Des Contos: Eu te odeio.
| Somir | Des Contos | 32 comentários em Des Contos: Eu te odeio.

Gustavo e Camila estavam prestes a completar três anos de namoro quando ele a flagrou aos beijos com um colega de trabalho. Bem em frente à empresa onde ela trabalhava, após decidir fazer uma surpresa e oferecer uma carona. Após uma ríspida abordagem aos beijoqueiros, que precisou ser contida por três pessoas próximas antes de virar caso de polícia, Gustavo fez questão de dizer em alto e bom tom que estava tudo acabado.
Ele não sabia naquele momento, mas isso passava longe de ser verdade. Apesar do rompante de violência diante da traição vista ao vivo e a cores, Gustavo sempre fez mais o tipo pacato, introspectivo. Mais implosivo do que explosivo, por assim dizer. Nem todos os impropérios e ameaças que fizera no dia do término foram suficientes para expurgar toda a mágoa que envenenava tanto seu corpo como sua mente.
E isso teve resultados péssimos em outros aspectos de sua vida: Num espaço de dois meses afastou-se de amigos, família… Seu rendimento no trabalho desabou. Gozando de ainda alguma simpatia de seus empregadores pelo momento emocional turbulento, acabou demovido ao invés de despedido. Salário bem menor, trabalho maçante, poucas responsabilidades… muito tempo livre.
Tempo o suficiente para maquinar um plano de vingança contra sua ex-namorada, agora num relacionamento estável com o ex-amante. No exato dia do que seria o aniversário de três anos do ex-relacionamento, Gustavo manda um e-mail para Camila:
De: gustavo.chagas81@(excluído)
Para: camilabela27@(excluído)
Assunto: Eu te odeio.Eu te odeio.
A resposta não tardou. Camila adota uma postura humilde, reconhecendo seu erro e aconselhando seu ex-namorado a seguir em frente. Nada de muito extenso, nada de muito desnaturado. Mas Gustavo não parecia interessado em fechar nenhuma ferida. No dia seguinte, na mesma hora, ele manda outro e-mail, idêntico.
Camila responde mais uma vez, agora com um pouco mais de substância. Embora claramente pisando em ovos, é um pouco mais assertiva sobre a parte de Gustavo seguir em frente. Talvez tentando desarmar a situação, até faz alguns elogios e apela para os momentos felizes daquele relacionamento.
Novamente, nenhuma resposta a qualquer um dos pontos levantados por Camila. No dia seguinte, na mesma hora… O mesmo e-mail: “Eu te odeio.”. Dessa vez a resposta de Camila só chega no começo da madrugada. Parágrafos e mais parágrafos analisando o relacionamento dos dois, num tom bem menos amistoso. Inclusive terminando sua mensagem com uma menção ao comportamento infantil de Gustavo e pedindo que ele não entre mais em contato.
No dia seguinte… Gustavo manda novamente o e-mail apenas com as três palavras. Sem resposta. No dia seguinte, idem. Gustavo segue com seu ritual por mais uma semana, até finalmente receber uma resposta:
De: camilabela27@(excluído)
Para: gustavo.chagas81@(excluído)
Assunto: Re: Eu te odeio.Eu aguentei o que dava pra aguentar, estou te bloqueando… ME ESQUECE!!
> Eu te odeio.
Gustavo não se fez de rogado, criou uma nova conta de e-mail e mandou novamente sua declaração de ódio, no mesmo horário. Sem resposta. E assim fez por mais de um mês, criando um e-mail novo todos os dias para ter certeza que a mensagem seria recebida.
Para completar o comportamento inadequado, Gustavo ainda acompanhava avidamente o perfil de sua ex numa famosa rede social, contava com amigos “infiltrados” dos quais retirava informações sobre quaisquer novidades da parte dela. Gustavo não se importava com mais nada além de mandar sua mensagem, exatamente na mesma hora e com as mesmas palavras, todos os dias sem falta. E principalmente, que Camila os recebesse.
Mal percebeu quando seu status de relacionamento no site passou de “comprometida” para “solteira”. Após ignorar algumas tentativas de contato telefônico por parte de Camila, Gustavo finalmente recebeu uma resposta. Um quilométrico desabafo da parte dela, abrindo seu coração e praticamente se jogando de volta nos braços dele. Com declaração de amor e pedido de perdão incluídos.
Gustavo respondeu. No dia seguinte, na hora de sempre, com outro endereço de e-mail: “Eu te odeio.”. A verdade é que desde que havia começado esse processo, a vida de Gustavo havia melhorado substancialmente. Estava mais aberto, sociável… o desempenho no trabalho estava quase rendendo um retorno a sua função original. Começou a praticar esportes, cuidar da saúde, da aparência… O sucesso com as mulheres veio logo em sequência.
