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Desfavor Explica: Chernobyl.

| Sally | | 21 comentários em Desfavor Explica: Chernobyl.

Such is the life...O acidente nuclear da usina de Chernobyl fez aniversário, como vocês já devem ter percebido pela atenção que a mídia está dispensando ao assunto.  Todo mundo fala das vítimas, do sofrimento e da dor mas ninguém explica o que aconteceu dentro daquela usina. E é para isso que existe o Desfavor Explica: mastigar a informação para nossos leitores. Desfavor explica de hoje fala sobre o acidente nuclear na usina de Chernobyl.

Desde já me desculpo com aqueles que trabalham na área, porque eu sou uma leiga curiosa que escreve como uma leiga curiosa e por mais de uma vez vou me valer de simplificações toscas.

Para entender o que aconteceu, vamos voltar um pouco mais no tempo. Quando a usina foi construída, a União Soviética estava em guerra fria com os EUA, competindo para ver quem tinha a tecnologia mais poderosa e ameaçadora. Graças a essa picuinha, muita coisa era feita de forma não tão cuidadosa, com pressa, para poder dizer que foi o primeiro a fazer. Assim foi construída a usina: pulando uma série de estudos, testes e precauções em nome do status de poder bater no peito e dizer que tinha uma usina nuclear.

Um desses testes que deveria ter sido feito antes da inauguração e não o foi acabou desencadeando, junto com outros fatores, o grande acidente nuclear. É como se você comprasse um carro e na pressa para desfilar com ele na porta da casa do seu vizinho e fazer inveja, saísse da concessionária sem testar o freio do veículo. Especialistas afirmam que se o teste tivesse sido realizado antes do funcionamento da usina o desastre não teria ocorrido.

Para explicar o tamanho da temeridade que fizeram, vamos entender como funcionava a usina: um compartimento com material nuclear promovia fissão nuclear, que libera energia deste compartimento para outro ao lado. Esta energia aquece água líquida que se encontrava no compartimento ao lado. Aquecida, a água líquida se transforma em vapor. Este vapor sobe e gira uma turbina que tem capacidade de gerar eletricidade. Sabe o vento que empurra aquele catavento que gera energia? Pois é, só que o vento era fabricado através de fissão nuclear.

A fissão nuclear que dá início ao processo de aquecimento da água surge a partir da pancadaria entre átomos. Átomos cheios de partículas coladas são confinados e se promove sua “dispersão”, gerando energia. Pense em um baile funk. Pense em 500 funkeiros pulando e dançando colados, abraçados em harmonia todos juntinhos. Se ninguém mexer eles continuarão ali, pulando no meio da pista. Agora pense no BOPE chegando e dando tiros. As pessoas vão dispersar e correr, cada uma para um lado… Isso é fissão nuclear. Isso libera energia e energia gera calor que aquece a água, que evapora e roda a turbina. Perdão pelo exemplo, estou tentando ser didática. Se você quiser estudar a sério o assunto, procure pelo nome técnico: Força de Repulsão de Coulomb.

O chato da fissão é que uma vez que você assusta os funkeiros dando tiros eles não param mais de correr e com a correria, surgem outros funkeiros das redondezas que estavam calmos e começam a correr também. Se não controlar, você acaba tendo uma multidão correndo sem parar, o que seria bastante catastrófico e destrutivo (conhecido como “bomba nuclear”, que nada mais é do que a fissão sem controle). Então, nas usinas, é preciso controlar o corre-corre das partículas. Isso é feito instalando as chamadas “barras de controle” no local onde fica o material radioativo. Lembram dos funkeiros que corriam sem parar? As barras de controle são um cercadinho que limitam o espaço por onde estes funkeiros podem correr. Eles só correrão até onde o cercadinho permitir. Elas ficam entre o material radioativo controlando a fissão, para mais ou para menos, conforme o comando que se dê. Se você coloca muitas barras, a fissão diminuí (e consequentemente a geração de energia também), mas se você retira algumas barras ela aumenta. Parece simples. Mas não é.

Estas barras de controle ficam junto do material radioativo e costumam ser feitas de substâncias como boro ou cádmio, elementos que não favorecem a fissão. Porém, um ambiente no qual átomos se movimentam muito, como já explicamos, gera calor. Então, para que essas barras de controle funcionem como um cercadinho, conseguindo conter o movimento dos átomos, o ambiente precisaria estar minimamente refrigerado, se não, elas poderiam derrteter.

Imagine que você tem uma panela com água fervendo debaixo de uma chama do fogão. Você não quer que a água ferva, apenas que ela se mantenha aquecida. Mas se deixar ela ali, debaixo do fogo, ela vai ferver. Então, de tempos em tempos você mergulha pedrinhas de gelo nela para estabilizar a temperatura. É mais ou menos isso. A água que resfriava a usina eram as pedrinhas de gelo.

