Skip to main content

Colunas

Arquivos

Identidade.

Identidade.

| Somir | | 2 comentários em Identidade.

Na área comum na nave UniExplorer 7, dois homens conversam:

JOHN: Não sei, não sei… tem algo que não fecha.
MARK: Tempo relativo é uma confusão mesmo, mas eu te garanto que não passamos por um buraco negro.
JOHN: Não é possível, eu posso te jurar que estamos há séculos nessa nave. E eu acho até que já tivemos essa conversa!
MARK: Nós não estaríamos aqui, John. Você estudou sobre isso, não?
JOHN: E se a gente passou perto enquanto estávamos no freezer e um sugou a gente?
MARK: Não é assim que um buraco negro funciona, não é um aspirador de pó… é… literalmente um buraco no espaço. A curvatura tende ao infinito, por isso que nada escapa, mas não fomos sugados!
JOHN: A ciência pode estar errada nessa, não é demérito algum.
MARK: Alegações extraordinárias…
JOHN: Eu não posso provar, eu só sinto. Passou muito tempo.
MARK: Como era pra passar, na velocidade que estamos talvez o mundo nem esteja mais lá se voltarmos. Mas sabíamos disso.
JOHN: Você lembra da última coisa que comeu?
MARK: Carne com batata.
JOHN: E que gosto tinha?
MARK: Gosto de gororoba, como todo o resto das refeições prontas. O que você quer dizer com isso?
JOHN: Você lembra de preparar, mastigar, sentir o gosto?
MARK: Sério que você vai perder a cabeça agora? Nem falta tanto pra chegarmos.
JOHN: Faltam uns quarenta anos!
MARK: Vamos passar 99% disso em suspensão, como passamos os outros cinquenta até aqui. John, faz o básico… estica as pernas, faz os testes… assim a gente dorme de novo.
JOHN: Nós somos congelados, certo?
MARK: Sim… esqueceu como as coisas funcionam?
JOHN: Me escuta… você, você sentiu frio quando entrou na cabine de suspensão da última vez?
MARK: Não. Mas a gente se acostuma com o tempo.
JOHN:
MARK: Ok… ninguém se acostuma com aquela temperatura. Mas é provável que demore um pouco para recobrarmos todos os sentidos quando voltamos. Vai ver eu estava anestesiado. Você sentiu frio?
JOHN: Não. Pra falar a verdade, eu nem sei o que aconteceu nas últimas vezes. Eu só apaguei, rápido.
MARK: Que bom! Eu também. Quer dizer que está tudo funcionando.
JOHN: Até as minhas memórias estão estranhas. Não tem nada estranho nas suas?
MARK: Mais uma vez, deve ser um efeito colateral da suspensão, o cérebro sofrendo com o descongelamento…
JOHN: Você não respondeu.
MARK: Tá, eu estou com memórias estranhas.
JOHN: Dá um exemplo?
MARK: É pessoal.
JOHN: E eu vou contar seu segredo pra quem?
MARK: Seja como for, é coisa minha.
JOHN: Tudo bem, eu falo primeiro. Quando eu tento lembrar do meu primeiro beijo, vem a imagem da minha… da minha irmã.
MARK:
JOHN: Não me olha assim, eu tenho quase certeza que eu não fiz isso.
MARK: Nem é por isso, é que… eu também estou com algumas memórias meio cruzadas. Gente aparecendo onde não devia, datas que não batem.
JOHN: Alguma coisa mexeu com a gente na viagem.
MARK: O mais simples é que os nossos sistemas não sejam tão eficientes em preservar memórias como gostaríamos, mas, de novo, não foi sabendo disso que aceitamos esse projeto experimental? Já fez seu relatório?
JOHN: Fiz, mas… não sei. Teve uma coisa estranha que eu só percebo agora.
MARK: O quê?
JOHN: Eu sempre achei tão chato preencher esses relatórios, mas parecia tão fácil fazendo. Saía rápido, não cansava.
MARK: Eu também fiquei mais eficiente nisso, pensando bem. É bom anotar essa parte também.
JOHN: O que mais além de um buraco negro poderia ter mexido com nossas cabeças assim?
MARK: Nem o buraco negro é capaz de fazer isso.
JOHN: De novo, você lembra de abrir o pacote com a sua comida, esquentar e comer? Lembra do gosto?
MARK: É meio turvo. Mas eu não vou alimentar a sua paranoia.
JOHN: Não devia formar gelo ao redor das nossas cabines de suspensão?
MARK: Presumo que não. Não tem muita água disponível pra isso por aqui.
JOHN: Faz o seguinte, eu vou entrar na cabine e você espera pra ver o que acontece.
MARK: Se vai te calar, faço com prazer.

John deita-se na cabine de suspensão, braços cruzados por sobre o peito. Mark começa o processo. Passam-se meses antes que os tripulantes voltem a conversar.

JOHN: Mark?
MARK: Já deu o tempo?
JOHN: Não, eu encurtei o tempo antes de te pedir pra ligar a minha cabine.
MARK: Nós temos energia pra lá de contada, não era pra você ativar o sistema tão perto da última vez!
JOHN: Como você está se sentindo?
MARK: Cansado.
JOHN: Fala a verdade!
MARK: Tá bom, não estou sentindo nada de diferente.
JOHN: Pensa comigo: a cabine de criogenia foi a última coisa que colocaram na nave, deu todo aquele problema pra desenvolver. E ninguém prometeu que funcionaria.
MARK: Se você ficar desligando, não funciona mesmo.
JOHN: Qualquer erro nisso, nós teríamos morrido.
MARK: Sim, e?
JOHN: E algo me diz que eles falharam nessa parte. Você lembra do Projeto Duplica?
MARK: Vagamente.
JOHN: Meu deu muito trabalho tirar isso da cabeça, mas eu consigo lembrar sim. Eu senti que não aconteceu nada. Do meu ponto de vista, eu nunca fui dobrado.
MARK: Se você quer a verdade, você nunca foi visto, ponto. Eu fiquei furioso quando colocaram o rapaz mais inexperiente para me acompanhar.
JOHN: Se você quisesse explorar o espaço, mandaria uma pessoa ou um robô caso não pudesse confirmar que a pessoa ia sair ilesa.
MARK: O seu ponto?
JOHN: Não tinha tecnolgia para fazer a cabine funcionar. Não tinha. Mas tinha outra no Projeto Duplica. Você lembra?
MARK: Tentamos passar nossas consciências para máquinas e…
JOHN: Você mandaria uma pessoa ou uma máquina pra tão longe?
MARK: Uma máquina.
JOHN: E o que você acha que fizeram conosco?
MARK: Você está dizendo que somos… somos a cópia?
JOHN: Não nessa parte do espaço.

Para dizer que não dá pra ficar confuso nessa, pra dizer que dá sim e você conseguiu, ou mesmo para me chamar de americanizado pelos nomes (convenhamos que ninguém vai falar portuguẽs no espaço): somir@desfavor.com

Comentários (2)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.