Somir Surtado: Idas e vindas.

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A tira que ilustra a coluna de hoje – do excelente xkcd – eu já tinha visto há alguns anos. Quando o tema se formando na minha cabeça pareceu se encaixar com ela, foi muito fácil lembrar os termos exatos para fazer a pesquisa de imagem. Foi algo que ficou na minha cabeça até hoje, e por um bom motivo: Doeu. Quando eu a vi pela primeira vez, pegou num nervo exposto. Ainda bem!

Por mais que eu goste das tiras do site em questão, não estou aqui tentando encontrar genialidade demais nessa. Seria um truque barato para valorizar o meu próprio passe… na verdade, apontar a bobagem de achar que tem um olho e vive numa terra de cegos é terrivelmente óbvio. A tira fez uma observação bacana, o resto é a reação de quem não gosta de encarar essa realidade.

Talvez aqui no desfavor tenhamos um público mais sensível às implicações da ideia de que provavelmente há menos diferença entre “nós” e “eles” do que gostamos de imaginar, mas pelo visto para a maioria das pessoas o conceito não abre muitas portas na mente. Pudera: não é tão complicado assim. Na verdade, boa parte das pessoas que costumamos criticar aqui vivem pela regra que outras pessoas pensam quase que exatamente como elas.

“Se eu não gosto, ninguém deve gostar.” ou “Se eu acho certo, deveria ser lei!”. Ideias perigosas que frequentemente causam abusos e absurdos em nossa sociedade e provém de uma mesma fonte de sabedoria: a de que outras pessoas provavelmente não são tão diferentes assim; empatia e tirania como dois caudalosos rios provenientes da mesma nascente.

Mas há uma diferença fundamental: se quem aceita tranquilamente a ideia o faz apenas com uma “rodada” de pensamento, quem se dói pela perda do auto-imposto status de iluminado adiciona mais uma etapa no processo. Etapa fundamental para limar as farpas da generalização preguiçosa. Quem reconhece que é menos único do que imaginava na verdade está se distanciando ainda mais da massa. Está conhecendo o inimigo e aprendendo a usar as ferramentas necessárias para derrotá-lo.

Cada um chama o inimigo do que bem entender, mas eu o chamo de ignorância. No fundo quase todos nós temos alguma forma de renomear o medo primordial do desconhecido para melhor nos servir, só que na base é quase sempre a mesma coisa. Tem quem combata o “escuro” evitando chamar atenção, tem quem o faça acendendo uma luz, tem até uma grande maioria que imagina que a luz está acesa e contenta-se com isso! O que importa é que o inimigo tem toda a vantagem territorial, física e metaforicamente. Resta-nos apenas escolher nosso papel nessa batalha e torcer pelo melhor.

O caminho de quem se distancia do bando (mesmo que por pura arrogância) só para perceber que precisa voltar e procurar um melhor é mais penoso e exige lidar com desilusões sobre as próprias capacidades, mas com certeza permite algo essencial para não cair mais nas armadilhas do conformismo: a visão única que o distanciamento proporciona. É de uma inocência quase infantil achar que é a única pessoa com a cabeça levantada numa multidão de pessoas olhando para os próprios pés (essa foi minha analogia preferida para me explicar por muitos anos), mas é essa etapa do processo que te faz entender a perspectiva.

Não se enganem: estou defendendo a arrogância de se sentir melhor do que os outros; mas não sua permanência. É sobre o caminho, não o destino. A humildade que “vem de fábrica” com as pessoas é uma merda mal explicada e difícil de se exercer de forma consistente na vida real. Já escrevi um texto inteiro falando muito mal dessa pretensa qualidade de quem não tem outras qualidades; e aqui estou argumentando que existe sim uma humildade melhor, melhor por ser mais simples.

A humildade que vem após um golpe em sua arrogância é muito mais palpável. Você sabe o que ela significa e pode escolher exercê-la baseado em noções concretas sobre a realidade. Não é mais sobre sufocar o seu desejo de superioridade, é sobre merecê-lo. É entender o que você valoriza na vida e categorizar as outras pessoas com um mínimo de lógica e justiça.

E ter essa noção é muito difícil sem ter passado pela ilusão de importância da mentalidade “todos os outros são ovelhas”. Se você nem isso conseguiu, vai acabar achando que todo mundo é igual nivelando por baixo; se você ficar preso nessa parte, provavelmente vai ter dificuldades de conciliar o que pensa em teoria sobre a maioria das pessoas e os exemplos práticos paradoxais que muitas delas proporcionam.

