui é que precisamos saber que quem estupra nesses casos é um público que vai muito além de querer abusar sexualmente de mulher, querem abusar de fragilidade. Eu duvido que ações contra o estupro atinjam esse problema fundamental, porque vai muito além do conceito de estupro, é gente covarde mesmo.
Posso estar enxergando muito aqui, mas nem me parece tão sexualizado assim. É pelo abuso. É gente que provavelmente foi muito maltratada na infância e empurra o comportamento geração após geração. Novamente, mal não faz tentar conscientizar as pessoas sobre estupro, mas uma hora ou outra temos que olhar para o elefante na sala: uma parte assustadora da nossa população enxerga crianças como alvos fáceis, e não tem nenhuma barreira interna para praticar os atos mais horríveis contra elas.
Eu nem sei o quão separado isso está de bater, humilhar e traumatizar crianças… porque abusos sexuais são parte de várias táticas de tortura. Se você consegue enxergar seguidos contatos sexuais com crianças como uma forma de tortura (e várias das vítimas reagem como se fossem vítimas de tortura pelo resto da vida, porque é algo que a criança não entende e gera reações emocionais muito fortes), você consegue enxergar o tamanho do problema que a sociedade enfrenta.
É mais do que estão “mexendo” com as meninas, estão as torturando e deixando marcas para a vida toda. Se a gente quiser lidar esse assunto apenas por uma lente de iniciação sexual, surgem áreas cinzas que nada tem a ver com o problema da violência contra crianças. É sobre adultos covardes torturando crianças, mesmo que em suas cabeças vazias não seja a mesma coisa.
Do algo do meu desconhecimento aprofundado sobre o tema, me parece muito importante tratar da doença e não de um dos sintomas que é o abuso sexual de meninas. Porque se formos realistas, não existe remédio para esse sintoma: as meninas abusadas vão continuar dentro da mesma casa dos agressores, e se em momento algum conseguirmos colocar na cabeça de um povo brutalizado que estão torturando crianças de várias formas, inclusive sexualmente, eu não vejo resolução.
Tem algo que grita chamando atenção quando vemos estatísticas como essas, e eu sei que é praticamente impossível não focar na parte de homens abusando de meninas, mas se quisermos sair do ciclo inútil de aumentar penas para crimes que não são punidos, precisamos entender que é muito mais do que isso. É uma sociedade cheia de pessoas brutalizadas que sequer percebem como maltratam qualquer um que parece mais frágil que elas.
E normalizam isso. Acham nada de mais espancar e berrar com crianças, sem perceber que isso é mais um elemento que gera essas estatísticas de abuso sexual contra crianças e adolescentes. Eu não sei como essa pessoa que abusa da criança racionaliza o comportamento, mas se eu tivesse que apostar, apostaria que passa por separar contato sexual não consentido de outras formas de violência e tortura psicológica. E não me parece separado, é só o veículo do abuso que muda.
Sou da teoria que sociedades só evoluem quando combinam esforços para manter crianças seguras de verdade, fora de casa, é claro, mas especialmente dentro. A coisa não avança com gerações e gerações de crianças traumatizadas. A questão do abuso sexual chama mais atenção, mas eu acredito que uma pesquisa que considerasse vários outros tipos de abusos físicos e psicológicos não sexuais nos daria um cenário ainda mais chocante sobre como o país está se sabotando geração após geração.
Sim, todos contra o estupro… mas não é isso que essa pesquisa mostra de verdade. Quem estupra é quem não tem cérebro suficiente para entender que criança precisa de um nível altíssimo de proteção e segurança para desenvolver seu potencial e melhorar a vida de todo mundo. Nossa plantação de humanos envenena as sementes e fica se perguntando porque a colheita é tão ruim.
Há muito tempo não visito o Desfavor, lembro que era leitora na adolescência, mas hoje trombei com esse texto e achei absolutamente pertinente a sua abordagem. Existem, inclusive, pesquisas mostrando que castigos físicos aplicados a crianças geram a mesma forma de trauma e reação psicológica que um abuso sexual teria. Como explicar isso pra grande porcentagem da população que vive sendo brutalizado no trabalho e precisa de alguém pra descontar a raiva? Como explicar pra grande porcentagem da população que acha que agressão equivale à educação e que se recusa a não perpetrar um ciclo de violência porque tem a mentalidade mesquinha de “se eu passei por isso, você não merece ser poupado”? Pior: como explicar isso para os genuinamente ignorantes que acham que estão criando bem seus filhos ao terem esse padrão de comportamento?
