Des Contos: Ozon – Parte 2

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Primeira parte aqui.

O som grave faz vibrar o visor do capacete de Heitor. Luzes avermelhadas dançam sobre o vapor de sua respiração, o ar cada vez mais ralo faz seus pulmões trabalharem vigorosamente. A consciência vem acompanhada de pânico, suas mãos desesperadamente tentando encontrar a trava de segurança. Inspiração e expiração perdem seu propósito, seus gritos propelidos apenas pelo dióxido de carbono. Uma dor violenta toma de assalto seu peito…

Sua mão esquerda finalmente consegue colocar pressão suficiente no botão correto. O capacete descola-se do traje, que despressuriza-se no mesmo instante. O ar frio que encontra seu caminho por debaixo da fresta recém aberta é recebido com alívio. Já sem o visor borrado pela sua respiração ofegante, Heitor consegue ver e ouvir com mais clareza o ambiente no qual se encontrava.

Um largo túnel metálico, fios aparentes e luzes intermitentes. No chão, um monotrilho demarcado por tinta amarela e carcomida sustenta uma espécie de vagão com apenas quatro lugares, visíveis pela porta escancarada. Todo o ambiente banhado pelas luzes e sons de duas grandes sirenes vermelhas, dispostas em lados opostos próximas à altura de sua cabeça. Uma voz metálica repete algo a cada trinta ou quarenta segundos, infelizmente não numa língua conhecida por Heitor.

HEITOR: Desliga isso!
VOZ ROBÓTICA: *ininteligível* Padrão comunicativo alterado. *ininteligível*
HEITOR: *pensativo* Sim!
VOZ ROBÓTICA: Confirmado. Forma de vida não identificada no setor E-1. Sinais vitais estabilizados. Cancelando emergência médica.

Heitor desvencilha-se dos cintos de segurança e ergue-se para fazer melhor senso de sua localização. Ainda com dificuldades para se concentrar pelo som poderoso da sirene, fecha os olhos e tenta se concentrar na voz.

VOZ ROBÓTICA: Forma de vida não identificada no setor E-1. Todas as saídas lacradas. Aguardando resposta do gerente.
HEITOR: Eu… EU… sou o… sou o novo gerente… NOVO GERENTE!
VOZ ROBÓTICA: Forma de vida não identificada no setor E-1. Todas as saídas lacradas. Aguardando resposta do gerente.
HEITOR: HG93… D!
VOZ ROBÓTICA: Código de Controle correto. Favor imputar comando.
HEITOR: Iniciar protocolo de introdução. Pausar todas as emergências.
VOZ ROBÓTICA: Confirmado. Favor dirigir-se ao terminal mais próximo para configuração do sistema.

Heitor procura ao seu redor e logo encontra um painel de comando na parede. Depois de se livrar do desajeitado traje, estica o pulso sobre uma placa de vidro que se ilumina com raios verdes. Após rápida leitura, o painel todo se acende, exibindo vários dados sobre ele.

VOZ ROBÓTICA: Heitor Zordo 12R33, seja bem vindo à Mina Ozon-C Alfa. Favor definir a forma de tratamento predileta.
HEITOR: Pode ser Heitor mesmo.
VOZ ROBÓTICA: Confirmado. Heitor, favor entrar no VTI.
HEITOR: Isso? *apontando para o vagão*
VOZ ROBÓTICA: Correto.

Heitor embarca e senta-se no primeiro banco à esquerda. Logo à frente uma grande porta isola o ambiente. O veículo começa se fechar, com o característico som da pressurização. O vagão começa a se movimentar cada vez mais rápido, demonstrando as verdadeiras dimensões do túnel à sua frente. Logo após algumas centenas de metros, começa uma íngreme descida em alta velocidade, na maior parte do caminho as únicas luzes disponíveis são as do próprio veículo. Mesmo assim é possível perceber que muitas das paredes do cada vez mais apertado túnel foram escavadas diretamente na rocha e não apresentam nada além de grossos cabos encravados como lembranças da presença humana ali.

Cinco minutos de descida vertiginosa depois, mais uma grande porta – agora aberta – demarca a última estação da jornada. Um salão muito parecido com o que acabara de sair o aguardava do outro lado. Diferença notável apenas a escotilha no fim da linha. Depois da pesada porta finalmente se fechar atrás dele e o aviso de sala pressurizada ser projetado na janela frontal do vagão, as portas de seu transporte finalmente se abrem.

VOZ ROBÓTICA: Favor dirigir-se ao setor R-21 pela porta à sua frente.

Heitor para em frente à escotilha, passivo. Não há nenhum mecanismo de abertura manual e nenhum sinal de abertura. Nela, só um número de série.

