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Des Cult: Minhas Sinceras Desculpas

| Sally | | 38 comentários em Des Cult: Minhas Sinceras Desculpas

Você não vai acreditar...Confesso que fui ao teatro arrastada e de má vontade. Eu não queria ver aquela peça por um único motivo: eu não gosto da atuação do ator desta peça na TV. Acho seu programa uma titica e seus personagens um desfavor. Mas fui. Fui esperando o pior, esperando duas horas de piadas sem graça onde todos se divertiriam menos eu.

Não custa lembrar que aqui a gente não se prostitui nem prostitui texto. Nunca ganhei nada de ninguém para escrever sobre assunto nenhum, nem vou. No dia em que eu aceitar um ingresso de teatro considerarei que a minha parcialidade para escrever sobre o assunto estará comprometida. Não conheço o ator e não fui com o objetivo de divulgar, criticar ou fazer propaganda. Sinceramente, fui com a intenção de dormir e nem ao menos sonhei que pudesse escrever sobre a peça.

Não poderia ter me surpreendido mais. Surpresa dupla: com o ator e com a imbecilidade da platéia, que foi muito maior do que eu pudesse mensurar. Contarei com detalhes, mas não muitos, para não estragar a proposta da peça.

Eu já estava esperando que ele entre em cena todo paramentado como um de seus personagens televisivos. Foi um alívio quando o vi de cara lavada e apenas uma calça e uma blusa branca. Foi um alívio quando ouvi sua voz normal, que diga-se de passagem, é bonita e não irritante como aparece na TV. Mas, acima de tudo, vi uma calma e segurança incomum em um rapaz de 22 anos que estava prestes a fazer o que ele ia fazer.

Ele começa a peça conversando com a platéia. Simples, humilde. Na platéia pude sentir uma impaciência coletiva no ar, como se todos estivessem pensando “Tá, tá bom, mas… quando é que a peça vai começar e você vai fazer seus personagens?”. O ator não está nem aí, ele continua falando na maior calma. Mais para frente ele diz com todas as letras que se alguém foi até lá esperando que ele faça o que ele faz na TV, perdeu seu tempo. Eu comecei a bater palmas nessa hora, mas fui contida mediante esporro.

O ator desenvolve a peça de uma forma genial. Ele faz o que ele quer, não o que o mercado demanda. Ele faz o tipo de teatro que ele gosta e de vez em quando prende a atenção da parcela acéfala da platéia (99%) com um palavrão ali, uma escatologia ali. Mas deixa claro o tempo todo seu propósito e a platéia sem perceber o segue, como filhotes de patinho atrás da mãe. Ele mantém a platéia refém, através de um palavrão aqui, uma baixaria ali, fazendo-a assistir ao que ele quer.

As pessoas ao meu lado comentam cochichando “eu não acredito que ele não vai fazer o personagem tal… eu vim só para isso”. Eu rio por dentro. O ator mostrou que é muito mais do que seus personagens burlescos de televisão. Isto o fez subir muito no meu conceito, porque ele sabe ser tudo: personagem medíocre ou bom ator. Gente que só sabe ser cult ou só sabe ser trash é igualmente medíocre. Aqueles que transitam por todos os meios e sabem interagir com todos os públicos sim são os que tem mérito. Mais: ele deixou claro que sabe o que o público quer e teve culhões de não dar.

Assim como a gente do Desfavor, o ator fazia a peça por amor. Ele não recebe um centavo por essa peça. O dinheiro vai para as pessoas que trabalham com ele no teatro. Ele vem de uma família ligada a teatro, tem amor pela causa. Quando você faz as coisas só por amor, sem interesse em uma contraprestação financeira, tudo fica mais sincero. Não que ele seja santo, ele deixou muito claro que sabe dar o medíocre a quem quer o medíocre, como faz uma vez por semana na televisão, me troca de dinheiro.

Daí você deve estar pensando: se as pessoas são babacas a ponto de consumir esse tipo de merda, não resta nada além de lamentar, certo? Errado. Resta outra alternativa escolhida pelo ator: caçoar do próprio público. A peça dele é filosofia 100% Desfavor. Ele se aproveita da idolatria do público massivamente retardado nutre por seus personagens televisivos para mantê-los reféns e fazê-los ouvir o que ele tem a dizer. Genial.