Pois bem, lembram que eu disse que deveriam ter sido realizados testes antes do funcionamento da usina? Pois é. O teste era para ver como os reatores se comportavam em caso de perda de suprimento de energia, situação onde precisariam utilizar os geradores de emergência. Se não houvesse energia, a água que estava no interior do reator não seria suficiente para resfriar o calor gerado e poderia ocorrer um acidente. Era preciso verificar se os geradores de emergência davam conta do recado e também era preciso testar se as turbinas da própria usina poderiam produzir energia suficiente para manter as bombas do líquido de refrigeração funcionando, no caso de uma perda de potência, até que o gerador de emergência fosse acionado e funcionasse.

Do nada, decidiram testar para ver se funcionava. Com a usina já operante. Porque decidiram fazer o tal teste de forma repentina? Porque temiam um ataque iminente dos EUA e queriam saber como a usina reagiria às possíveis avarias desse ataque. Aproveitaram que um dos reatores teria que ser desligado para uma manutenção de rotina e decidiram verificar se as turbinas da usina e o gerador dava conta e em quanto tempo. Daí para frente foi uma sequência de erros.

Para começo de conversa, a potência na qual o reator estava trabalhando deveria ser gradualmente reduzida, mas como demoraram muito a começar o teste, decidiram reduzi-la de forma mais drástica, para acelerar o processo. Por causa dessa barbeiragem a potência do reator foi reduzida praticamente a zero, o que, como vamos ver, é uma temeridade.

Ainda na tentativa de acelerar o processo, decidiram religar o reator e colocá-lo para funcionar “mais rápido”. Como fizeram isso? Retirando algumas das BARRAS DE CONTROLE (lembra das grades que controlavam os funkeiros?) para ver se retomava funcionamento em menos tempo. Ligaram o fogo máximo do fogão e pararam de jogar pedras de gelo na panela, para ver se esquentava mais depressa. O problema é que retiraram barras demais e a coisa saiu do controle.

Neste processo não respeitaram muitas normas de segurança. Por exemplo, o “manual de instruções” pregava que o reator jamais poderia funcionar sem pelo menos 15 barras de controle e eles o fizeram funcionar com cinco ou seis. Também não reportaram o que estavam fazendo ao escritório de segurança, como deveria ter sido feito, pois teriam sido alertados do perigo que seria recolocar as 204 barras de controle de volta no reator de uma vez só, às pressas, quando perceberam que estavam perdendo o controle.

Erros terríveis, mas o ser humano erra o tempo todo. É por isso que estas máquinas tem que ser a prova de erro humano e esta usina não era. Quando alguém erra a máquina tem que ser inteligente o suficiente para se desligar sozinha ou para não se religar. E esse mecanismo, pela pressa na construção da usina, não foi inserido.

O pior é que os próprios seres humanos perceberam o erro humano. Funcionários alertaram que essa retirada dessa quantidade de barras de controle poderia ser meio que perigoso, mas foram ignorados. Disseram que qualquer coisa era só colocar as barras de volta que elas imediatamente controlariam a fissão. Esqueceram de calcular que para que as barras entrem por completo são necessário pelo menos 20 segundos.

Quando tiraram tantas barras de controle, os átomos puderam se movimentar mais e isso gerou muito calor. Para piorar a situação, o reator de Chernobyl era de um tipo chamado RBMK (que significa “Reator de Alta Potência do Canal” em russo). Neste modelo a água usada para resfriar o reator é a mesma água usada para formar o vapor que movimenta as turbinas, ou seja, se der pau em um setor, o outro também para por reação em cadeia. Quanto menos água entrava e quanto mais rápido a água evaporava, menos a usina era resfriada.

O ideal é que o sistema de resfriamento seja independente. A União Soviética adotou este modelo porque era mais barato, mais rápido de construir e o funcionamento do reator gerava grande quantidade de Plutônio, que se pretendia usar na fabricação de armas nucleares. O fato é que com a queda drástica de entrada de água, o resfriamento diminuiu e os geradores demoraram mais do que o esperado para normalizar a situação. Considerando que o reator estava com a potência aumentada porque tinham removido as barras de controle, a coisa começou a ficar esquisita.

Recapitulando: ao desligar as turbinas, menos água entrava no reator. Quanto menos água havia, mais rápido a água que estava lá evaporava. Quanto mais vapor, mais pressão. Tudo potencializado pelo reator bombando sem as barras de controle. Com este aumento de vapor, também houve o aumento cavalar da potência do reator.

