Olho na tela.

A imagem da postagem? Explico: Em 2012, três turistas japoneses levaram o carro alugado para suas férias na Austrália 500 metros oceano adentro, confiantes nas instruções do GPS. O sistema ignorou meros quinze quilômetros de água entre a costa e a ilha para qual desejavam ir. Assim como esse, temos diversos outros casos de pessoas que colocaram a tela na frente dos olhos na hora de tomar uma decisão. Burrice, distração… analfabetismo tecnológico? Sim. Tendência? Também.

Provavelmente todos nós aqui ainda temos memórias de um mundo onde as pessoas andavam com a cabeça erguida. Se gerações anteriores tinham suas retinas hipnotizadas pela televisão, as atuais e vindouras tem sua própria versão. Quem conhece meus textos sabe que eu não sou muito afeito a alardear as benesses do ‘meu tempo’: nostalgia é algo divertido, mas tem pouca fundação racional na comparação entre épocas.

Ser bestificado pela internet parece bem mais divertido e proveitoso que ser bestificado pela televisão. Os mais novos ganham nessa comparação, como não poderia deixar de ser. Agora, do ponto de vista deste bestificado, nada é de graça nessa vida… Comecei o texto com uma anedota sobre pessoas se perdendo por confiar mais numa tela do que nos olhos por um motivo.

O ser humano é capaz de prestar atenção num número limitado de coisas. E como nosso tempo é contado, o cérebro prioriza o divertido e o perigoso, não necessariamente nessa ordem. As regras já vem da fábrica: fique vivo e tente fazer o máximo de coisas possíveis para continuar a espécie. Consumo, aceitação social e sexo não costumam estar no topo da lista de interesse das pessoas à toa.

A questão é que por mais que a tecnologia avance, esses interesses são bem estáveis. Não há grande liberdade para subversões do modelo ‘primal’ de prender a atenção de uma pessoa. E quanto mais pessoas você precisa cativar, maior a chance de cair nesse lugar comum. Reflexão não funciona bem como recompensa…

Pois bem: a imensa maioria das pessoas com condição de ter uma dessas pequenas telas luminosas faz uso delas. E uma considerável parcela desse público ainda passa boa parte de seu tempo concentrado apenas nelas. Imagine só que a Etiqueta do século XXI passa pela nossa relação com celulares NA PRESENÇA de pessoas com as quais queríamos interagir para começo de conversa!

É fácil só bater em quem parece cirurgicamente atrelado ao seu smartphone, mas evidente que as coisas nunca são tão simples quanto achar que os outros são piores do que nós… certo? A telinha é sedutora. O conteúdo que ela exibe mexe com nossos interesses mais ancestrais. Cidadão ainda está tentando conseguir sexo, mas agora com movimentos frenéticos dos dedos sobre uma tela. Ainda valoriza demais o ‘ter’ sobre o ‘ser’, seja no modelo que envelopa sua telinha, seja no que cobiça ou ostenta dentro dela.

E é claro, ainda é extremamente dependente de aprovação externa e interação ‘humana’. Recentemente saiu uma pesquisa sobre os hábitos de consumo dos usuários de smartphones e afins… por mais que as pessoas baixem muitos aplicativos, usam no máximo um ou dois. Os que dão acesso às redes sociais. A telinha não eliminou o contato humano, apenas o modificou. Ele está lá, como sempre esteve.

Apesar de estar constando o óbvio há alguns parágrafos, ainda creio que tenho um ponto de vista suficientemente válido para o texto: a tela compete com a realidade, não com a humanidade. E sim, eu sei que toquei no assunto há pouco tempo. Mas ao invés de ficar pasmado com algo que estava na minha cara há muito tempo, agora eu começo a perceber as possibilidades.

Afinal, estamos numa coluna chamada Publiciotários.

Manipular a realidade percebida pelas pessoas é uma arte ancestral, mas bem mais complexa do que os teóricos da conspiração querem que você acredite. Você não pode só ter uma boa história, você tem que ter alcance. A mentira precisa ser repetida muitas vezes, e ela precisa ser a versão mais divulgada de todas.

Os meios de comunicação tradicionais tornaram-se especialistas nisso. Principalmente os com poder econômico e político suficientes. Boa sorte para quem quisesse disputar esse ‘jogo da realidade’ com gigantes como uma Globo, por exemplo. A versão deles podia ser tosca, mas como tinha alcance… Construir versões duradouras dos fatos custava caro, tanto em recursos quanto em concessões.

