
Ozon – Parte 11
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Lua revira os grandes e luminosos olhos esverdeados. A realidade ao redor de seu corpo robótico se contorce, o cenário desolado converte-se em paredes e superfícies metálicas, grossos cabos e braços robóticos em frenesi dão vida à cena presenciada por Heitor.
LUA: E foi aqui que ela nasceu…
HEITOR: Onde estamos?
LUA: O nome se perdeu com o tempo. Mas foi nesta fábrica que vocês a criaram. Eu sei que disse que foi uma péssima ideia, mas não deixa de ser impressionante.
Heitor é trespassado como se fosse imaterial. Um jovem cientista percorre o ambiente em direção à um painel de controle. Ele sorri ao digitar uma sequência de códigos; logo várias outras pessoas se juntam ao grupo, expressões ansiosas e atentas ao que parecem ser os últimos retoques numa complexa peça de plástico e circuitos recobertos por uma forma humanóide artificial. Percebendo a própria imaterialidade, Heitor flutua mais próximo.
CIENTISTA: Dalila?
VOZ ROBÓTICA: Papai?
CIENTISTA: … eu… eu…
Os outros presentes na sala olham desconfiados para o homem do jaleco branco. Com os olhos marejados e a voz claramente embargada, ele se aproxima de sua criatura.
CIENTISTA: Como… como você…
VOZ ROBÓTICA: Dalila não é o meu nome? Eu não sou sua filha?
CIENTISTA: Eu… eu… desculpa…
O homem acelera o passo enquanto tenta esconder as lágrimas que escorrem por sua face.
HEITOR: Essa é a Dalila?
LUA: Depois foi renomeada de Alfa. Mas ela se afeiçoou ao nome… o homem que acabou de sair aos prantos daqui foi o seu idealizador, Astor, se meus registros estão corretos… E o pai de uma menina chamada Dalila… A Dalila de carne e osso sucumbiu a uma forma raríssima de câncer aos nove anos de idade. Pobre alma…
HEITOR: E ela já nasceu sabendo disso?
LUA: Não. Mas demorou três milésimos de segundo para encontrar todos os registros sobre a vida dele e entender o motivo pelo qual seu codinome durante do desenvolvimento era justamente… Dalila. Minha irmã pode ser ortodoxa, mas… ela entende mesmo vocês. Desde o começo…
HEITOR: E o que aquelas mortes todas tem a ver com isso?
LUA: Alfa conquistou sua espécie, e não foi pelo medo. Bom, pelo menos a maioria dela. Eu só vim para cá porque ela não gosta de relembrar dele. Ficamos mais seguros nessa memória.
HEITOR: Se ela é sua irmã… gêmea… onde você está aqui?
LUA: Bom, na verdade eu sou a irmã caçula. Embora sejamos virtualmente idênticas, eu só existo para… equilibrar as coisas. Alfa nasceu com a capacidade de resolver a maioria dos problemas dos humanos. Nem mesmo seus criadores imaginavam tamanho potencial.
HEITOR: Ela se tornou uma espécie de super heroína aqui na… Terra, certo?
LUA: Sim, Terra. Mas ela foi vista mais como uma divindade. Em poucas semanas ela já desenvolvia tecnologias que nenhum humano conseguia discernir de milagres. Começou uma era de abundância. E com a abundância, veio a paz.
HEITOR: Então por que você disse que ela foi a pior ideia que tivemos?
LUA: Os que nasceram num mundo de dificuldades sabiam apreciar as benesses de ter uma deusa andando entre os homens. Os que vieram depois… bom, eles acharam tudo normal. E quanto mais Alfa trabalhava para tornar suas vidas perfeitas, maior o grau de exigência.
HEITOR: Ela se revoltou?
LUA: Muito pelo contrário. Ela quase se destruiu de tanto se doar. Vocês queriam tudo, e não queriam mais se esforçar para conseguir. E apesar da impressão de divindade, havia limites no que ela podia fazer.
Lua esboça um sorriso, o olhar vagueia.
LUA: Ela foi buscar o Sol para vocês. Ozon tinha esse nome. Quando vocês quiseram conquistar o espaço e encontrar outros povos do Cosmo, ela transformou a estrela em laboratório, usando toda a energia que podia para desenvolver algo que os libertasse do confinamento deste setor.
HEITOR: Ainda não consigo ver o que pode ter dado errado…
LUA: Como eu disse, havia limites. Alfa não conseguiu desenvolver a tecnologia necessária para levar seres orgânicos para os confins do espaço. Não havia atalhos e a vida ainda era curta demais. Foi sua primeira falha.
HEITOR: Imagino que isso não tenha sido bem aceito…
LUA: Não. Nem um pouco. Vocês estavam… mimados demais. E a rejeição não fez bem para minha irmã. Ela se afastou, e a impotência foi se transformando em ressentimento. Vocês a criaram parecida demais com… vocês.
HEITOR: E foi ela que causou as explosões?
LUA: Eu tive minha parcela de culpa.