Não é de agora. Vem desde a abolição da escravatura e até antes, só muda o veículo de opressão.
O estupro não é motivado por prazer ou por lascívia, como pessoas tentam pregar ao dizer que a prostituição é um mal necessário pra proteger as “mulheres honestas” (culpa da Igreja Católica, não ironicamente), mas por poder. No início do ano, houve um rapaz que foi espancado e estuprado com uma barra de ferro durante um confronto entre torcidas organizadas por homens (presumidamente) heterossexuais. O problema está exatamente no que nós como sociedade em geral reconhecemos como estupro – e, se pararmos pra pensar bem, no quanto a maioria dos nossos pilares estruturais foram erguidos sobre ele.
“temos que entender também quem está cometendo o crime. Se 12% das mulheres entrevistadas foram vítimas antes dos 13 anos (9% até os 13, 3% antes e depois dos 13). E aí, qualquer “esperança” que o número de homens estupradores ser muito menor que 15% em comparação desaba. Com vítimas dessa idade, é imensa a probabilidade de ser uma escala de um por um, ou seja, é um homem próximo com acesso e muitas vezes confiança de meninas.”
Alguns dados disponibilizados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (lembrando que tem todo um problema de subnotificação/notificação inadequada de crimes):
87.545 vítimas de estupro em 2024 (isso dá 240 vítimas dia, 10 por hora);
76,8% das vítimas eram vulneráveis: cerca de 10% tinha entre 0 e 4 anos; 18% entre 5 e 9 anos; 33% entre 10 e 13 anos; e 16% entre 14 e 17 anos;
45,5% dos autores dos estupros eram familiares das vítimas; e cerca de 20% eram parceiros ou ex-parceiros.
“Not all men”, but enough men.
Este texto me impactou. E os comentários também.
A mim também, UABO.
Sem palavras! Abordagem totalmente pertinente!
Eu nunca fui estuprada, mas sempre me senti violada, e toda questão envolvendo pedofilia, abuso infantil e similares, sempre me atingiu de uma forma muito pessoal e eu nunca trabalhei o por quê, até mesmo por medo de desenterrar algo que minha mente poderia ter escondido.
Hoje ao ler esse texto e entender a equivalência do estupro infantil à tortura, pude finalmente concluir o sentimento: Fui espancada dos 07 aos 14 anos, por uma pessoa muito amada, e como você bem colocou: “várias das vítimas reagem como se fossem vítimas de tortura pelo resto da vida, porque é algo que a criança não entende e gera reações emocionais muito fortes”.
É ISSO!
Acredito que o estupro seja a culminação de mais abuso, como o Somir disse. Trabalhei por algum tempo no IBGE e algumas mulheres que entrevistei acabavam contando as histórias delas. Sabe aquela estatística sobre o Brasil ter muitos casamentos infantis? A gente acha que isso acontece nos interiores dos interiores, naquelas regiões muito pobres, no Norte e no Nordeste. No máximo, enxergamos algo parecido quando uma pessoa ultraconservadora aponta o dedo pra uma menina abusada e grávida aos 11 anos e diz que “ela sabia muito bem o que estava fazendo e não é tão inocente assim.” Mas também acontece perto de casa.
Fiquei abismada em descobrir quão perto de mim, que moro em um bairro relativamente nobre da cidade e nunca tinha saído da minha bolha de classe média, estão essas mulheres e meninas. Inclusive dentro da bolha, era praticamente uma por bairro e nas zonas rurais ou muito pobres, quase regra. Fui a uma favela em um município vizinho em que só uma única menina adolescente não tinha tido filhos. Nos bairros ricos, cujos preços dos apartamentos está na casa dos milhões, quase sempre tinha ao menos um casal em que a mulher tinha se “casado” aos 12, 13 anos com um homem de quase 30. Ficava especialmente nítido porque nós tínhamos de perguntar sobre os filhos. Entrevistei uma mulher de 28 anos, que era casada com um homem de 64… e tinha um filho dele de 15!
Antes que me perguntem, não, a gente não podia denunciar por causa da LGPD. O máximo que nos deixavam fazer era comprar uma refeição quando tivesse gente passando fome ou descrever sem citar pessoas específicas e endereços, depois de anos.
“(…) E se em momento algum conseguirmos colocar na cabeça de um povo brutalizado que estão torturando crianças de várias formas, inclusive sexualmente, eu não vejo resolução.”
Essa frase me derrubou! Eu sei que a intenção do Somir foi a de nos alertar sobre um problema extremamente grave e que não pode (mais) ser ignorado, mas tenho que dizer que me fez mal ler este texto…