Mas a internet aconteceu. O custo de fabricar a realidade percebida pelas pessoas caiu drasticamente. A parte do alcance estava devidamente democratizada, para o bem e para o mal. Temos espaço aqui para divulgar nossas opiniões, mas um boato vagabundo pode matar pessoas inocentes. E junto com a grande rede, a revolução das telinhas.

O que eu quero dizer aqui que toda essa coisa de realidade percebida foi atomizada na cacofonia de vozes que se tornou o mundo digital. A manipulação – que antes precisava ser grandiosa e trabalhosa – agora pode ser apontada para uma tela específica e ainda sim ter resultado. A telinha criou universos paralelos para pessoas que não estão mais olhando para fora dela.

Por incrível que pareça, o cargo de GPS da humanidade ainda está vago. Para o bem… e para o mal. Temos cada vez mais provas que as pessoas vão seguir em direção ao mar se for essa a indicação dos bits e bytes que iluminam seus rostos. E talvez nem percebam a água invadindo seus carros!

De uma certa forma, Huxley provou Orwell errado. O Admirável Mundo Novo de distrações infindáveis é muito mais no alvo que o Grande Irmão que tanto temíamos num passado recente. Talvez estivesse na nossa cara o tempo todo: não dizem que se deve dividir para conquistar? Um plano de concentração da ‘fábrica da realidade’ num único ponto tinha mesmo cara de algo que não resistiria ao tempo. Conglomerados de mídia ruem diante de nossos olhos, governos tentam conter vazamentos em suas operações de espionagem o tempo todo… Pessoas conseguem se reunir para depor governos pelas redes sociais! Claro, elas não sabem o que fazer com o governo depois… Ainda são muitas realidades para conciliar.

Era tão simples… Não precisa mexer na paisagem, é só tomar conta do GPS:

O Grande Irmão morreu. Não posso mais te controlar pelo noticiário: você não se sente mais parte do mundo que ele mostra. Você tem um seu, só seu! Você não vai olhar para cima. O que você quer está aqui embaixo, na telinha.

Oras, adaptemo-nos então! Vou te controlar pela ilusão. Você vai ver só as notícias que confirmam suas visões de mundo… vai continuar perseguindo tudo o que sempre quis confinado num espaço cedido… por nós! Você queria ser controlado, certo? Mas não sem ganhar nada em troca? Entendo! Entendo completamente.

Olha para baixo. O mundo que você queria está aqui. É seu. Aposto que você já está cansado de inimigos, de conspirações, de sentir medo. O único medo que eu quero que você tenha é o de olhar para cima. O nosso GPS vai te levar exatamente para onde você tem que ir. Não se preocupe com isso… estreite suas relações com as outras pessoas enquanto isso. Deixe o mundo delas mais parecido com o seu!

Olhe para suas fotos. Quem está em todas elas? Sim, você! É o seu mundo. Feito do jeito que você quer, com as pessoas que você quer. Um lugar seguro de onde apontar para quem não partilha das suas visões, onde tudo o que você diz ser é a mais pura verdade. Aposto que Einstein nunca imaginou onde sua teoria iria parar.

Eu te prometo que nunca vai faltar algo para prender sua atenção se você continuar olhando para baixo. Eu sei o que você quer… e tenho mil aplicativos diferentes para te dar a ilusão de conseguir. E para que eu continue te fornecendo tudo isso, faz sentido que eu receba algo em troca, certo? Se você fizer as contas, são meros centavos por dia. O que são centavos em troca da sua satisfação?

E instantânea, insisto! Nada além do agora para você. Você merece isso. Chega de trabalhar para construir um mundo que não é seu, chegou a sua vez. Existe sonho maior do que moldar o mundo à sua imagem? Faça isso agora! Garanto que tudo o que está no seu mundo vai chegar numa velocidade incrível. E estamos trabalhando para que fique cada vez mais rápida.

E se você quer sua realidade ainda melhor, não deixe de comprar nossos modelos mais recentes. Mais tela, mais resolução, mais velocidade, mais interatividade… mais você!

Mas faça o que fizer, não olhe para cima. Estamos no caminho certo.

Para dizer que duvida que essa era a ideia original do texto, para reclamar que no seu tempo a manipulação era melhor, ou mesmo para dizer que sentiu firmeza nos parágrafos finais: somir@desfavor.com

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Comments (9)

  • Fico me perguntando como é que nossos pais e avós viviam sem as telinhas atuais.