Aquelas barras de controle eram feitas de boro mas possuíam uma camadinha de grafite em suas pontas. No instante em que entraram no reator, essa pontinha de grafite causou um aumento ainda maior na potência devido a uma reação química, que em condições normais seria desprezível, mas em condições limítrofes como aquela fizeram toda a diferença. As barras não deveriam ter sido retiradas, ninguém pensou nos efeitos do grafite quando elas fossem colocadas de volta. Na verdade, acredita-se que nem sequer soubessem dos efeitos do grafite. Sem contar que elas demoram cerca de vinte segundos para entrar por completo no reator e já não havia mais tanto tempo disponível.

A água aquecida a temperaturas altas (estava em torno de mil graus) em contato com o grafite forma uma mistura explosiva chamada “gás d´água”. A situação atípica da recolocação das barras de controle provocou um aumento da velocidade de reação graças a essa reação do grafite com a água e gerou um calor tão intenso que acabou entortando estas barras e elas travaram logo na entrada, quando haviam penetrado cerca de um terço do reator.

Com isso, ficou impossível colocar barras de controle e a fissão ficou descontrolada. Com a fissão comendo solta, a potência do reator aumentou absurdamente, cerca de dez vezes da potência normal (quanto mais fissão, mais energia, quanto mais energia, mais calor, quanto mais calor, mais água evaporando, quando mais água evaporando mais turbina girando e quanto mais turbina girando mais energia). O calor bombou a tal ponto que o próprio material nuclear começou a derreter, aumentando ainda mais a pressão.

Esta mistura somada à pressão que já existia foi responsável pela explosão que destruiu a tampa do reator (pesava 1.200 toneladas). Por causa da pressa na inauguração e para contenção de custos, a usina possuía apenas uma contenção parcial. Se tivesse uma contenção melhor, a contenção recomendada talvez o acidente não fosse tão grave.

Como desgraça pouca é bobagem, o grafite do reator quando aquecido e em contado com o oxigênio graças à explosão que destruiu a tampa do reator (seu teto), pegou fogo gerando um grande incêndio. O incêndio foi um enorme desfavor pois contribuiu ainda mais para espalhar a radiação. Como se já não bastassem as 50 toneladas de material radioativo derretido que foram jogadas na superfície, as cinzas e fumaça do incêndio se encarregavam de levar a contaminação ainda mais longe. Não foi uma explosão nuclear, foi uma explosão de vapor que fez com que material nuclear seja exposto.

Existem muitas informações conflitantes sobre o acidente. O que se sabe com certeza é que o botão que ordenava a parada total de funcionamento da usina foi apertado por um ser humano várias vezes. Sabe aquela pessoa desesperada que aperta botão do elevador várias vezes como se com isso ele chegasse mais rápido? Este botão recolocaria as barras de controle de volta e o que seria a solução do problema acabou sendo o estopim para a explosão graças ao grafite.

O resto vocês já sabem. O dia seguinte é sempre mais dramático e é nele que a imprensa foca. Os moradores só começaram a ser removidos 36 horas após o acidente e se demorou cerca de uma semana para remover todo mundo. O governo não foi muito bacana com a população. Também foi incorreto os trabalhadores da usina. Inicialmente tentou limpar o teto do reator com bio-robôs chamados “Liquidatários”, mas eles deram pau por causa da radiação. Então eles decidiram que seres humanos teriam que limpar aquela bagunça. Cada trabalhador não poderia ficar mais do que 40 segundos no teto, tamanha a radiação. Muitos morreram. As fotos são impressionantes, é possível ver a nuvem de radiação. A curiosidade mórbida inerente ao ser humano é tamanha que hoje Chernobyl virou um ponto turístico. Pessoas visitam a área e tiram fotos da usina, mesmo cientes que a área ainda está contaminada. E ainda existem pessoas que se recusaram a abandonar a área e vivem no meio da radiação.

O governo soviético se portou de forma muito incorreta com seu povo e com o mundo. Tentou esconder a catástrofe e minimizar seus efeitos o quanto pode. Só distribuiu iodo à população em 23 de maio e só concluiu a vedação à usina em novembro de 1986. Acreditem, a usina só foi completamente desativada em 12 de dezembro de 2000. Sem contar que essa vedação que construíram é uma vedação provisória. Apelidada de “O Sarcófago”, foi uma medida provisória programada para durar entre 20 e 30 anos enquanto se pensava em uma solução para esta lambança. Façam as contas. O prazo de validade do Sarcófago está vencendo. Consta que já entra água da chuva no reator, tamanha a deterioração do Sarcófago. Esperemos que desta vez sejam mais prudentes.

Para me avisar que eu esqueci de escrever o texto de assinatura: sally@desfavor.com

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