Ir e voltar. Acredito que precisamos passar por isso para realmente entender as lições que a vida proporciona. É a ilusão que dá a perspectiva, e é a arrogância de achar que já resolveu tudo sobre o mundo e as pessoas ao seu redor que vai te deixar girando em falso no caminho para a evolução pessoal. Tudo isso para cair de volta no chavão “só sei que nada sei”, mas do ponto de vista de quem já conseguiu fazer seu senso da frase.

De uma certa forma, é até um alívio perceber que seu processo mental estava envenenado pela arrogância e que na verdade as coisas são bem mais complexas. Depois de algum tempo, é claro. Na hora é uma merda perceber quão merda você é, mas se tem mais o que fazer no caminho da evolução pessoal, aquela sensação chata de impotência diante do fim dos trilhos vira luz no fim do túnel. Que bom que a resposta não era só “eu sou melhor que os outros”. Seria um tédio viver depois disso.

O capacidade que temos de fazer essa jornada estendida rumo à compreensão do que nossos sentidos captam é essencial para “dar um jeito” nesse mundo. É entender as regras (escritas ou não) e ter a chance de se posicionar! Como se fosse um jogo que você acabou de aprender e agora sim está começando a apreciar. Sei que estou indo muito longe agora, mas é como se o Universo estivesse te confidenciando que acaso e destino são meras percepções e que você é muito maior do que imagina.

Nesse contexto maluco, eu começo a finalmente entender o apelo da mentalidade religiosa como algo maior do que ganância e acomodação. É ser parte de algo maior e ser de alguma consequência na escala geral das coisas. Perdoem o ateu aqui por demorar tanto tempo para sacar essa parte, mas isso é quase impossível de depreender debaixo de tanta bobagem soterrando o conceito. Mas tem diferença: talvez pela minha abençoada arrogância, talvez pela liberdade que sempre tive para pensar; mas eu já estou virtualmente imune a qualquer tentativa de enrolação e controle exercido pelo pensamento supersticioso/religioso. Eu não sei porque deuses não existem, mas sei porque eu não acredito neles.

Seja como for, essa liberdade vem diretamente do processo mais chato e perigoso de ir e voltar. Vai-se ao ponto onde todos os religiosos não parecem diferentes de pessoas com defeitos sérios no funcionamento do cérebro e volta-se à realidade que o buraco é bem mais em baixo. O afastamento gera a capacidade de apontar o que te diferencia, a reaproximação te mostra o que te faz igual. Pule uma etapa e a conta não fecha.

Ainda nesse contexto, podemos pensar em coisas como os mandamentos das religiões cristãs. Não os meta-mandamentos que servem como cobrança de crença e demonstração arbitrária de poder, mas os que lidam com problemas humanos bem mais reais como o famoso “não matarás”. Quando eu escuto religiosos médios dando suas opiniões sobre ateus, é comum que nos comparem com animais vivendo sem regras e consequências pelos seus atos. Se a pessoa não acredita no deus dela, não tem motivo para “não matar”.

Essa é a mentalidade de quem está parado. Não perde tempo para pensar de onde saiu a regra que se vangloria de seguir e não consegue suportá-la com argumentos. Tanto que defesa da pena de morte costuma andar de mãos dadas com conservadorismo de fundo religioso! É uma regra, mas não chega a fazer sentido de verdade na cabeça dessas pessoas. Ela não tem peso por si só e precisa ser suportada pelo ser mais poderoso existente. É óbvio que matar é pecado. Pronto!

Quem pensa sobre o assunto – quem vai e volta – consegue se distanciar o suficiente para ignorar o “porque sim” e pensar sobre as implicações de agir contra essa regra. Não precisa queimar neurônios para aceitar o valor da vida humana, mas dá muito mais trabalho entender isso como direito. Se a pessoa que não pensa sobre o assunto se vê diante da relatividade do valor da vida, é bem capaz de achar que matar pode ser perdoado se o dono da regra quiser assim. Se você entende que não matar é uma das fundações de uma sociedade evoluída e uma segurança para cada um de nós, não vai conseguir se enganar tão fácil assim. Tem que viver com isso depois.