Gustavo parecia especialmente animado ao redor da hora do almoço. Mesmo que tudo mais desse errado no dia, o simples fato de mandar o e-mail já compensava. E mesmo sem mais respostas de Camila, continuou o ritual, sempre encontrando maneiras de burlar as tentativas dela de não receber mais a correspondência indesejada.
Passaram-se meses… e esses meses tornaram-se anos. Gustavo não havia falhado sequer um dia nos dois anos e nove meses que se passaram. Mesmo numa ocasião onde foi vítima de um acidente automobilístico, conseguiu mandar sua mensagem de ódio por um celular da cama do hospital. Ditando para uma enfermeira confusa. Numa fase onde Camila decidiu se afastar da internet e sequer chegar perto de e-mails, Gustavo deu um jeito de destilar seu ódio pelas boas e velhas cartas. Apenas uma folha de papel com a frase de sempre… Nada o detinha.
Camila às vezes respondia, contando seus problemas, dizendo como estava se tratando de uma depressão severa, de como se tornara solitária e amarga… Em certas ocasiões parecia apenas desabafar sobre sua vida cotidiana. Em um dos e-mails mais recentes até descreveu um filme que assistira na televisão recentemente. Parecia deslocada da realidade.
Gustavo, alheio a quaisquer palavras dela que chegavam à sua caixa-postal, respondia sempre da mesma forma, no mesmo horário. Eventualmente Camila começou a responder todos os e-mails… Como se estivesse conversando mesmo com uma pessoa muito próxima, o tom mudara completamente, ela parecia completamente alienada do fato de que aquele homem estava escrevendo.
Aquela troca de e-mails estava prestes a completar três anos. Foi quando Gustavo finalmente deu cabo de seu plano: Numa banal terça-feira, sem explicação alguma, deixou de mandar a mensagem.
No dia seguinte, recebe a seguinte mensagem:
De: luaminguante938@(excluído)
Para: eusemprevouteodiar@(excluído)
Assunto: Td bem?Aconteceu alguma coisa???
Gustavo não respondeu. Camila mandou outro e-mail no dia seguinte. Novamente ele não o dignificou com uma resposta. E isso continuou por mais de uma semana, as mensagens dela progressivamente mais desesperadas. Apelos, ameaças, chantagens e fúria em uma fascinante e humilhante demonstração de descontrole emocional humano.
Ele finalmente cancelou sua conta de e-mail. Limpa todos os registros de suas “conversas” com Camila, cancela todas as contas de e-mail ainda ativas e elimina quaisquer traços de ter mantido contato com sua ex por tanto tempo. Tudo tem o seu fim.
Uma semana depois, fruto da preocupação de colegas de trabalho e de um estranho cheiro que emanava de seu apartamento, a polícia encontra o corpo desfalecido de Gustavo no chão de seu quarto, logo ao lado de sua cama. Peritos confirmam que ele estaria morto há pelo menos alguns dias. A causa da morte não fica clara mesmo após vários exames no cadáver. Não há marcas de tiros, facadas ou traços de overdose ou envenenamento. “Parada cardiorrespiratória por causas naturais”, segundo seu obituário.
Moral da história? Bom, isso depende de quem lê. Ha.
FIM
Prefiro interpretar essa morte dele como metafórica.
Quando ele decidiu parar de se importar com ela, parou de mandar emails, começou a cuidar de si, as mulheres começaram a enxergá-lo novamente, o trabalho estava voltando ao normal….Foi o velho Gustavo apaixonado e que se importava com ela que morreu.
Aquele Gustavo cheio de “eu te odeio” de todos os dias estava morto.
E um novo Gustavo havia nascido pra uma nova vida, liberto da traidora e do sentimento que o atrelava a ela.
Prefiro interpretar que a morte foi uma metáfora…..
Adorei Sally!!
Bjinhos**
Desculpa Somir!!
Os créditos são seus, adorei o texto.
É que costumo falar mais com a Sally….hihihi
Bjoo**
Esse filho não é meu!
kkkkkk Foi mal, Sally…acostumada a ler seus textos sempre, tropecei.
S2
Não se preocupe! Isso também já aconteceu comigo uns bons tempos atrás aí…
Pior é que acho que eu vou ter interpretações diferentes se ler essa história de novo em outras ocasiões. Por enquanto, acho que é algo idiota ficar correndo atrás de ex quando o relacionamento terminou mal, e também é algo idiota se deixar afetar por mensagens do tipo “eu te odeio“… ou seja, era um casal de idiotas, foram mesmo feitos um para o outro. Não me surpreenderia se a história tivesse mais um parágrafo contando que ela também morreu uma semana depois.
Fataço! Concordo em número e grau com você, Koppe.
