Vendo uma ideia.
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Outro dia desses eu estava revirando algumas caixas com coisas antigas, daquelas que depois de um tempo viram paisagem no fundo de um armário, e você nem se lembra mais de que ela não deveria estar ali. Dentre uma pilha de papéis, uma revista antiga sobre videogames. Nostálgico, ou, com preguiça de continuar a limpeza, resolvi folheá-la. Logo no começo, na sessão de cartas (sim, revistas se comunicavam com seus leitores por cartas!), uma charge enviada por um leitor com uma piada sobre um garoto dizendo que queria fazer balé e apanhando do pai por isso. Minha primeira reação? “Nossa, arriscado publicar isso…”
Bom, arriscado hoje. Com certeza não em 1997, quando a revista foi publicada. Claro que a idade e o pouco de maturidade conquistadas desde minha adolescência tem influência, mas com certeza na época eu jamais pensaria em como um garoto gay se sentiria lendo aquilo. Ou mesmo um que não fosse e tivesse o sonho de dançar… ou imagine só se ambas as condições estivessem presentes? Evidente que minha posição contra a censura, principalmente a do humor, mantém-se intacta… mas, eu pensei num grupo cujo sapato não me aperta automaticamente. Não tive que parar pra refletir sobre o tema, simplesmente pensei que algumas pessoas podiam ficar chateadas com aquilo, achando ficar chateado com isso uma frescura, mas mesmo assim, pensando por reflexo.
Aconteceu alguma coisa. A ideia, não só do politicamente correto, mas a de uma compreensão mínima sobre os problemas de outros grupos humanos, parece finalmente instalada nesta cabeça. Temos que aprender a entender o que vai acender o pavio (curto) das vítimas profissionais para poder escolher nossas batalhas, mas nessa esteira veio junto uma ideia que com certeza faz bem para a convivência humana: pensar no outro considerando que cada um tem problemas muito próprios.
E aí, e agora vem a virada que vocês já estavam esperando, comecei a me perguntar o quão cedo na “vida comercial” da ideia eu a adotei. Porque ideias não deixam de ser produtos que consumimos. E podemos traçar diversos paralelos entre a vida de um produto e de uma ideia. Já estava mais do que na hora da humanidade começar a se preocupar com os direitos de minorias discriminadas. E por mais que ideais de igualdade tenham surgido em diversos períodos da nossa história, estamos vivendo o “boom” deles no nosso mercado de aceitação.
E ideias, principalmente essas grandiosas que nos obrigam a rever o mundo sob uma nova lente, ideias passam por etapas de penetração no mercado bem parecidas com as de bens de consumo, se pensarmos direito. Imagine que a Apple lançou mais um iPhone, dessa vez com uma cor mais brega ainda e 1% a mais de tela. Temos grupos distintos de compradores: aqueles que vão acampar na frente da loja por dias e morrer de orgulho de ser um dos primeiros a consumir o produto, os que querem comprar cedo mas não vão se matar por isso, os que esperam o produto estar maduro o suficiente para experimentar… e até mesmo aqueles que não podem consumir o original e seguem para as imitações…
Calma, o paralelo vai aparecer: pense numa ideia, como a do respeito aos direitos dos homossexuais, da mesma forma. Alguns malucos vão largar tudo o que estão fazendo, passar dias dentro de uma barraca numa rua fria e ficarem monotemáticos quando essa ideia estiver próxima de ficar disponível. Atualmente vemos eles na figura dos ativistas vítimas que infestam as redes sociais… gente que gosta tanto da ideia que quer fazer dela parte indissolúvel de sua personalidade. E, como bons cultistas, espalhar a palavra entre os infiéis, seja lá o meio necessário.
Esses veriam a mesma piadinha que eu li sob uma ótica muito mais agressiva, provavelmente tentariam organizar um boicote contra a revista (assim que descobrissem no Google o que era uma revista) e destruir a vida de todos os envolvidos na publicação do material que os desagradem. Esses fãs malucos da ideia querem a exclusividade de serem os primeiros a ostentar a ideia/produto diante de seus pares, e vão colocar tudo em segundo plano pra conseguir.
É, eu não estava nesse grupo. Eu gosto da ideia de respeitar os direitos humanos independentemente de preferências sexuais, mas não gosto tanto ao ponto de me tornar tóxico àqueles próximos de mim. Talvez a próxima escala na relação de consumo: ainda querer ser um dos primeiros, mas sem desespero. Claro, ser “early adopter” de um produto tem seus custos, é quase sempre mais caro quando acaba de ser lançado. Em ideias, idem. Então, há de se calcular o quão caro é expressar essa ideia entre seus pares… e no meu caso, acredito que seja bem barato. Ninguém vai me causar problemas se eu disser que gays deveriam poder se casar, por exemplo.
