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Agentes provocadores.

Agentes provocadores.

| Somir | | 24 comentários em Agentes provocadores.

Eu nunca fui muito de ser fã de ninguém. Sabe aquela admiração pura que a maioria das pessoas expressa por pelo menos algum outro ser humano? Até tenho curiosidade de saber como é. Mas, algumas vezes bate na trave: eu fiquei realmente chateado quando o Christopher Hitchens morreu, o inglês frequentemente bêbado e extremamente arrogante que sabia como poucos enfiar o dedo em feridas com seus argumentos abrasivos e rapidez de pensamento. Polêmico, muito inteligente e muito… chato. Faz falta para o mundo quem escreve um livro descrevendo porque a Madre Teresa foi uma charlatã desumana, não?

Mesmo assim, não era aquela admiração pura que eu imagino que outras pessoas sintam. Não tinha nem curiosidade de conhecer a pessoa, não sei nada sobre sua vida pessoal e tenho certeza que nunca vou me preocupar em descobrir. Mas nada temam, não estou usando vocês para fazer terapia sobre minhas dificuldades de interesse pela humanidade em geral, na verdade meu interesse hoje é falar sobre o que eu realmente admiro aqui: a figura do agente provocador. Sempre quis saber o que me fascinava nessa história de trollagem, e acredito que finalmente entendi.

A expressão “agente provocador” vem de longe, e tecnicamente significa alguém infiltrado num grupo com o objetivo consciente de sabotá-lo. Mas não como um espião comum, plantando bombas e espalhando mentiras, o agente provocador é quem começa a dar “ideia errada” para as pessoas ao seu redor, convencendo-as a tomar péssimas decisões para a causa que defendem. É mais sutil que sabotagem, é manipulação; sugerir algo para conseguir o efeito contrário. É fazer o adversário acreditar que vai se defender melhor contra o Barcelona se deixar só um zagueiro e o goleiro do meio para trás usando o argumento que a melhor defesa é o ataque.

Mas, quando pensamos no conceito de forma mais ampla, dá pra trabalhar com uma definição menos engessada: o agente provocador social é quem incomoda as pessoas nas suas visões de mundo, colocando mais lenha numa fogueira cujas labaredas querem ver cada vez maiores. Hitchens, meu exemplo inicial, era mestre nisso: ao invés de tratar discussões como trocas de ideias, atropelava qualquer um menos articulado e/ou esperto sempre que possível, gerando muito mais raiva do que reflexão em seus adversários. Falácias, deboches, discurso de autoridade… se desestabilizasse o outro, ele usava sem dó nem pena.

E eu confesso que às vezes imaginava isso como um desperdício de potencial. Por que uma pessoa tão inteligente e focada vai passar tanto tempo queimando pontes se poderia tentar explicar para as pessoas o que acontece nesse mundo? Só para ficar no campo de ingleses que escreveram livros famosos apontando como religião é ridícula, Richard Dawkins parece muito mais preocupado em ser acessível e educativo. Pois bem, esse não é o papel do agente provocador, e alguém precisa cuidar dessa parte de ficar irritando e incomodando as pessoas.

Ainda bem que pessoas inteligentes assumem esse papel de tempos em tempos, aliás, ainda bem que pessoas em geral entrem na briga contra nossas certezas. Claro, o processo é muito mais divertido quando esse agente tem mais recursos. Recentemente eu ando gostando muito de ver Milo Yiannopoulos fazendo esse papel, cada vez com mais visibilidade. Para quem não sabe, e quase certeza que a maioria não sabe, Milo é um jornalista inglês (ô país pra fazer esse tipo de gente), católico e abertamente homossexual, que adora provocar feministas e a turma do politicamente correto com seu discurso conservador. Ele ajudou a criar um fundo de estudo para homens brancos lutarem em igualdade com mulheres, gays e minorias em geral. Você pode achar absurdo, mas é o tipo de coisa que mexe com a cabeça de todo mundo. Gera discussão e se tiver alguma máscara para cair nesse caminho, ela cai.