    No entanto, existe o fator negativo. As pessoas nao conversam mais. Os membros de uma familia se isolam em seus quartos: o pai, diante do notebook, a mae ouvindo musicas no fone de ouvido, e o filho no watsap.

    A interacao social, o calor humano, deu lugar a interacao virtual.

    • SE a família o permitir. Tem pais que estipulam horários e regras. Nessas famílias isso não acontece. Mas também tem muito adulto que sai para jantar e em vez de conversar olhos nos olhos, ficam cutucando smartphone!

  • Um conhecido meu acabou parando dentro duma favela no Hell de Janeiro sendo guiado pelo GPS, daí pra sair foi tenso. Eles tiveram ideia de parar numa boca de fumo e comprar droga, depois perguntaram como fazia pra chegar na tal rua.

    • GPS indica o caminho mais curto, porém não leva em conta o fator segurança. Não recomendo a ninguém andar no Rio se guiando com GPS

      • Uma vez o GPS (moro no Rio) mandou eu pular de um viaduto em outro, tipo James Bond. E outra vez ele mandou fazer uma voltinha de 180 graus na Avenida Brasil. Pra quem não mora no Rio, é tipo a Marginal Pinheiros, mas sem o rio no meio, com guias de 30cm e uma mureta de um metro de altura separando os dois lados em boa parte da extensão.

  • Estamos todos presos a esta teia (web) e não vamos querer abandoná-la tão facilmente e nem mesmo há motivos para que façamos isso. Hoje entregamos nossa vida a essas telas e a muito perdemos o controle que, outrora, nossos pais ou avós tinham (ou talvez não tivessem também) e o que vemos é o que somos, uma massificação de pessoas que não sabem nada e acham que sabem de alguma coisa (pobres inocentes somos nós!). Já estamos olhando telas mais que olhamos nos olhos de outras pessoas e agora até nossos ouvidos estão entregues a esse controle e o que a Siri, Cortana ou Google Now! diz é o que dizemos também e elas nos envolvem com seus risos infantis ou palpites certeiros sobre o que queremos, mas hoje vamos ao cinema que elas nos dizem ser bons, aos restaurantes que elas dizem ter a melhor comida, vamos as cidade ou países que elas dizem serem os mais agradáveis e vamos na hora que elas dizem que tem voo e voltamos quando elas dizem que devemos voltar pois há compromissos em nossas agendas. Por um lado é aterrador, mas e por outro?

  • Eu passei pela transição: mundo sem internet. mundo com internet em que ninguém sabe exatamente a utilidade mas é o futuro e mundo onde internet é quase como eletricidade.

    Nesta transição lembro como alardeavam que a televisão era uma tela ‘passiva’ e as pessoas se prostravam em frente a elas e eram zumbificadas.

    Já a internet era algo completamente diferente. As pessoas interagiriam, escolheriam o que quisessem ver, trocariam informações com outras pessoas pra formar novas ideias. Mentes interessantes do mundo todo interagindo.

    Agora a realidade: o pensamento esta homogêneo. As pessoas só postam mais ou menos sobre os mesmo assuntos e com a mesma linha de pensamento. Todos riem das mesmas piadas, mesmo porque os canais de humor bebem das mesmas poucas fontes. E o humor é a base muitas vezes para pensamentos sociais e politicos. E neste quesito alias, só existe uma possibilidade. Vc precisa ser ‘progressista’, avido por mudanças esquerdofrênicas e simpatizante de qualquer movimento-artistico-social-sem-noção.

    Reclamavam da zumbificação da tv, mas as pessoas seguem ideias por mais imbecis que sejam como uma manada inconsciente. Vide os desafios de qualquer coisa entre outros.

    Antes os governos se preocupavam com a liberdade excessiva e grandiosidade da internet.

    Agora é só pagar 1 duzias de canais e financiar algumas dezenas de desocupados que vc consegue passar qualquer mensagem como verdade e espalhar qualquer boato sem contestação.

    Claro, existem exceções. Mas 90% das telas ligadas estão fazendo isso no Facebook ou WhatsApp. Lembrando que o primeiro esconde conteúdo que não seja o que vc se sente confortável lendo.

    Diante disso, mesmo sendo irracional. Da quase saudade do tempo que o maior inimigo era a Globo.

  • É meio perturbador ler esse texto logo depois de ter passado a noite inteira na frente da tela… fazia muito tempo que eu não fazia isso.

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