Desfavor bônus: Bianca das Neves.

A sublime canção entoada pela Banda Real guiava seus passos. Ele, galante como sempre, tentava roubar dela um simples olhar. Ela, tímida como sempre, era guiada pelos decididos passos dele pelo salão enquanto escondia em vão um sorriso debaixo de suas rosadas maçãs da face. Covardemente, seus olhos encaravam diretamente as reluzentes insígnias, provavelmente de batalhas vencidas no passado.
Estava nos braços de seu herói e tudo o que conseguia fazer era ignorá-lo. Encheu-se de coragem e procurou os olhos encantadoramente esverdea…

BIIIP BIIIP BIIIP BIIIP BII…

“Eu mereço…” – Bianca desliga o despertador e volta para debaixo dos lençóis, não antes de grunhir algumas expressões de baixo-calão. Um gosto amargo na boca leva embora os últimos resquícios de tranqüilidade da manhã.

“Aposto que o príncipe não ia gostar de me beijar assim…” – Bianca fala com o espelho. Hábito que já tentara abolir de sua vida faz tempo sem sucesso.

“E além disso, que mulher da minha idade sonha em ser princesa de conto-de-fadas? Nem para me comer aquele príncipe serviu…” – Ao terminar de escovar os dentes, prepara-se para um café da manhã nutritivo, composto de um gole de café e um cigarro.

Bianca segue então para uma chuveirada, gelada. O chuveiro estava queimado há mais de uma semana e ela tinha o hábito de só se lembrar disso quando já era tarde demais:

“AH! DROGA!”

Logo após o relaxante banho, uma longa e frustrante seqüência de escolher a roupa, dar um jeito no cabelo e cobrir as insistentes olheiras. Por alguns instantes contempla a possibilidade de tornar-se feminista e abandonar de vez qualquer traço de vaidade.

CRÉÉÉÉÉUUUUU… CRÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉUUUUUUUUUU…

“Alô?”

“Vamos logo com esse ritual de beleza, princesa!”

“Paulinho, você nem imagina como eu quero te matar agora.”

“Acelera o processo, a gente vai chegar atrasado no trabalho.”

“Estou indo…”

Bianca lembra-se que baixou o toque errado para o seu celular na noite passada. Mas não dava tempo de mais nada. Pega sua bolsa e desce apressada para pegar sua carona diária.
Paulinho é mais um daqueles imbecis do setor financeiro, mas é um imbecil que mora perto e tem um carro. Em troca de um lugar no banco de passageiros, Bianca é obrigada a ouvir as fantasiosas aventuras sexuais do colega.

“Eu disse pra ela ficar relaxada, mas a amiga estava botando pilha, sabe? Mas você me conhece, Bianquinha… comigo não tem dessa de nhé nhé nhé… eu traço mesmo! A mulata foi primeiro, ela era perfeita, sabe? Corpaço, uma bundona deliciosa. A loirinha não ficou atrás, viu eu me agarrando com a negona e veio pra festa, sabe?” – Paulinho dá uma piscadela, procurando a aprovação de Bianca.

“Hm hum…” – Bianca controla cada músculo da face para evitar uma risada. Mas o resultado é uma expressão confusa, um misto de constipação severa com ânsia de vômito.

“Tá ficando excitada, Bianquinha?” – Paulinho sorri de forma sedutora. Sedutora para ele, pelo menos.

“Não, é vergonha…” – Ela só não explica que é vergonha alheia por um homem achar que sua expressão denotaria alguma excitação sexual.

“Desculpa, é esse meu jeito honesto.” – Paulinho estufa o peito e murcha a barriga, que agora pára de encostar no volante.

“Olha só, chegamos… Daqui eu vou a pé mesmo.” – Bianca mal espera o carro parar na frente do estacionamento para saltar do veículo.

“Nosso encontro de amanhã está marcado, hein Bianquinha?” – Paulinho buzina três vezes, o suficiente para metade dos transeuntes da rua prestarem atenção na cena.

Incluindo Júlio, o vice-presidente da empresa e candidato a Mister Universo, sendo que a última atribuição, embora não oficial, era compartilhada pelo imaginário da maioria das funcionárias da empresa.