Então, não é essa fase do processo não. Eu nem moro num lugar muito avançado nessas questões de liberdades pessoais, mas o preço é aceitável e a ideia encontra muito eco entre aqueles que me são próximos. Alguém vivendo no meio dos talebãs que deve estar pagando o preço cheio por uma ideia do tipo…
Deve ser a próxima etapa ainda: aquela onde o produto já está maduro no mercado, todo mundo conhece, muita gente já tem e começa a valer a pena pagar por ele. Com a ideia, agora sim parece encaixar. Virei consumidor consciente: entendo os benefícios da ideia sem ficar cego para aqueles que parecem fazer mau uso dela. Se eu “comprei esse iPhone”, foi porque a relação custo/benefício valeu a pena. E, se eu vir algum babaca berrando numa versão dourada dele ao meu lado, sei diferenciar. Voltando para o exemplo inicial do texto, é como se eu fosse capaz de entender e até simpatizar com uma pessoa que ficasse chateada de ver aquela charge supostamente homofóbica, mas sem querer calar ou prejudicar quem a fez e/ou publicou. Custo e benefício.
Mas o que começa a me preocupar é a próxima camada de consumidores dessas ideias. O produto foi disputado a tapa por malucos assim que foi lançado, foi comprado mesmo custando muito caro por quem fazia questão de ter um, depois por pessoas que acabaram se rendendo a ele por facilidades no mercado… e aí entram as pessoas que até queriam esse iPhone, mas nem juntando tudo o que tem poderiam comprar um. E a ideia novamente segue esse caminho: primeiro são ativistas raivosos ou vitimistas que se estapeiam pelo status de segui-la, depois vem aqueles acreditam precisar dela e se arriscar ao divulgar… e só aí fica fácil o suficiente conversar sobre ela com outras pessoas de nível intelectual parecido.
Só que a camada seguinte de consumidores potenciais dificilmente vai ter capacidade de consumir o produto ou a ideia se eles não forem produzidos de forma mais palatável, tanto em funções como em custos. O celular chinês baratinho e a ideia extremamente simplificada da mídia de massa prestam-se ao mesmo objetivo: uma falsificação realista do objeto do desejo cujo preço é acessível o suficiente para muitos ao mesmo tempo. Porque, não se enganem, classes sociais costuma se espelhar na mais alta, sempre que possível. O quase rico vai querer ter visões de mundo parecidas com o rico, a classe média quer ser quase rica, os pobres querem pelo menos serem classe média. Compreensível.
Eventualmente a preocupação com direitos humanos vai chegar até quem hoje berra com a TV pedindo pra matar bandido e acusando mulher estuprada de estar com saia curta demais… mesmo que tenhamos que pular uma geração ou mais para isso. E quando a ideia chegar neles, como ela vai chegar? Na versão mais fácil de produzir em massa. Versão vitimização, politicamente correto com regrinhas bem definidas que a maioria das pessoas sequer entende. Funciona com religião, claro que vai funcionar com isso.
Sempre achei que o povo mais humilde seria nosso último bastião de resistência contra o chororô da ofensa permanente, por não estarem nem aí pra essas discussões “filosóficas”; mas será que quando esse produto realmente chegar até o mercado consumidor que eles conseguem alcançar, eles vão pensar numa piada sobre um garoto querendo dançar balé para o desgosto do pai como um risco (que pode muito bem ser corrido) ou como uma afronta ao seu recém-adquirido senso de justiça social?
Esse povo alcança. Pode alcançar com décadas e décadas de atraso, mas uma hora ou outra os valores de camadas mais bem educadas da população começam a vazar pirâmide social abaixo. Muitas vezes para serem completamente destroçadas no processo, criando caricaturas monstruosas dos significados iniciais daquela ideia. E ao contrário de produtos propriamente ditos, ideias não trabalham tão bem assim com datas de validade e atualizações constantes. Quando chegarem, vão demorar muito pra sair.
Espero estar errado, mas essa lógica de mercado está passando perto demais da ideia pra ser só uma conjectura momentânea…
Para dizer que gostou da mudança de rumo, pra perguntar porque eu tenho uma revista de videogame de 1997 (daqui a 40 anos ela vai valer o triplo do que eu paguei por ela), ou mesmo pra me mandar parar de viadagem: somir@desfavor.com
No caso das músicas sem letra e melodia aceitáveis que surgiram nas classes menos favorecidas houve um fenômeno inverso ao que você falou.
Hoje, temos em formaturas de Direito e Medicina festas tocando tá tranquilo tá favorável e ainda o É o tchan! TUDUDU PÁA!
Acha que é possível ocorrer o inverso com o senso de justiça politicamente correto?
Haver um deslegitimação de preceitos q aceitem os gays e etcs não me parece tão distante nesse momento de polarização política.
Ainda mais com a boa e velha lei da ação e reação.
Pelo visto, não foi só a revista que saiu do armário…
Boa analogia.
Eu particularmente me preocupo com as cópias piratas do produtos e mesmo o fato de lançarem muitas versões oficiais. São tantos produtos similares que ninguem sabe exatamente qual é o melhor ou o último modelo. E as pessoas ficam brigando entre si pra provar que o produto DELA é sim o melhor eque deve ter mais atenção que os outros.
Mas pior que esse povo tentando mostrar que o produto que comprou é o melhor, é a turma que fica, ao contrário, tentando mostrar o quanto seu produto tem mais defeitos que odo outro e por isso precisa de assistência mais rápida ou subsidio do governo. Sem contar é claro, atenção de todos que são privilegiados por não terem tido o azar de comprar ou ganhar sem pedir, aquele produto.