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Metahumanidade.

Metahumanidade.

| Somir | | 26 comentários em Metahumanidade.

“Meta” é um prefixo usado para definir quando algo é definido ou explicado por ele mesmo. É, não foi um bom começo… pensemos num exemplo: Metadata, palavra cada vez mais comum no nosso dia-a-dia, nada mais são dados usados para analisar outros dados. Pense nas tags abaixo de nossos textos… elas são metadata. Só existem porque os textos existem. Tire os textos e elas são meras palavras jogadas ao vento. E o texto de hoje só existe porque parece que cada vez mais pessoas escolhem a vida de metadata.

Se você continuou lendo, sabe no que está se metendo. Não adianta reclamar…

A nossa própria existência como espécie é “meta”. Somos o que somos e fazemos o que fazemos para que a própria humanidade seja definida. Apesar de grande parte de nós vivermos sob a ideia de que há um ou mais “elementos externos” julgando o que fazemos, no final das contas ser humano é fazer parte da complexa sociedade humana. O propósito inserido nele mesmo. Socializar, consumir, trabalhar, transgredir… tudo muito mais dependente das nossas interações do que propriamente do nosso instinto de sobrevivência.

E quanto mais a sociedade se refina, mais e mais nos comprometemos com papéis “metahumanos”. Imagine uma catástrofe qualquer que reverta a humanidade a um estado primal de subsistência… pode ser desde um meteoro até mesmo algo mais lúdico como um apocalipse zumbi… se algo assim acontecer, quantos de nós seríamos realmente úteis para esse nem um pouco admirável mundo novo?

Não estou apontando o dedo para ninguém. Eu mesmo seria mais eficiente como alimento do que como profissional. Publicitários, programadores, advogados, artistas, analistas, atendentes… grande parte dos trabalhos que compõem nosso mercado são de pouca ou nenhuma serventia fora de toda essa experiência social que chamamos de mundo moderno. Mas isso não é uma crítica, longe disso. Que bom que cada vez mais podemos nos concentrar em tarefas menos urgentes do que ficarmos vivos tempo suficiente para nos reproduzir e manter a espécie viável!

É realmente lindo de um ponto de vista histórico que um cidadão possa viver de cheirar e provar vinhos, por exemplo. Tenha você a opinião que tiver sobre enólogos. Um luxo conquistado a duras penas por nossos antepassados. Essa “metahumanidade” de fazer sentido pela existência da própria humanidade é sinal inegável de evolução. Mas como sempre, não podemos ignorar as dores do crescimento.

Quanto mais vivemos em função da estrutura social vigente, maiores os riscos de virarmos “tags” como no exemplo do início deste texto. Metadata ao invés de metahumanos. Uma coisa é se beneficiar dessa capacidade incrível de se definir pelos próprios gostos e opiniões e buscar mentes semelhantes, outra bem diferente é se tornar um descritor genérico. Calma, piora… tenho um exemplo:

A “data” pode mudar, a metadata não. Se eu escrevo um texto sobre redes sociais e menciono nele como aproxima as pessoas, posso colocar a tag “proximidade” nele. Faz sentido. O texto existe e a tag existe. Mas se eu mudo de ideia no dia seguinte e digo que na verdade as redes sociais isolam as pessoas, a tag fica órfã. Não descreve mais algo presente ali. O texto continua válido, ele se modifica de acordo com o significado que quer passar; a tag fica presa nessa dualidade entre fazer sentido ou não. Teria que trocá-la por “isolamento”.

E a tag “proximidade” precisaria encontrar outras paragens. Ela não emite uma opinião ou demonstra um fato, apenas aponta para quem o faz. A metadata é a seguidora do perfil… Se não combina mais com ele, vai embora. Inflexível e limitada. Uma pessoa pode muito bem fazer uso delas para se definir, mas que não caia na armadilha de se tornar uma coleção delas. Ao invés de ser uma amálgama de ideias convivendo em conflito, a tranquilidade de apenas seguir uma lista de características imutáveis.

O problema é deixar toda essa metahumanidade te desumanizar. De tão especializadas em se conformar às expectativas de pessoas e instituições, essas metadatas vivas esquecem-se do motivo pelo qual esses descritores foram inventados: para nos deixar mais livres para pensar e tomar decisões. A metadata é uma solução da nossa tecnologia para nos organizar, a visão da máquina sobre a nossa expressão orgânica.

