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Liberdade de ofensa.

Liberdade de ofensa.

| Somir | | 35 comentários em Liberdade de ofensa.

Não, eu ainda não enjoei do assunto. Logo após a explosão do “Eu sou Charlie”, vimos a ascensão do “Eu não sou Charlie”: gente que não pactua com os assassinatos, mas também não aceita os excessos do semanário francês em suas caricaturas. Dizem que o escárnio ofensivo alimenta a violência, colocando limites na liberdade de expressão. Oras, se é para evitar casos como os recentes na França, não vale a pena se controlar um pouco? Bom, se é para controlar violência, na verdade não.

À primeira vista, parece óbvio que não se deve provocar malucos que acreditam que a morte lhes trará virgens no céu. Não nego que soe racional. Não provoque, não sofra as consequências! Como as pessoas não percebem isso? Oras, elas percebem. Sabemos desde crianças que a violência (física ou emocional) é um resultado possível do confrontamento. Ninguém esquece isso.

Mas pense bem: você sempre evita esse risco? Você segue sua vida engolindo todos os sapos que passam pelo seu caminho? Você não se arrisca a deixar outras pessoas chateadas ou mesmo raivosas com grande frequência? Se não, parabéns por ser tão dedicado ao pacifismo ou lamento por você ser tão bunda-mole. Mas na média, molhamos os pés nas águas turbulentas das disputas humanas inúmeras vezes durante a vida. Às vezes, até submergimos!

Disputas. Pelos mais diferentes motivos, encontramos conflitos de interesses ao lidar com outras pessoas. Os seres humanos brigam entre si desde… bom, desde que dois se encontraram. Harmonia plena é uma utopia. Os conflitos humanos são uma constante, mas o método de resolução deles… evoluiu.

Não precisamos nem voltar muito tempo no passado para encontrar uma sociedade onde a violência resolvia basicamente tudo. Invadiram sua terra? Mate! Ofenderam sua família? Mate! Rezaram para um deus diferente? MATE! Durante milênios nosso principal método de resolver problemas complicados foi baseado no derramamento de sangue.

E nem é que esse povo do passado era tão ruim assim: a vida humana era mais frágil em geral. Havia imensa escassez de recursos, pouco tempo livre e qualquer machucado podia ser fatal. Num sistema desses, morrer era uma consequência muito mais natural de entrar em conflito com outra pessoa. Justiceiros e linchadores o faziam sem muita supervisão.

Pudera, não havia muito para onde ou quem correr: se você não tomasse a justiça em suas mãos, ela dificilmente te encontraria. A violência era uma consequência natural do meio. Sem as facilidades do mundo moderno, era realmente difícil oferecer a outra face. Mas todo esse clima sanguinolento tirava as coisas de proporção.

Matar era uma resposta válida em legítima defesa ou até mesmo para um xingamento qualquer. Quando a coletividade entende que a violência física é uma resposta aceitável para uma ofensa, temos o brutal mundo de outrora. Mas, como eu disse antes, evoluímos. Não que a vontade de confrontar outras pessoas tenha diminuído, longe disso, mas a forma como esse confronto acontece melhorou consideravelmente.

E inevitável que alguns de nós tenhamos opiniões mais fortes sobre assuntos muito passionais para outras pessoas. O confronto sempre vai estar entre nós… mas a forma de resolvê-los… essa acaba se conformando ao mundo no qual vivemos. Não é mais aceitável usar violência física, tirando alguns casos muito especiais. O Estado tomou o monopólio dela, e nascemos assinando esse contrato.

Mas ainda ardemos com o fogo da controvérsia! Ainda queremos enfrentar nossos colegas de espécie e esfregar na cara deles como eles estão errados! Queremos nossos direitos, nossas vantagens, nosso respeito. Queremos construir o mundo à nossa imagem. Então, como extravasar essa coisa tão humana?

Se você não pode mais ter a violência, que seja a ofensa! A ofensa é vítima de uma campanha negativa que passa longe de merecer. Foi a ofensa que nos salvou do mundo bárbaro onde vivíamos. Ela é a válvula de escape do cidadão civilizado. Não existe harmonia entre nós, precisamos externar isso. Quando fizemos a transição da espada para a caneta, pudemos construir um mundo muito melhor e mais seguro de se viver. Claro que a ofensa não é uma invenção moderna, mas a forma como a aceitamos na nossa sociedade é.

A ofensa não é a predecessora da violência, é sua alternativa mais viável. Da violência não se tem volta, como pudemos ver no caso do Charlie Hebdo. Mas da ofensa? Da ofensa se cura. A ofensa vira piada, causo, barulho branco. Um corpo forte não te protege da violência, uma mente forte te protege da ofensa.

A liberdade de expressão é o meio pelo qual transformamos violência em ofensa, e quiçá um dia ofensa em diálogo. Aceitar a violência de volta nesse caminho é retroceder, é ignorar tudo o que conquistamos até aqui. Há sim um processo em desenvolvimento, e ele é parte do que é o ser humano. Abrir mão de partes da liberdade de expressão para não provocar os que ainda não evoluíram o suficiente para aceitar a ofensa é não dar espaço para que façamos essa substituição. Como deixaremos a espada obsoleta se a caneta não puder escrever?

Os cartunistas brutalmente assassinados não estavam pedindo pela violência, eles estavam lutando contra ela. Estavam transformando seu repúdio pela violência em comunicação, e mesmo que ofendessem por vezes, ainda sim estavam honrando um acordo maior que todos nossos medos e inseguranças. Podiam estar matando ou roubando, mas estavam ofendendo.

Liberdade de expressão é sim liberdade de ofensa. Precisamos da ofensa para combater a violência, precisamos dessa válvula de escape aberta para que o ódio não acumule em atentados covardes. Os terroristas são justamente aqueles que não tem voz. Eles vivem num mundo (ou num estado de espírito) análogo àquele mundo selvagem onde só a violência resolvia.

Quem disse que não existe o direito de se horrorizar com os absurdos cometidos em nome da fé muçulmana e combatê-los com unhas e dentes? Muita gente nesse mundo não suporta o que está acontecendo com a radicalização religiosa e se mexe para não deixar isso acontecer livremente. Somos humanos, entramos em conflito. Ao invés de resolver isso com violência, que resolvamos com ofensa.

Qualquer concessão a eles ou mesmo aos ofendidos profissionais que pululam pelo nosso mundo cada vez mais politicamente correto é uma concessão ao silêncio violento de um mundo sem ofensa. Calar a ofensa é calar a solução.

E se não concordar comigo, vá à merda, seu desperdício de oxigênio!

Para dizer que isso é tão semana passada, para dizer que agora vai ofender sabendo que está fazendo bem para o mundo, ou mesmo para me mandar para a puta que pariu: somir@desfavor.com

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