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Livro de História.

Livro de História.

| Somir | | 6 comentários em Livro de História.

Leila já sentia em vão os esforços de secar o suor de sua testa com o lenço, encharcado por horas de trabalho naquele calor desumano. Seus ajudantes locais já haviam abandonado posto em busca de alívio e água fresca, o que consideraria fazer também não fosse a imensa curiosidade diante da descoberta: uma biblioteca ancestral, enterrada pela areia a muitos quilômetros de quaisquer outros sítios históricos regionais. Anos de pesquisa sobre a cultura antiga local gerando frutos, impossível de resistir.

Nem mesmo os nativos contratados para fazer o serviço pesado de desenterrar a entrada pareciam saber como reagir ao local. Supersticiosos, contavam histórias de maldições sobre virtualmente todos os sítios arqueológicos descobertos pelas redondezas, mas sobre esse nada tinham a acrescentar. Demonstravam receio pelo desconhecido, mas também não sabiam apontar exatamente o que se esperar dali. Não havia sequer uma divindade atribuída àquele lugar, segundo eles.

O sol a pino lá fora, mas apenas um lampião iluminava o local, isolado por um apertado túnel de pedra que levara dias de árduas escavações para ser livrado da areia, provavelmente acumulada por séculos de abandono. A arquitetura da câmara subterrânea lembrava vagamente o estilo esperado pela civilização estudada, mas algo parecia estranho: não havia decoração, pinturas ou artefatos típicos, apenas algumas prateleiras de pedras com pergaminhos praticamente desfeitos, e no centro, uma espécie de altar exibindo um livro, o que por si só já causava estranhamento, mais surpreendente ainda por estar muito mais conservado do que tudo o que estava ao seu redor. A capa, aparentemente de couro, não tinha indicação alguma sobre o conteúdo.

Confiante por anos de experiência no seu trabalho, Leila prepara-se para o ato, contendo a ansiedade com um delicado processo de limpeza ao redor. A poeira suspensa no ar refletindo a luz do lampião gruda em sua pele ensopada, incomodando até os olhos. Com movimentos cuidadosos, ergue o livro do altar, evitando que suas luvas exerçam pressão demais. Mas, o livro não parece tão frágil assim, a capa e as páginas quase que como novas. Ela decide quebrar o protocolo e dar uma espiada no conteúdo ali mesmo, confiante pela ausência de testemunhas.

A primeira página, incrivelmente preservada, já estava preenchida quase que completamente por uma belíssima caligrafia, palavras reconhecíveis. A surpresa a faz esquecer completamente da reverência com a qual tratava o livro até ali. Não só não era a língua falada pelo povo que supostamente colocou o livro ali, como era uma muito mais moderna do que o esperado. Mesmo assim, não registrava exatamente como uma língua conhecida, e sim um apanhado de significados e expressões comuns nas mais de doze línguas, vivas ou mortas, que ela falava. Além de algumas letras e palavras completamente novas para seus olhos. Fez senso do seguinte:

“Nhj???kativ ??? abraçou o fogo quando a luz ainda escrevia charadas. Sussurrou para Tq??? um sono perpétuo, afastando-se de tudo para abrir os céus e ????????? vida. Sementes brotaram sem conhecer seu ?ips e esqueceram da luz (…)”

Parecia um mito de criação. A história continuava, com várias partes indecifráveis, passando a impressão de uma protolíngua com vários pontos em comum com diversas outras do mundo, mas sem decidir-se por nenhuma em particular. O texto também não fazia tanta questão de isolar o homem como ponto focal, gastando algumas páginas para contar sobre criaturas fantásticas e todo tipo de belezas naturais. Leila já havia perdido noção de tempo, avançando para mais de um quarto do livro quando finalmente encontra a primeira menção ao que seria um humano:

“(…) e ao mesmo tempo duas almas ??naqq pela porta da existência, o mestre e o escravo. O mestre não temia o fim, ???????? pelo tempo que quisesse. O escravo corria até onde resistisse, apenas para passar sua ilusão para os próximos athk?? ?????. O mestre estava iluminado, o escravo na escuridão. O escravo sentiu-se completo quando o mestre lhe deu uma casa, e nunca mais quis ser escravo. O escravo construiu. O escravo floresceu da semente da ilusão. (…)”

O que se seguia dali lembrava a caminhada do ser humano pela história, descobrindo fogo, agricultura, pecuária, cidades… isso é, apesar do uso da palavra escravo, fazia imenso sentido que estivessem falando de pessoas em geral. Principalmente quando o livro gasta um grande número de páginas mencionando os deuses criados pelos escravos, a maioria lembrando características de civilizações muito antigas. O estado de conservação do livro, a forma como estava escrito e até mesmo o conhecimento apresentado por ele começam a fazê-la acreditar que aquele material realmente não fazia sentido com a era que esperava desvendar com suas pesquisas. Talvez alguém tivesse descoberto o local muito antes dela, e deixado o livro ali.

