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Conflito.

Conflito.

| Somir | | 17 comentários em Conflito.

O salário não era lá grandes coisas, o serviço costumava ser repetitivo e maçante, mas João Carlos já havia se acostumado com o local e as pessoas. Não tinha grandes ambições, no final das contas. Praticamente soterrado em uma pilha de processos e requisições, seguia sua fila de atribuições em silêncio, esperando a hora do almoço, quando poderia experimentar um restaurante recém-inaugurado nas imediações. Seria essa a grande novidade do dia até ser interrompido pelo seu supervisor, que trazia consigo uma jovem que nunca tinha visto antes na empresa.

SUPERVISOR: João?
JOÃO CARLOS: Senhor?
SUPERVISOR: Essa é a Priscila, que está começando hoje a trabalhar conosco. Priscila, esse é o João.
PRISCILA: Prazer.
JOÃO CARLOS: Oi…
SUPERVISOR: João, o acidente de ontem gerou algumas complicações, como você deve ter ficado sabendo, estou sem tempo de apresentar para a Priscila suas atribuições… você pode cuidar dela até eu voltar?
JOÃO CARLOS: Em que sentido?
SUPERVISOR: Ensine para ela o que você faz. Apresenta o sistema, diz com quem falar, o básico, sabe? Depois eu completo o treinamento.
JOÃO CARLOS: Ok…

O supervisor sorri, coloca a mão no ombro de Priscila e aponta para uma cadeira vazia ao lado da mesa de João Carlos. Ela acena em concordância e se dirige até lá. O supervisor se despede e volta pelo corredor de onde viera.

PRISCILA: João Carlos, né?
JOÃO CARLOS: Isso. Priscila, você vai trabalhar na resolução de conflitos também?
PRISCILA: Sim… mas… cá entre nós, eu não sei muito bem o que isso quer dizer… não aqui.
JOÃO CARLOS: Quando eu cheguei eu também não sabia, e, olha… acho que ainda não entendo direito até hoje.
PRISCILA: Hahaha!

João Carlos demora um pouco para reagir à risada de Priscila, mas esboça um sorriso. Volta-se para a mesa, procurando entre a pilha de papéis. Ela observa atentamente.

PRISCILA: Tem sempre tanta coisa?
JOÃO CARLOS: Sim. Estou procurando um bem simples pra… ah, aqui. Esse!

Ele entrega o papel na mão de Priscila, que começa a ler:

CONFLITO 908.0J9.421.003.B82/2016

VERIDIANA NASCIMENTO, brasileira, 53 anos de idade, casada, dona de casa, católica, PEDE por uma bolsa de estudos de ensino superior para o filho PAULO ROBERTO CARVALHO em Universidade Federal não especificada, curso de Engenharia. Pedido realizado no dia 14/05/2016 às 17:54. GRAU 2.

RÓBSON DA SILVA, brasileiro, 18 anos de idade, solteiro, desempregado, evangélico, PEDE por uma bolsa de estudos de ensino superior EM BENEFÍCIO PRÓPRIO na Universidade Federal de São Carlos, curso de Engenharia. Pedido realizado no dia 16/05/2016 às 23:55. GRAU 1.

CONFLITO causado por RECURSO ÚNICO.

DECISÃO de MÉRITO SIMPLES necessária até 25/06/2016 às 23:59.

Priscila lê e relê, expressão visivelmente confusa. João Carlos se aproxima, arrastando a cadeira. Ele aponta para o papel.

JOÃO CARLOS: Esse é um dos mais básicos que tem, recurso único e mérito simples. Perfeito pra aprender a ideia geral. Eu ia fazer só no final do dia, porque esses são bem rápidos… você consegue entender o que está acontecendo aqui?
PRISCILA: Essas duas pessoas querem a mesma coisa, mas só uma pode ter?
JOÃO CARLOS: Isso!
PRISCILA: Mas não pode dar bolsa para os dois?
JOÃO CARLOS: Esse não é o meu trabalho. Tem outro setor que faz a análise dos pedidos únicos, e se um ou mais de lá decidem que o pedido tem mérito, tem mais um setor que procura os conflitos e prepara eles pra gente aqui. Se chegou aqui, é porque não dá pra atender os dois ao mesmo tempo, e a gente não tem que rever essa decisão.
PRISCILA: Entendi. Então o seu trabalho é ser tipo um juiz?
JOÃO CARLOS: Eu não gosto dessa responsabilidade. Eu sigo regras. Não coloca isso na sua cabeça não, senão vai ser difícil dormir de noite. Tem regras, a gente não escolhe nada.
PRISCILA: Tudo bem… e… como você decide esse caso?
JOÃO CARLOS: Eu não. As regras… como as regras decidem esse caso.
PRISCILA: Certo! Desculpa…
JOÃO CARLOS: Imagina, só acho importante reforçar. Vamos lá… a última linha tem a informação mais importante… é uma decisão de mérito simples. Isso quer dizer que todos os elementos a serem analisados estão no próprio documento, então basta cruzar os dados.
PRISCILA: Ok.
JOÃO CARLOS: Vamos fazer um exercício pra fixar a informação, me diz como você decidiria isso, sem saber nada sobre as regras.
PRISCILA: Difícil… mas eu acho que eu daria a bolsa pro Róbson. Ele mesmo está pedindo, é porque quer mais. Está na idade certa, está desempregado… parece que ele quer e precisa mais.
JOÃO CARLOS: É uma boa análise, Priscila.
PRISCILA: Obrigada!
JOÃO CARLOS: Mas está errada.
PRISCILA: É que eu não sei ainda como…
JOÃO CARLOS: Não se preocupe, não é uma crítica. Como eu disse, era só um exercício… tem regras que você não conhece ainda. Vamos lá… a primeira informação que você tem que analisar é a seguinte… Veridiana pediu em nome de outra pessoa, Róbson em benefício próprio. O que vale mais, altruísmo ou egoísmo?
PRISCILA: Ah… altruísmo.
JOÃO CARLOS: Isso! Um ponto para Veridiana. Próxima coisa a se atentar… Veridiana não pediu uma universidade específica, Róbson sim. Quem foi mais humilde no pedido?
PRISCILA: Veridiana?
JOÃO CARLOS: Isso! Ela não quis impor sua vontade, apenas pediu. Isso conta pontos. Dois a zero.
PRISCILA: E o que é esse grau no final?
JOÃO CARLOS: Isso a gente só soma no resultado. É quanta fé a pessoa tinha na realização do pedido. Faz parte do processo beneficiar quem acredita mais. Então, ficou quatro a um pra Veridiana. Ela ganha.
PRISCILA: Nossa, totalmente diferente do que eu vi.
JOÃO CARLOS: Dizem que Ele escreve certo por linhas tortas…
PRISCILA: É… é bem diferente do que a gente pensaria normalmente.
JOÃO CARLOS: É por isso que nós trabalhamos nesse escritório e Ele lá no andar de cima.
PRISCILA: E você não se sente nem um pouco culpado por negar a bolsa para o rapaz?
JOÃO CARLOS: Eu não nego nada, eu só conto os pontos.
PRISCILA: Engraçado, um computador podia fazer isso, né?
JOÃO CARLOS: Podia, mas está pra nascer um computador que reze mais do que eu…

Para dizer que não entendeu nada, para pedir para eu parar com esse assunto, ou mesmo para dizer que ficou com pena do Róbson: somir@desfavor.com

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