Metadata se presta a revelar tendências e prever atitudes. Categorizar alguém por vinte tags (hashtags nesse mesmo barco) nada mais é do que um palpite educado sobrem quem é a pessoa. A metadata foi criada para analisar o nosso estado de “mudança permanente”, não para nos prender em personalidades padronizadas!

As tags se encaixam nos nossos textos, não o contrário. Mas é tanta especialização nesses tempos de metahumanidade que muita gente parece confusa: tamanho é o leque de possibilidades com o conhecimento humano fluindo por todos os lados que tem gente reagindo na defensiva. Pegando meia dúzia de conceitos padronizados e se prendendo neles. O famoso desespero de estar certo (com o grupo certo, consumindo o certo, enxergando o certo) desemboca neste século com uma profusão de palavras-chave que vai nos transformando em caricaturas de nós mesmos.

Não é à toa que estamos tão raivosos na internet e que cada problema gere pontos de vista diametralmente opostos. São as tags discutindo! Elas são imutáveis. Elas DEIXAM DE EXISTIR se o conteúdo não se adapta. E quando as pessoas se definem com uma série delas, arriscam-se a perder parte do que são a cada confrontamento com a ideia oposta.

Nós deixamos de ser o conteúdo. As pessoas e conceitos sobre os quais falamos também. Viramos os descritores e as tendências criadas para nos explicar. Metahumanidade é contagiosa! Quer dizer, pelo menos para nós. Ao mesmo tempo em que começamos a aceitar o papel de coadjuvantes de nossos próprios significados, um grupo bem menos humano segue no sentido oposto.

Já disse antes que para todos os efeitos vivemos numa singularidade tecnológica para qualquer antepassado de um ou mais séculos atrás. Os carros não estão voando, mas boa parte do nosso cotidiano inclui tecnologias que nem mesmo nós – contemporâneos – compreendemos completamente. Eu perdi o momento de fazer o texto, mas recentemente tivemos o primeiro computador passando (com controvérsias, é claro) no teste de Turing.

Passar no teste de Turing é relativamente simples de entender: basta que um computador engane um ser humano fazendo-se passar por uma pessoa. Mesmo que não tenha acontecido ainda, falta muito pouco para acontecer. Processamento por processamento, logo logo um computador portátil vai ter mais poder que um cérebro humano. E essas máquinas não estão nem um pouco interessadas em se fechar numa série pré-definida de características. É vital para o desenvolvimento da inteligência artificial que os computadores aprendam a se adaptar aos dados recebidos.

E eventualmente, produzir conteúdo com objetivos próprios. Ainda é engraçado ler os textos incoerentes produzidos pelas máquinas, mas cada dia que passa eles soam um pouco menos malucos. Pudera: analisam toda a metadata que produzimos. É cada vez mais simples saber o que queremos consumir e nos dar exatamente isso. O artificial produzindo conteúdo para o orgânico.

E é aí que começa a ficar divertido (ou assustador se você for mais paranóico): se as máquinas estão cada vez mais preocupadas em produzir a “data” e nós cada vez mais resignados a ser metadata… quem vai definir quem? Começo a acreditar cada vez menos num futuro onde sejamos mestres dos computadores e cada vez mais num onde seremos espectadores deles. Como era de se esperar de uma singularidade tecnológica capitaneada por inteligência artificial, mas com uma triste limitação auto-imposta por nossa vontade de fazer sentido nessa aventura da metahumanidade.

O problema da nossa tecnologia – quando consciente – é que ela vai herdar nossos objetivos. Não existe outro parâmetro inicial. Essas gerações de seres humanos metadata vão explicar muito mal para nossas “criaturas” o que realmente desejam. Queremos mesmo ser meros descritores? Números num gráfico de popularidade e satisfação? A capacidade de entrar em contradição e mudar de ideia produz algo de muito mais valor do que metadata. Ela produz evolução. Estamos ensinando para nossos filhos virtuais que só queremos confirmação e segurança. E é justamente isso que vamos continuar recebendo. Ao invés de possibilidades de aprendizado, ofertas de produtos especialmente direcionadas.

Ah, só para reforçar: sem o texto, a tag não faz sentido.

Para dizer que percebeu uma indireta, para dizer que isso é desculpa para não ter opiniões sólidas, ou mesmo para dizer que pelo menos é melhor que ler Ozon (sexta volta!): somir@desfavor.com


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