É como se a pessoa “parada” finalmente encontrasse um caminho e aceitasse qualquer ideia oriunda dele. É o ir sem o voltar. Perceber que o óbvio é bem menos óbvio que se imagina é um momento complexo na vida de uma pessoa. Sentir o poder de tomar o controle do que pensa sem uma boa percepção de relatividade e capacidade mínima de empatia com outros seres humanos desencadeou todos os grandes massacres de nossa história.

De inquisidores a comunistas, todos somos alvos fáceis para ilusão de distanciamento e grandeza sem mérito; ou mesmo do tão mais comum desânimo causado pela sensação de isolamento. Se vocês querem saber de onde vem o otimismo que tendo a imprimir nas minhas opiniões sobre o futuro, é muito por ter começado o caminho de volta. De começar a emprestar aos outros um pouco da arrogância “saudável” que só permitia a mim mesmo ou às pessoas mais queridas. Se essa ovelha aqui pode… Ficar parado te torna mais um, sair do grupo te isola… defendo simplesmente o melhor dos dois mundos.

Pensar não enlouquece, parar enlouquece.

Para dizer que entre indas e vindas achou o texto meio parado, para dizer que não quer saber de conselho de ovelha, ou mesmo para dizer que tudo isso é só papo (e é!): somir@desfavor.com

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Comments (15)

  • O que eu tomei por inciativa após esta ‘revelação’ surgir pra mim meia década atrás foi simples – niilificar debates não pragmáticos. Ou seja, não deixo de debater, mas deixo tantas portas abertas, que a limitação físico-temporal do debate é exaurida, e não se permite uma conclusão que volte a fechar em novo ciclo de ‘I’m a special snowflake’.

    Nos pragmáticos, cabe a máxima também da limitação físico-temporal: me é indiferente a relatividade moral de um assunto, se ele interfere diretamente no meu ‘continuum’. Neste caso, a opção sempre vai ser de um cerebelo reptiliano, com semiótica aplicada. Meus genes, minha interrelação, meu ‘gens’, e, talvez, se sobra espaço, meu ‘civitas’. E sempre nesta ordem.

  • É, realmente… esse movimento de catarse e redenção vejo que é estritamente necessário ao homem! Só faz a gente crescer! O difícil é a pessoa minimamente tentar se distanciar do objeto e ver as coisas em perspectiva ampla, afinal, pensar dói né?

  • Como sou pago para fazer isso profissionalmente (questionamentos, idas e vindas, relativizações, generalizações e especializações, análise e síntese, testes de hipóteses etc.), acaba virando rotina e a gente não percebe. É claro que há um grande grau de confusão entre ser e atividade, nada mais do que em outras atividades humanas. Seja como for, o texto foi de um frescor exemplar, no bom sentido.

  • Pelos comentários dos frequentadores do desfavor acredito que todos já tivemos esse tipo catarse.
    Keeping the real!
    Parabenizar o Somir pelos textos tá virou rotina, enfim, ótimo texto!

  • Excelente texto!
    Essa inquietude de pensamento e reflexão, de saber ir e voltar, questionar, destruir ou firmar seus conceitos, tem malefícios e benefícios, mas no final o saldo é positivo; você se fortalece, supera as desilusões e o abandono das antigas verdades, conhece novos conceitos e se adapta a sua nova realidade (aprendendo, dessa vez, a não se prender aos seus novos conceitos como verdades absolutas). No fim das contas, é ótimo saber que não estamos sozinhos nessas “viagens”.
    Isso me lembrou essa frase, Emil Cioran:
    “No edifício do pensamento não encontrei nenhuma categoria na qual pudesse pousar a cabeça. Em contrapartida, que belo travesseiro é o Caos!”

  • Caramba, Somir… Lendo seu texto, me senti no Café Filosófico. Falando sério… É fácil se achar superior aos outros quando a gente tem para si a certeza de que sabe que sabe, mas é absurdamente difícil – pelo menos para alguns – perceber que, dependendo da situação e/ou do ponto de vista, não somos tão melhores assim. E esse “choque de realidade” pode ser causado por alguma grande porrada inesperada que a pessoa levou da vida ou por um “insight” como o que o Zaq teve. Daí a pessoa que percebeu que não é tão fodona assim pode ou se refugiar na própria arrogância que já tinha, ou se sentir um merda talvez pra sempre, ou procurar fazer uma auto-crítica e tentar se aprimorar. Gostaria também de repetir o que a Marina disse no comentário dela: “Todos nós nos achamos únicos, importantes e especiais. Mas, se todos os 7 bilhões de humanos são especiais, quem é o ser humano comum????”