Bianca, sentindo-se horrível como sempre, percebe que Júlio presta atenção nela pela primeira vez em três anos e logo após olha para o carro de Paulinho, que vai desaparecendo da visão conforme adentra a garagem do prédio.

Ele se limita a um sorriso irônico e a cumprimenta com um aceno de cabeça.

“Eu não tenho nada com ele.” – Bianca fala sem pensar.

“Pois não?” – Júlio detém-se da caminhada rumo à entrada e espera a aproximação de Bianca.

“Eu sou solteira.” – Bianca continua falando sem pensar.

“… Tenho certeza que você encontrará alguém. Tenha um bom dia.” – Júlio sorri mais uma vez e segue seu caminho.

Bianca, estática, mal pode acreditar no que acabara de dizer. O dia tinha começado muito mal. Sem outra solução, decide que oito longas horas de trabalho maçante serão o complemento ideal para seu calvário.

Ao adentrar o elevador lotado, Bianca procura uma posição confortável e instala-se em meio à multidão. Sentindo uma pressão em suas nádegas, move-se um pouco para frente. O elevador parece demorar horas para começar a se mover. Novamente ela sente a pressão, e ao olhar para trás, percebe um estagiário abusado tentando se aproveitar da situação. Bianca fecha a cara e aponta o dedo no rosto do rapaz:

“Dá para parar de me encoxar, seu safado? Eu sou uma mulher de respeito! O que você acha que está fazendo, hein?”

CRÉÉÉÉÉUUUUU… CRÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉUUUUUUUUUU…

O silêncio constrangedor no elevador torna-se risada uníssona. Bianca começa a ficar roxa de vergonha e desce no primeiro andar no qual o elevador pára.

Bianca atende ao telefone, a voz do outro lado é de sua vizinha octogenária, Marieta:

“Bia? O seu gato está miando sem parar… Estou preocupada.”

“Ai meu Deus! Esqueci de colocar comida para ele.” – Bianca começa a imaginar Pamonha definhando de fome enquanto se pergunta por que não foi ter uma dona melhor.

“Bom, eu só resolvi avisar… Desnaturada…” – Marieta desliga.

Pamonha teria de resistir. Bianca não podia sequer considerar atrasar hoje, ainda mais com a onda de demissões que assolava a empresa ultimamente. Esperou o próximo elevador e teve uma grata surpresa. Pela primeira vez desde que chegara ali, o elevador estava vazio. Assim que colocou os pés dentro daquele delicioso e inabitado cubículo de metal, ouviu um grito:

“Espera! Espera!”

Bianca finge que não ouviu e torce para aproveitar sua dádiva sozinha. Em vão… As portas, que ficaram a centímetros de se fechar completamente, são reabertas por um enorme homem vestindo um terno claramente inapropriado para a circunferência de sua barriga. Ele sorri, o suor abundante de sua testa reluz e nesse mesmo momento, Bianca é bombardeada com um perfume horrível e em dose exagerada.

Bianca torce para chegar logo no seu andar. O silêncio no elevador é quebrado pela voz do seu acompanhante:

“Eu sou sua fada-madrinha.”

Com um movimento vagaroso, Bianca move sua cabeça para fazer contato visual.

“Isso mesmo, eu sou a sua fada-madrinha.” – O homem olha diretamente para Bianca, seu bigode suado move-se de acordo com as palavras proferidas.

“Desculpa, eu não estou te entendendo…”

“Fui mandada aqui para transformar sua vida. Aposto que com um pouco de mágica você vai ser muito mais feliz.” – Agora a situação começa a ficar realmente surreal, apesar de ser claramente um homem de mais de cento e cinqüenta quilos a falar, a voz começa a ficar doce e feminina.

“Ai, só me faltava essa, eu estou pirando.” – Bianca põe as duas mãos na frente do rosto e faz um aceno de desaprovação.

“Próximo andar: Reino Encantado das Neves.” – Ainda pode-se ouvir a voz, agora completamente feminina.

Bianca começa a imaginar se está assim por ter pulado o café-da-manhã. Apesar das mãos cobrindo seus olhos, sente uma variação na luz do ambiente. Ao desobstruir sua visão, depara-se com um lugar bem diferente de um elevador e um “rosto” conhecido:

“Pamonha?”

Continua… (ou não, vocês decidem)

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