Eu acho que é aquele negócio de “Pior que o ódio é a indiferença”, porque se o Gustavo se dava ao trabalho de mandar os e-mails, é porque ele ainda se importava, embora de uma maneira equivocada, e pessoas são carentes, etc.
Concordo com vocês, se ele se dava ao trabalho de mandar os emails, é porque ainda se importava.
Sally, olha essa matéria pro Top Des!
http://noticias.bol.uol.com.br/brasil/2013/03/01/deputado-considerado-racista-e-homofobico-pode-comandar-comissao-de-direitos-humanos.jhtm
Gabriela, essa foi a infelicidade da semana. Não sei se chega a desfavor da semana, mas talvez tenha candidatura a isso.
Eu te odeio.
ps.: Fiquei matutando tentando encontrar uma moral para o final da história…. nada.
Liberar o ódio é o caminho para uma vida melhor, como mostrou o “sucesso” de Gustavo? Gustavo amava Camila e isso o movia pra frente… quando o amor foi substituído pelo ódio, ele só começou a ter sucesso quando pôde expressar o que sentia. Expressar seus sentimentos é o combustível da vida? – já que quando acabou, ele morreu (poeticamente de parada cardiorespiratória)?
Ou talvez o texto seja sobre a vingança? Quem está certo e quem está errado? Como o “certo” e o “errado” são definições culturais frágeis e que podem desabar à qualquer momento (Gustavo estava perseguindo Camila, mas ele foi traído… Camila é uma vadia sem coração, mas todo mundo merece uma segunda chance)?
Ou ainda, talvez Somir tenha proposto um exercício de auto-reflexão aos leitores. Aqui, uma situação do dia-a-dia, um casal que termina. Como você enxerga a situação e o que isso diz sobre você? Nesse caso, seria melhor que o texto se chamasse “Espelho”.
Mais ainda, o texto pode ser uma crítica social, onde o autor aborda duas importantes questões da sociedade moderna: a exposição virtual, onde as pessoas se escondem numa casa de palha achando estar seguros; e a falta de maturidade emocional, que faz com que pessoas teoricamente aptas da nossa sociedade cometam loucuras por causa da rejeição.
Porém, eu já acho que Somir está entregando uma obra performática em forma de texto: ele joga que aquilo tem significado, e o público completa pra ele.
E agora eu vi que ele admitiu isso no primeiro comentário daqui. Minha dedução perde poder.
Ou será que não? Talvez ele esteja apenas testando o poder de impacto que um autor tem com o público que consome o seu trabalho. Freud disse
“O que você faz além de sucesso?”que um homem só é dono daquilo que cala. Talvez Somir esteja testando para ver se a opinião do autor sobre o seu trabalho influencia na maneira com que os fãs/leitores enxergam a obra.Aaah, Somir, mestre da manipulação. Mal posso ver seus movimentos…
Pistoleiro gostei muito da tua análise!
Senti também no texto que há um “que” de ironia romântica, isto é… o narrador lançando a brecha, a possibilidade de duas ou mais coisas/possibilidades antagônicas e cabe ao leitor completar o sentido a seu próprio modo… Leia-se: manipulação feelings! rs
Fez lembrar uma situação presenciada em um tribunal, em que uma mulher com câncer terminal teve uma sobrevida cinco vezes maior do que a prevista pela medicina enquanto movia uma ação contra o ex-marido. Depois de tê-lo vencido, sentiu um enorme vazio e morreu cinco dias depois da sentença…
Eu te odeio.
O primeiro “Eu te odeio” é se importar demais. O último é se importar de menos.
Direi minha sensação sobre este texto sem fim adequado amanhã, neste mesmo horário.
E se eu disser que te amo? rs
Seres humanos são realmente patéticos.
Quero por logo meu plano em prática de construir um robô.
Melhor ainda: Se tornar robô. Assim você se torna imune. E principalmente: Super-força robô!
É um passo um pouco mais complexo, mas vou anotar aqui. :D
E lembrar do famoso site “Eu odeio a Camila”, clássico envolvendo a “amada” personagem da Chatolina.
Enquanto escrevia, meu ódio trocou de lado algumas vezes…
moral da historia não mecha com a sua ex ela pode te invenenar e fazer parecer morte natural
É uma forma de enxergar.
Suas histórias não têm moral. Cada um entenda o que quiser.
Às vezes, eu penso que o Somir baseia essas histórias dele em experiências pessoais… tenho certeza que alguma ex já fez isso com ele. Ou algo parecido.
Essa é uma das primeiras vezes que eu “solto” o texto e não tento controlar as presunções sobre a história enquanto escrevo.
Quem quer que comente vai acabar se expondo.
Sinto-me exposto.
Mas é fato que qqr um que comente se exponha, afinal, toda interpretação é antes de tudo uma imposição de valores(subjetivos) frente ao objeto interpretado!