
Problema seu!
| Somir | Somir Surtado | 5 comentários em Problema seu!
Que jogue a primeira pedra quem nunca desdenhou dos problemas e preocupações dos outros. Eu mesmo vivo fazendo isso aqui batendo na turma do politicamente correto, especialmente as feministas dos dias atuais: preocupando-se com roupas de personagens de histórias em quadrinhos enquanto meninas do mundo todo sofrem abusos terríveis. Ou mesmo o clássico de fazer pouco de dramas de pessoas muito ricas e/ou poderosas, com toda a capacidade material para dar conta da situação e ainda reclamando. Acho que todos fazemos isso, mas… será que aquela poética frase de pobre “é fácil falar, difícil é ser eu” não tem um fundo de verdade?
Empatia está muito conectada à percepção de semelhança. Pudera, compreender o sentimento alheio presume que você consiga se colocar no seu lugar. Quanto mais parecida com você é aquela pessoa, maior a probabilidade de você conseguir se ver reagindo à mesma situação. Tanto que normalmente a sociedade moderna só começa a se mexer mesmo quando algum problema atinge pessoas parecidas com aquelas que já estão no poder. Não é à toa que sempre precisa uma pessoa branca de classe média ou alta sofrer com alguma mazela social conhecida para alguém se mexer. Não é bonito, mas é tremendamente óbvio que é o que mais acontece, pelo menos por estas bandas.
Meu ponto aqui é que está me soando cada vez mais perigoso fazer análises sobre o mundo e seus habitantes com base no que eu considero um problema ou não. Acompanhei alguns comentários sobre o debate presidencial americano na quarta passada, essencialmente de pessoas que eu sei que pensam parecido comigo em diversos temas. Quando surgiu uma pergunta sobre aborto, e ambos os candidatos tiveram que sambar para responder sem ofender demais a base de eleitores, muitos começaram a reclamar do tema: completamente irrelevante. Assim como eu, vários acham que é um absurdo não ser liberado e que só atrasa o mundo ficar discutindo sobre essa “bobagem”. Na hora eu gostei de ler essas opiniões, já que espelhavam a minha. Mas, pensando bem… é uma bobagem pra mim.
Não que eu esteja renegando meus argumentos sobre o posicionamento que tenha sobre o tema e fazendo o que vivo criticando de abdicar de uma visão para manter-se neutro, mas a empatia com as pessoas que pensam parecido comigo me fez imaginar se eu conseguiria me colocar no lugar de quem pensa totalmente diferente. É fácil dispensar o interesse alheio num assunto retirando-lhes o direito de achar aquilo importante, mas, eu tive que pensar bastante e me informar para chegar ao ponto de perceber essa polêmica como vazia e desnecessária. Foi necessária uma construção interna para chegar até a opinião. Então, eu tenho toda a base necessária para pensar dessa forma. E pessoas que traçaram caminhos parecidos também podem chegar nessa ideia. Mas, e as que não chegaram?
Quem tem as ferramentas para resolver um problema só consegue olhar para ele com as ferramentas na mão. Quem não tem vê algo completamente diferente. E ter as ferramentas na mão não significa só ter acesso a elas ou condições de encontrar, signfica ter feito todo o processo mental necessário para entender como elas funcionam. Quem só viu prego na vida demora algum tempo até entender como funciona um parafuso… e essa pessoa vai ter que intuir ou ser ensinada para conseguir resolver o problema com o que tem à disposição. E é aí que a empatia pode pregar peças: você se coloca no lugar da pessoa diante do problema que ela enfrenta e joga tudo fora quando não consegue notar que ela não sabe usar as mesmas ferramentas que você.
E o curioso é que temos diversos exemplos dessa desconexão entre o que sabemos e o que o outro sabe na vida cotidiana: quem nunca se viu pirando na frente de uma tela querendo dizer para alguém que não vai te ouvir o que essa pessoa tem que fazer? “Era só fazer isso!”. O ser humano em geral se amarra em ver como outras pessoas lidam com algo com o qual já tem alguma experiência, porque não deixa de ser fascinante o processo mental de descobrir como se fazer algo, seja em você, seja no outro. Programas onde pessoas famosas por um motivo se veem obrigadas a fazer coisas diferentes sempre rendem. Ver o rico lidando com problema de pobre é um clássico! A ideia de que somos especializados em algumas coisas e terríveis em outras faz parte da presunção de um ser humano sobre o outro, mas a ideia entra em colapso quando vemos alguém tendo um problema que achamos trivial ou uma preocupação que não achamos válida.
Aí a noção de diferença desaparece. A reclamação do outro parece estúpida, irrita, cansa, incomoda. Minha teoria é que no fundo o que realmente inferniza nossas mentes nessa hora é a ideia de que se estivéssemos no lugar do outro, resolveríamos tudo. Talvez pior do que achar que a grama do vizinho é mais verde é achar que o que nos falta está oferecido para o outro de bandeja e se fôssemos nós naquela situação, seríamos felizes. Eu mesmo realmente queria que a minha preocupação na vida fosse a representação sexualizada de mulheres nos videogames, por exemplo. Porque com a minha cabeça, em questão de segundos o problema morreria e não teria mais nada para me preocupar. A paz e a realização, vindo fácil fácil.