  • Zaq (o cahorro!)

    BÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉ….

    Algum tempo atrás eu tive um insight monstro, bem desse tipo mesmo. Foi bem difícil segurar o golpe e na verdade estou ainda me recuperando.
    A soberba das convicções muito enraizadas, a arrogância de que não há muito mais a ser aprendido, essas e outras rotas que tomamos são na verdade grandes atoleiros que seguram a pessoa inteira, em seus sentimentos, em sua profissão, em seu rol de amigos, na sua família…
    O engraçado é que se trata de uma grande e purulenta ferida aberta, mas enquanto não é enxergada não dói e nem cheira mal. Mas, basta vê-la por um relance que o quadro todo se apresenta, é jogado na sua cara. Em seguida começa a latejar, a feder… E em segundos surge a dor. E que dor! Lancinante…

    Muito obrigado pelo texto Somir.

  • Adorei o texto, Somir!

    Todos nós nos achamos únicos, importantes e especiais. Mas, se todos os 7 bilhões de humanos são especiais, quem é o ser humano comum????

  • Nunca tinha visto essa tirinha antes mas, juro que não é arrogância, eu já me peguei pensando sobre isso. E um dos pontos que me despertou pra isso foram as lamentações acerca do governo PT e tudo o mais que se refere ao que se transformou esse pais. Todo mundo está com o mesmo roteiro, as mesmas observações, as mesmas criticas… Não os critico de forma alguma, vejo até uma importância nisso, mas todos se acham especiais por dar um mini workshop sobre o tema toda vez que se puxa o assuto. Como se fosse novidade, uma informação nova, inusitada, “cara, eu descobri a pólvora!!”.

    Me incomodo profundamente quando me percebo com certezas demais acerca de algumas ideias. Pq sei que mais lá na frente isso pode voltar e morder minha bunda, principalmente quando tem aquela pontinha do “Eu sou foda!”. Não que isso seja de todo ruim, mas atualmente tenho preferido passear por todos os pontos de vista e dai ver qual mais faz sentido pra mim, e qual é mais funcional.

    Acho que ja falei isso aqui. Há coisas, decisões, escolhas, pensamentos que precisam ser solitárias. Mas sempre fazendo o movimento de união e separação da realidade dos outros.

    Ai entramos na parte brega do meu comentario: sentimento de menos valia, assim como sentimento de ser o maximo, melhor que todos são indicativos de baixa autoestima, que caminha de maos dadas com a soberba.

    • Pois é… e para mim é um ciclo infinito.

      Me acho “diferente”. Começo a conversar com algumas pessoas e passo a me achar uma anta, quase a Magda do Sai de Baixo. Então dou uma estudada, vejo alguns pontos de vista diferentes e logo estou “me achando” de novo.

      Minhas melhores e mais confusas épocas (em termos de “produção mental individual” – acabei de criar esse termo) são as fases que consigo praticar meditação (zazen, nada daquela besteirada – olha eu me achando de novo – de sair fora do corpo ou entrar em “alpha”). Fico com a sensação de estar mergulhada em várias opções / opiniões sem necessariamente estar presa ou atrelada a alguma delas e sem considerar uma pior ou melhor que outra. Mas é muito difícil que eu consiga me manter nesse “equilíbrio” por muito tempo.

      • HAHAHAHA…
        Também acho difícil, pra falar a verdade, pá carái, essa postura de sempre estar se observando, de estar aberto. Maldito piloto automático. Mas também penso que é bom ter uma cota de autovalorização das coisas que se faz, pensa. Uma definição que uma vez li sobre autoestima que mais fez sentido pra mim foi: “gosto do meu jeito de ser”.

        De novo vou declarar toda a minha admiração pelo Somir. Mais um texto pra minha cota dos preferido!

  • É bem dolorido (e inicialmente confuso) aceitar que você é menos único do que considerava. E nesse ponto as pessoas se separam (é um ciclo infinito): algumas vão considerar voltar para seu ponto de conforto na arrogância, outras vão tentar superar suas próprias “deficiências” ou lidar com elas de alguma forma.

    E isso não influencia somente a vida do “atual ex, futuro arrogante”, mas também das ovelhas em volta. Trabalho com um cara que ficou no conforto do “sou diferente”. Ele é brilhante em alguns aspectos e aprendo muito com ele, mas a maior parte das pessoas nem consegue se beneficiar desse conhecimento exatamente pela muralha do “não somos iguais”. Uma pena…

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