Pude perceber que no correr da peça o grau de deboche com o público que consome seus personagens de TV aumentava progressivamente. Eu estava quase subindo no palco para beijar os pés dele. O mais engraçado é que o público estava perdido, confuso, sem entender absolutamente nada mas tentando desesperadamente encontrar alguma lógica naquilo para fingir que entendeu. Afinal, só os sábios conseguem ver a roupa invisível do rei. As risadas nos momentos inadequados, os comentários cochichados e as caras da platéia me faziam ter certeza de que ninguém ali estava entendendo a real proposta da peça.

O ator prosseguiu com sua proposta, até chegar a um ponto em que burrice e a inadequação da platéia foi tanta, que o fez abrir mão da sutileza e ele disse com todas as letras o que pensava. E ainda assim a platéia não entendeu e riu. Pois é, foi isso mesmo. Ele esculhambou com a platéia, e a platéia não entendeu e riu. Foi desesperador para a meia dúzia de seres humanos pensantes presentes. Ele disse com todas as letras que as pessoas não sabem apreciar uma peça de teatro, que estão idiotizadas pela televisão e que são ignorantes o suficiente para ir ao teatro e esperar uma reprodução do que se vê na TV. Pensa que ficou cheiro de merda no ar? Nada, todo mundo riu achando que era piada.

O ator, com expressão impaciente e desolada, ainda chamou a atenção para o fato da platéia rir sempre que ele fala um palavrão, destacando que isso não é humor. E disse com todas as letras que quem ri de palavrão É BURRO. Quando ele estava se lamentando, na maior educação, que todo mundo riu quando ele falou palavrões ao longo da peça, eu, por instinto, fiz um sinal de “não” com o dedo. Por um segundo ele me olhou e lançou um sorriso maroto.

O auge foi quando ele disse que iria provar como todos os que estavam ali eram burros e ria por pouca merda e começou a imitar seu personagem mais famoso. Antes de começar disse que quem risse daquilo era BURRO. Começou a imitá-lo e todos caíram na gargalhada. Senhoras e Senhores, trollagem no teatro é possível. Meu herói!

Mas a humilhação unilateral não parou por aí. Em determinado momento ele se impacientou, colocou as mãos na cintura e disse “Vamos lá, vocês querem o que vocês viram na TV? O que vocês querem que eu faça?”. A platéia começou a gritar nomes de personagens. A medida que a platéia ia gritando, ele ia fazendo trechos dos personagens e depois dizia coisas como “Tá, e aí?” como quem diz “grandes merda fazer isso”. Passeou por cinco ou seis personagens que ele faz e quando acabou deu uma grande lição na platéia, pena que poucos entenderam o que ele estava dizendo. Adorei a forma como ele tratou com desdém seus personagens da TV.

Não vou falar mais para não estragar a peça e a proposta da peça. Quero falar agora do pós-peça, quando o ator saiu de cena, de forma pouco convencional. A reação da platéia se dividiu em basicamente duas: aqueles que, sem perceber, se assumiram burros e acharam a peça uma merda ou aqueles que ficaram com vergonha de não ter entendido nada e saíram dizendo coisas genéricas como “ele é muito doido, né?” ou então se apegaram aos quinze segundos que ele fez as imitações televisivas (com o claro propósito de avacalhar com a platéia) dizendo “Viu? Viu? Viu que maneiro quando ele fez o personagem tal?”. Só isso que eles assimilaram da peça, os quinze segundos do personagem tal.

Foram programados para ver o personagem tal e diante da mudança proposta pelo ator não souberam reajustar suas expectativas. Não souberam nem ENTENDER que seria necessário fazer esta adequação. Ficaram idiotizados, sem saber lidar com o imprevisto. Porque jogo de cintura para se adaptar e lidar com imprevistos requer um mínimo de inteligência. Infelizmente a cultura e os meios de comunicação estão tão padronizados e previsíveis que quando algo sai do esperado as pessoas não apenas não entendem como muitas vezes nem percebem. É nisso que dá ninguém inovar, as pessoas estão idiotizadas por causa do humor massificado. Desaprenderam a interpretar.