O problema do outro não consome nossas vidas da mesma forma que o nosso. Não vem com a necessidade de fazer uma escolha (muitas vezes difícil) e lidar com suas consequências, e quando tudo isso acontece com a presunção de que sabemos como solucionar, fica tudo muito mais incômodo. O que até explica essa onda cada vez maior de polarização entre opiniões: na cabeça do petralha, a solução do coxinha é só mudar de posicionamento político, e vice-versa. Apesar de toda a empatia que desenvolvemos na vida, ainda é inconcebível a ideia que uma outra mente pode chegar numa conclusão diametralmente oposta da sua. Claro, devemos nos esforçar para entender que isso acontece, mas a percepção do outro simplesmente não funciona assim.
Num exemplo nerd, a mente do outro é mais ou menos como uma máquina virtual: um computador simulado dentro de outro computador. Por motivos óbvios, quando você simula um sistema dentro de outro, o que é simulado tem que ser mais modesto no uso de recursos, tem um computador rodando para essa simulação poder fingir que é outro. Sempre tem uma perda de potência na simulação. E é justamente assim que percebemos outros seres humanos: uma simulação de uma pessoa dentro de nós. Evidente que essa pessoa vai ser simplificada, só temos um cérebro para abrigar duas pessoas ao mesmo tempo. E no caso humano, nem dá pra dividir o poder de processamento, tem que usar só uma fração do potencial da “máquina” para tentar entender toda a complexidade de uma mente humana.
Numa dessas, precisamos de atalhos: ao invés de tentar montar o outro e seus problemas do zero, temos que usar nossas visões e percepções do mundo para cobrir os buracos. O outro acaba tendo um problema na medida que somos capazes de entender e só podemos achar soluções para ele de acordo com o material que temos para trabalhar. Tanto que o contrário não funciona: quem não conhece sobre física não pode oferecer para um físico a solução para um de seus estudos. Não adianta só empatia para oferecer ajuda. A empatia vem com uma série de instruções específicas para você que são forçadas para cima da percepção do outro. Exemplo insensível: quando eu penso sobre racismo e no sofrimento que ele pode causar para outras pessoas, eu só consigo me colocar no lugar da vítima comigo “pintado de preto”. O que não tem nada a ver com o problema real. Eu com outra cor de pele ainda nasci e fui criado sem sofrer com nenhuma consequência do racismo. Meu cérebro já está treinado para compreender o mundo com esse problema minimizado.
Ninguém parece controlar isso. É preciso muito esforço da máquina dentro do crânio para aumentar a complexidade da simulação do outro. E francamente, poucos de nós temos essa disponibilidade, até porque eu duvido que todo mundo consiga forçar a mente a ir tão mais longe, por falta de capacidade mesmo. E num mundo com tantas informações disponíveis, tanta conexão entre pessoas e disponibilidade de ferramentas e processos para a resolução de problemas, faz sentido que essa limitação mental vá tornando todos os temas em dicotomias. A pessoa vê o problema ou a preocupação do outro com tanta coisa a mais na própria cabeça que quando faz a simulação do outro, basicamente mantém tudo o que tem dela mesma e só muda a aparência da pessoa imaginada.
E aí, eu começo a dar o braço a torcer, talvez estejamos realmente ficando mais afastados uns dos outros no mundo moderno. Talvez o cérebro já esteja entrando no seu limite de processamento e a única forma de manter alguma empatia seja essa simplificação toda. A intolerância bebe muito dessa fonte.
Bom, seja como for, preocupar-se com isso é problema meu.
Para dizer que o problema foi postar tão tarde, para dizer que achou fascinante como eu desenvolvi tudo isso de uma frase de pobre, ou mesmo para dizer que a teoria é boa até chegar na prática: somir@desfavor.com
Empatia não é fácil mesmo. Exige esforço e um pouco de “sair do universo umbigo”.
Adriana Tuffi, se você soubesse o que eu sei sobre essa seita do inferno… Iria escrever 300 Desfavor Convidado!
Penso de modo parecido, em geral quando alguém me pede ajuda depois de ouvir a situação sempre destaco o “eu faria assim, para mim seria assim” pq mesmo tentando ajudar é minha visão do assunto. Se colocar no lugar do outro de modo completo é impossível.
Tentar ver o ponto de vista da outra pessoa se a outra pessoa tiver algo a acrescentar, e não apenas queira “lacrar” e “mitar” na sua bolha da internet…
Já tentei fazer isso algumas vezes.
Tenho uma prima que se tornou testemunha de Jeová… De todas as religiões, essa é uma das que eu menos tolero. Não suporto aquela coisa dos TJ’s aparecerem na porta da minha casa querendo falar do seu Deus. Mas um dia tentei imaginar o que se passou na cabeça dela pra seguir essa religião… Confesso que fracassei na tentativa. Simplesmente não consigo me imaginar não comemorando um aniversário ou Natal. Este ano inclusive vamos reunir nossas famílias pela primeira vez no Natal, e ela não virá por conta da religião.
Também já tentei pensar com a cabeça de um petista…Impossível!
Mas enfim, acho super válido a tentativa de tentar enxergar com o olhar do outro. Não somos máquinas com uma programação fixa, mudar de pensamento ou de opinião não é demérito nenhum, muito pelo contrário, é uma capacidade para poucos.
Simular o cérebro de outra pessoa? como simular aquilo que a pessoa aparenta nem ter? Muitas discussões já nascem mortas por que muita gente gosta de forçar cenários irreais e reclamar de problemas inexistentes(esquerdistas de forma geral passam muito tempo reclamando de problemas que só existem na cabeça deles) então como argumentar ou manter uma discussão produtiva com gente assim?