VOZ ROBÓTICA: Favor dirigir-se ao setor R-21 pela porta à sua frente.
HEITOR: Está fechada.
VOZ ROBÓTICA: Incorreto. Porta aberta. Favor dirigir-se ao setor R-21 pela porta à sua frente.
HEITOR: Escuta aqui, a porta está fechada. Eu estou vendo!
VOZ ROBÓTICA: Incorreto. Porta aberta. Favor dirigir-se ao setor R-21 pela porta à sua frente.
HEITOR: HG93D.
VOZ ROBÓTICA: Código de Controle correto. Favor imputar comando.
HEITOR: Abrir porta… E1R21.

A porta começa a se abrir. Lentamente.

VOZ ROBÓTICA: Confirmado. Heitor, deseja retomar o protocolo de introdução?
HEITOR: Sim.
VOZ ROBÓTICA: Confirmado. Favor dirigir-se ao setor R-21 pela porta à sua frente.
HEITOR: Isso vai ser mais difícil do que eu imaginava…

Enquanto a porta se abre, Heitor percebe um andróide escorado do outro lado. Instintivamente, dá um passo para trás. O autômato, modelo antiquado da época das Guerras de Andrômeda, parece completamente desligado enquanto desaba praticamente sobre seus pés.

HEITOR: Opa! O que é isso?
VOZ ROBÓTICA: Você deseja uma definição, Heitor?
HEITOR: Como eu disse… o que é isso?
VOZ ROBÓTICA: Favor descrever ou apontar.
HEITOR: ISSO! *apontando*
VOZ ROBÓTICA: Analisando… favor agua… Definição: Andróide Médico série Z44, número de série HU000283H962KANN20029-XXB2, status atual desativado por descarregamento de bateria.
HEITOR: E você disse para ele que a porta estava aberta, não?
VOZ ROBÓTICA: Confirmado.
HEITOR: Meu Criador! Esse lugar está todo assim?
VOZ ROBÓTICA: Você deseja uma definição, Heitor?
HEITOR: Não. Eu quero um pouco de água e descanso.
VOZ ROBÓTICA: Confirmado. Seguir para setor L-1…

A voz vai indicando o caminho, sala a sala. O local todo parece uma estação espacial vinda diretamente do Segundo Ciclo, acanhada e tomada por fios, canaletas, estruturas e painéis de tecnologia obsoleta há milênios. É com alguma demora que Heitor navega pelos corredores labirínticos do local, mesmo com a ajuda do sistema geral. O que mais lhe chama a atenção e incomoda é que todas as salas precisam ser pressurizadas antes de permitir sua entrada. Com certeza a Mina Ozon-C Alfa não foi otimizada para permanência de pessoas. Mais uma prova disso são os seus aposentos: O diminuto compartimento não permitia muita margem de manobra, aparentemente projetado apenas para servir de dormitório.

De qualquer forma, Heitor estava exaurido pela experiência até aqui. Mesmo a pequena cama desarrumada oferecia conforto incomum para quem passara os últimos dois meses de sua vida enfurnado numa ainda mais inóspita nave classe XM. Sentindo seus olhos finalmente fecharem pelo cansaço – ao contrário de suas últimas experiências – ele começa a pensar em tudo o que terá de fazer nos primeiros dias de gerência, e tudo o que não irá fazer no resto dos vinte anos de missão. Colônias robóticas em planetas e luas distantes sempre precisaram de pouca ou nenhuma supervisão humana, mesmo as mais arcaicas como a de Ozon-C. A presença dele ali era mais uma garantia do que uma necessidade.

Mas o pagamento compensava para Heitor. O pagamento e o acesso irrestrito a uma novíssima cabine de manutenção fisiológica entregue junto com ele. Vinte anos são vinte anos, pensava, mas bem menos incômodos se você pode passar por eles tendo exatamente a mesma idade. Menos sorte teve o gerente anterior, que sem acesso a nenhuma dessas tecnologias foi vítima de um ataque cardíaco aos 58 anos de idade, 12 deles preso aqui. Heitor mal o conhecia além de algumas luminografias e dados sobre seus serviços em Ozon-C, mas morrer sozinho num lugar desses parecia um epitáfio daqueles que ninguém deseja nem para o pior inimigo. Oito anos esperando num freezer até que um estranho fizesse algo minimamente parecido com um funeral.

Perdido em divagações sobre seu trabalho, o sono finalmente o alcança.

Logo depois, a sirene.

VOZ ROBÓTICA: Forma de vida não identificada no setor E-1. Todas as saídas lacradas. Aguardando resposta do gerente.

Continua na parte 3.

Para dizer que ainda não aconteceu nada, para pedir o código de controle para parar os textos nerds, ou mesmo para confessar que as histórias ficam mais caprichadas assim: somir@desfavor.com

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