Juro para vocês que eu fiquei deprimida ao final da peça. Como pode tanta gente burra com tão alto poder aquisitivo? As pessoas são incapazes de depreender o conteúdo global (no sentido de conteúdo total) da peça e de conectar idéias. De todas as coisas interessantes que ele fez e disse o que ficou marcado na cabecinha tosca das pessoas foram aqueles quinze segundos de personagem televisivo (para o qual a platéia se programou) ou aquela piadinha escatológica ou com palavrões, contada justamente para provar o ponto do ator: a platéia é burra.

As pessoas não entenderam nada. E, ao não entender, a reação foi dizer que gostou, que achou bacana. Porque? Porque é um ator de televisão com personagens famoso, então, tem que achar bacana, afina, o cara deve ser bom, né? Se todo mundo gosta, se o programa dele tem audiência, melhor achar bom, vai que alguém te acha burro por contrariar a maioria! Gente sem juízo crítico sofre desta mazela: tem sempre que acompanhar a maioria sob pena se ser taxado de imbecil. Porque ao discordar da maioria você tem que apresentar argumentos muito bem fundamentados, caso contrário é execrado. Falo com conhecimento de causa, porque escrevo uma coluna aqui chamada “Flertando com o Desastre” destinada justamente a discordar da maioria nos mais diversos temas.

Durante a peça toda, ele oscila em diferentes tipos de estímulo que joga para a platéia, quase que em uma experiência antropológica, medindo até onde chega o grau de burrice das pessoas hoje em dia. Tal qual traficante, liberando aos poucos droga para o viciado, o ator vai dando seu recado e mantendo a platéia presa em seu relato com eventuais gotas do humor que eles demandam, coisas como “quando eu era pequeno enfiei uma escova de dentes no cu”. Assim, ele manipula as pessoas (para o bem delas, diga-se de passagem) e as faz ouvir o seu recado. Pena que ninguém entende, por mais claro que ele tenha falado. As pessoas estão retardadas, mentalmente bloqueadas e cegas a qualquer coisa que fuja de linguagem simplória de TV ou 140 caracteres de Twitter.

Momento fofoquinha mesquinha de espírito sem luz. Porque se não tivesse um momento fofoca, não seria eu. A Gracyanne Barbosa (porque pobre adora consoante?), aquela moça cuja profissão é se esposa do Belo e madrinha de bateria de escola de samba paga pelo Belo, estava na platéia, perto de mim. Em determinado momento da peça, o ator narra um encontro dele com o demônio, e ao descrever o demônio informa que ele tinha chifres, rabo e a cara do Belo. Gente, eu ri tão alto, mas tão alto… Que merda, hein? Você, mocinha que está cursando o segundo grau: ESTUDE, MINHA FILHA, se não você vai ter que se juntar com alguém com a cara do Belo para te sustentar e comprar tua maconha básica do dia a dia… ops! Falei demais. Vamos voltar para a peça que é melhor.

Confesso que hoje veria o programa de TV do ator com outros olhos, porque sei que ele sabe fazer mais, pode fazer mais e só faz aquilo porque quer. Me identifiquei. Eu me dou ao luxo de escrever sobre cocô porque sou segura o bastante a ponto de saber que posso escrever também sobre política internacional e direito. Bacana, versátil. Agora os personagens do ator na TV não me irritam mais, os encaro como deboche a toda essa massa burra que os assiste, ri e bate palminha, como focas retardadas, em suas poltronas.

Eduardo Sterblitch, suas sinceras desculpas estão aceitas. Sua peça é muito boa. E olha que em três anos de blog não me lembro de ter elogiado aberta e sinceramente quase nada. Você usou como isca seus personagens de TV para reunir pessoas e falar-lhes umas verdades na cara, com muita educação, muito charme e muita sutileza. Você fez a sua parte, se eles não entenderam, problema deles. Você contribuiu para um mundo melhor. E me divertiu por duas horas.

“Minhas sinceras desculpas”, monólogo de Eduardo Sterblitch, humorista do pânico que faz, entre outros personagens, Freddy Mercury Prateado, Ursinho Gente Fina, Cesar Polvilho, Malisa e outros. Desfavor recomenda.

Para dizer que se a gente recomenda deve ser uma bosta, para dizer que você gosta de Pânico na TV e está ofendido com o texto ou ainda para dizer que você está ofendido com Eduardo Sterblitch sem sequer ter visto a peça: sally@desfavor.com

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