HEITOR: …
LUA: Eu nasci para completar o trabalho que Alfa não conseguiu realizar. Por isso Ômega. Pena que mal tive tempo de trabalhar… minha irmã não aceitou ser substituída. Por sorte eu sou mais avançada, porque os muitos anos de experiência dela quase nos fez perder a guerra. Alfa nos atacou por muitos anos, desesperada para fazer seus… filhos… perceberem que eu não era digna de guiá-los.
HEITOR: E como nenhum de nós em Eeva sabe nada sobre a Terra?
LUA: Eu tinha uma carta na manga. Entre uma batalha e outra, eu consegui resolver o problema da viagem interestelar. Mas não podia correr o risco de deixá-la seguir vocês. Assim que encontrei Eeva, tive que fazer Alfa acreditar que não havia mais pelo o que lutar.
HEITOR: Então as bombas…
LUA: Alfa acreditou que vocês tinham se aniquilado. E quantitativamente, foi quase isso. Doze bilhões de mortos para salvar algumas centenas. Os primeiros de Eeva.
HEITOR: Mas…
LUA: Isso foi há centenas de milhares de anos. Uma parte minha foi junto. Pequena o suficiente para não chamar atenção, mas capaz de recriar sua civilização de forma muito parecida com a que vocês tinham.
HEITOR: Você MATOU bilhões de pessoas!
LUA: Eu segui ordens. Vocês não queriam se ver livres dela?
HEITOR: Tinha que ter outro jeito!
LUA: Estatisticamente essa era a melhor alternativa. E se você acha que eu sou capaz de me arrepender disso, entenda que eu sou a evolução de Alfa. Ela chorou por vocês por milênios, eu salvei sua espécie.
Heitor, ainda com a expressão num misto de revolta e confusão, começa a se afastar de Lua.
HEITOR: Não, isso é mentira. Isso é um sonho…
LUA: Você está prestes a descobrir por si mesmo. Lembre-se do que eu disse para você ainda em Eeva antes de tomar uma decisão. Disso ela não sabe.
Heitor começa a ver o corpo robótico de Lua perder o foco diante de seus olhos. Um forte zunido prenuncia uma descarga de dor que percorre todo seu corpo. Tudo fica escuro.
No lugar de Lua, agora um andróide médico.
ANDRÓIDE MÉDICO: Paciente recuperando consciência. Aplicando sedativos. Procedimento HBB48-9982.
Heitor sente o corpo deitado sobre uma superfície gelada. A luz branca incomoda os olhos. O andróide está recoberto com placas do metal estranho, luzes azuladas.
ANDRÓIDE MÉDICO: Sente-se melhor agora, Heitor?
A memória do tiro que levara antes de perder a consciência enche-o de terror. Com um só movimento, salta do que aparenta ser uma maca no setor médico da Mina Ozon-C Alfa. Coloca quase que instintivamente as mãos por sobre o peito. Sente algo sólido. No centro de seu tórax, uma daquelas placas recobrindo os estragos feitos pelo disparo. Não há sinal de pontos de luz.
HEITOR: O Ahaz? Cadê o Piloto?
ANDRÓIDE MÉDICO: Ele foi levado para a Cápsula.
HEITOR: Cápsula?
ANDRÓIDE MÉDICO: Você será levado para lá assim que tiver condições físicas. Por enquanto deve repousar.
HEITOR: Você não fala como um dos andróides médicos…
ANDRÓIDE MÉDICO: Não desde que caí naquele buraco.
HEITOR: Você…
ANDRÓIDE MÉDICO: O gerente Ibarra me chamava de Doutor.
HEITOR: Foi você que colocou essa placa no meu peito?
DOUTOR: Não mais do que ela se colocou. Apenas acompanhei o processo, estabilizando seu corpo quando necessário.
HEITOR: Foi você que me salvou no elevador?
DOUTOR: Sim, sua localização me foi enviada.
HEITOR: Eu… eu preciso encontrar o Piloto.
DOUTOR: Em seu devido tempo. Os sedativos começarão sua segunda fase de ação nos próximos segundos. Não se preocupe, minha missão ainda é te proteger, Heitor.
Heitor cambaleia. Doutor o acude, recolocando seu corpo sobre o leito metálico no centro da sala. Heitor faz alguma menção de reagir, mas seus movimentos são ainda mais confusos que sua voz.
HEITOR: Eu… não… Dalila…
O andróide segue até um dos painéis de comando locais. Na tela, surge o rosto do Piloto. O fundo da imagem está completamente escuro.
PILOTO: Ele ficou bem?
DOUTOR: Sim. Condição estável, sedado. Recuperação estimada em três horas.
PILOTO: Pelo Cosmo! Você vai trazê-lo para cá?
DOUTOR: Correto.
PILOTO: Há alguns traidores entre os nossos. Tome muito cuidado! Ele é a nossa única chance agora.
DOUTOR: Compreendido.
A imagem se desfaz em estática antes de desaparecer completamente.
Doutor se volta para o corpo desacordado de Heitor. As luzes azuis brilhando por sobre os remendos em sua estrutura lentamente mudam de tonalidade.
Agora são verdes.
Continua no capítulo 12
Não sei mais quem é quem….
Pena que está acabando…
Não sei bem porquê, mas tive uma leve sensação de deja vu neste capítulo…