Mas, seja como fosse, a leitura era fascinante. Virava as páginas cada vez mais rápido, decifrando novas palavras com cada batida de olho. Começavam menções cada vez mais específicas sobre a história humana, até que um nome mítico e conhecido salta aos seus olhos:

“(…) Os escravos estendiam-se por todos os lados, suas faces diferentes entre si, harmonizando-se com a terra dos mestres. Os mestres tinham o fluxo nas mãos, esperando. Fizeram sua cama onde os escravos não podiam tocá-los, observando com olhos fechados cada passo deles. E de seu lar em Atlântida, fizeram a primeira visita. (…)”

Atlântida. Ou, pelo menos um dos primeiros nomes dados à mítica ilha de localização desconhecida relatada desde a antiguidade. Tal mitologia não pertencia aos costumes do povo local, o que só reforçava a ideia daquele livro ter sido plantado ali por um visitante muito mais recente. De qualquer forma, era uma descoberta incrível, até porque dali pra frente, a história do livro não tinha mais tantos paralelos com a conhecida. Relatos de encontros entre mestres e escravos, inicialmente pacíficos, para se tornarem progressivamente mais agressivos com o passar dos tempos:

“(…) havia aqueles que veneravam os mestres e seguiam seus conselhos sábios, mas alguns escravos tornaram-se gananciosos, querendo o poder do ??m?? para si. Os escravos lutaram, primeiro nas florestas, depois nos desertos. Os mestres, atordoados pela ingratidão, viraram as costas para os escravos, criando suas sementes e enterrando-se fundo na terra. Os mestres fizeram novos escravos, obedientes em ??as???q. Quando a planta cresceu, os novos enfrentaram os velhos. Os primeiros que caíram foram os que fizeram sua morada no delta da vida. Os mestres não tocavam a pedra, mas tocavam suas criações. (…)”

O livro, segundo Leila, falava claramente dos narabicos, objeto de seu estudo pelas últimas décadas. Talvez o livro estivesse referenciando a grande revolta que derrubou o primeiro Taquir… história que já tinha lido e relido milhares de vezes, mas que incomodava por algum motivo que não entendia exatamente. Algo parecia errado. Mas, a curiosidade não tinha mais limites, continuou devorando as páginas, passando da metade do livro em pouco tempo.

Segundo os escritos, os novos escravos, que começaram a se chamar de Império Ozinar, cresceram em poderio militar e influência cultural através dos anos, ajudados por uma tecnologia incrível oferecida pelos mestres. Naquela história, os ozinares alcançam as férteis terras ao norte e travam uma imensa batalha contra os légicos, cujo império agigantava-se sem parar enquanto os narabicos tentavam conter os avanços dos ozinares. Leila agora começa a ficar extremamente desconfiada, relatos tão precisos sobre os acontecimentos daquela era eram bem recentes, graças aos trabalhos de pessoas como ela. O livro estava correto demais, conhecimento extremamente recente.

Leila encosta o livro no altar novamente, o cérebro se coçando para lembrar de algo importante. Apenas uma sensação de algo errado. A palavra “egípcios” vem à sua mente, depois, “romanos”. Leila não sabe direito de onde elas vem, mas parecem essenciais. Ela fecha o livro de vez e se afasta, buscando descanso numa prateleira de pedra vazia. A sensação de não saber apontar nomes de povos para períodos históricos é nova para ela, então, faz um exercício mental para tentar se recuperar.

Pensa no que acontece depois daquele ponto do livro. Séculos de uma terrível guerra contra os ozinares, chamada de Idade das Trevas. Com os povos locais finalmente alcançando o nível tecnológico de um Império Ozinar subitamente enfraquecido pela corrupção de seu poder central. Os povos unidos renomeiam o continente para Europa, acontecem as grandes descobertas, a era moderna… e nada de lembrar dos tais de egípcios e romanos. Leila, frustrada, levanta-se e busca o livro mais uma vez, agora com o objetivo de ler as páginas finais e ver se acha alguma menção ao que estava incomodando sua memória.

Abrindo o livro nas últimas páginas, uma surpresa: estavam em branco. O livro ia exatamente até o ponto onde havia parado de ler. Leila volta para a página com os escritos para confirmar, e quando vira a página para ver a próxima, consegue ver ela sendo preenchida, como se por mágica, letra por letra numa tinta que parece brotar do papel. Assustada, bate o livro e arremessa-o no chão.

Agora ela consegue lembrar de onde vinham os nomes “egípcios” e “romanos”: de um passado que ela acabara de destruir. Leila embebe seu lenço no querosene do lampião, coloca por sobre o livro e arremessa a chama por cima. Sai de lá pelo túnel apertado, e pede para os homens que relaxavam na sombra do jipe que os trouxera para enterrar o lugar de volta, e nunca mais falarem sobre isso.


NÃO ENTENDI: Explicação da história.
O livro mudava a história da humanidade quando lido, fazendo um novo povo assumir o controle do mundo, o que provavelmente era o plano de quem o colocou ali. Até onde a protagonista leu, tinha feito os egípcios se tornarem “narabicos” e os romanos em “legicos”. Quando Leila parou de ler, os ozinares ainda tinham suporte dos “mestres”, o que deixou de acontecer quando fechou o livro, permitindo que o resto da humanidade lutasse contra eles e garantisse que a partir daquele ponto a história da humanidade continuasse mais ou menos igual. Se Leila continuasse lendo, poderia mudar até mesmo seu presente para um mundo onde fosse escrava desse povo.

Para dizer que minhas histórias estão cada vez mais malucas, para agradecer pelo “não entendi”, ou mesmo para dizer que esquece de tudo sempre precisar de mágica: somir@desfavor.com

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