Não é um Hitchens, com certeza, mas é muito divertido que ainda tenhamos gente assim aparecendo no mundo. Tem algo muito interessante em gente que fica provocando e desestabilizando nossas certezas, mesmo que discordemos de quase tudo o que a pessoa fala (concordava muito com o Hitchens, concordo pouco com Milo, mas é o conceito que fascina), esse é o tipo de bagunça que ajuda a humanidade a não ficar muito confiante nos seus caminhos. Agentes provocadores envenenam a causa de seus adversários ao mesmo tempo que envenenam as próprias, é a definição do homem que só ver esse mundo queimar.

E agora eu começo a entender meu fascínio com a trollagem, talvez da forma mais clara até hoje. Gosto de ver a bagunça resultante e o que as pessoas vão fazer para lidar com isso. Tem algo muito interessante aí, a explicitação da carga emocional presente em todo argumento racional. E quando o emocional explode, todo o resto é coadjuvante. Há uma catarse nesse processo, algo que desmonta e precisa ser remontado com novas peças. E talvez aí resida uma das maiores forças de mudança possíveis para o ser humano.

O agente provocador tem que ser capaz de injetar sua visão de mundo dentro de uma bomba de irritação ou incômodo na esperança que seus alvos tenham reações emocionais poderosas e se quebrem no processo. É uma forma de tornar o pensamento realmente infeccioso, aproveitando brechas recém-criadas para invadir um novo hospedeiro. E não é só com argumentação arrogante que isso é possível, o humor é um veículo fenomenal para isso. Claro que a principal obrigação do humor é fazer rir, mas alguns de seus expoentes são excelentes para fazer esse papel de incomodar ou confundir ao ponto de agirem como provocadores.

Talvez até por isso eu não me anime muito com os brasileiros, um Bill Hicks imitando o demônio por meia hora ou um Andy Kauffman lutando com mulheres para se provar poderoso são capazes de atingir uma área do cérebro que mesmo as sacadas mais brilhantes da maioria não conseguem. Percebam que nem é questão de qualidade, é sobre um caminho diferente que infelizmente não faz parte da nossa cultura. Acham por aqui que abrir os horizontes é enfiar o dedo um no rabo do outro. As coisas ficam muito separadas. Ou é inacessível masturbatório ou é óbvio concreto, sem meio termo. Falta cultura de provocação no Brasil.

A provocação se vale muito de subverter expectativas, seja o argumentador brilhante jogando sujo e sendo até meio infantil às vezes, seja o humorista estragando suas piadas para se meter onde não é chamado. A confusão e a reação emocional são aliados poderosos na hora de passar uma ideia para a frente. Tendemos a ser muito diretos, indo de encontro com as defesas de nossos interlocutores.

Quando se age como um sabotador de certezas por dentro da cabeça da pessoa, você consegue resultados únicos. O caminho, me parece cada vez mais, é ao redor das defesas. Ou mesmo fingindo que está atacando por um lado quando está por outro. O curioso que essa foi uma das primeiras lições da publicidade moderna: os comerciais de antigamente eram diretos, falavam sobre produtos e seus benefícios. Os de hoje falam de basicamente tudo, menos o que você vai comprar. Sei que isso não é Publiciotários, mas gente que vive de enfiar ideias na cabeça dos outros tende a estar alguns passos a frente, mesmo que não perceba conscientemente o que está fazendo.

E mesmo que algumas pessoas só queiram ver o circo pegar fogo, o mundo parece não estar perdendo muito com a ação delas. Na verdade, talvez até mais do que admiração pura, sejam os agentes provocadores que incentivem a maior parte de nossas ações. Sally me disse algo muitos anos atrás que eu acho que só estou entendendo agora: sabemos explicar muito melhor por que não gostamos de uma coisa do que explicar o porquê de gostarmos. Existem atalhos na mente humana, e eu duvido que estejam no nosso centro de recompensas.

E ei, você! Se você está achando que eu estou sendo confuso e mudando muito de assunto, pense melhor…

Para dizer que finalmente entendeu tudo, para dizer que está com preguiça de jogar esse joguinho, ou mesmo para dizer que é meu fã: somir@desfavor.com

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