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Reconstrução.

Reconstrução.

| Somir | | 2 comentários em Reconstrução.

Ultimamente eu venho notando melhor uma mania do meu processo criativo: a reconstrução. Faço com artes e textos, principalmente. Na prática significa fazer uma vez, até achar interessante, mas ao invés de trabalhar em cima da primeira versão, colocá-la de lado e recomeçar, fazendo tudo de novo tentando otimizar e/ou aperfeiçoar a criação. Não é eficiente em tempo, o que gera algumas dificuldades com prazos. Mas, eu acredito que exista uma lição nisso tudo.

Peraí… a ideia é essa, mas…

Criar é um processo muito pessoal, além das diversas peculiaridades da formação e do momento da vida de cada pessoa, ainda podemos dizer que cada um tem um caminho próprio entre a intenção e a criação. Tem quem goste de planejar tudo antes, tem quem goste de deixar a inspiração fluir… eu mesmo tenho meu método: a reconstrução. Considero um mix das duas abordagens. Primeiro se deixa o inconsciente montar uma versão prévia, fluindo naturalmente; depois entra o planejamento ao descartar o original e refazer tudo do zero.

É basicamente a definição do retrabalho. Fazer pelo menos duas vezes a mesma coisa, abdicando de qualquer planejamento inicial. Como a Sally sempre me diz, eu tenho muita sorte de ser meu próprio chefe… um processo desses com certeza enfureceria qualquer superior. Não digo que dobra o tempo de tudo o que se cria (a primeira parte vem muito mais rápido), mas com certeza aumenta em pelo menos 50% a duração do processo. Não é eficiente. Não é nem indicado: qualquer profissional de criação vai te falar sobre a importância de planejar a criação antes de colocá-la em prática. Buscar referências, fazer rascunhos, estabelecer um plano de execução…

Todos excelentes conselhos. Se eu tiver que sugerir para alguém como produzir materiais como artes e textos, eu com certeza vou sugerir outro método que não o meu. Quantas vezes eu já não sofri aqui mesmo por causa dele? Ou textos que demoraram demais pra sair pela repetição da escrita, ou textos que saíram confusos ou anêmicos porque não pude fazer a segunda etapa, a reconstrução em si. Sim, o processo tem dessas. É um predador natural da pontualidade, e um inimigo cruel da qualidade. Se não há tempo hábil, ele vai te causar problemas.

E convenhamos, nos dias atuais o que mais anda faltando é tempo hábil. Mas, seja por romantismo ou teimosia (e essas palavras cada vez me soam mais como sinônimas…), eu ainda me permito criar dessa forma. Estou escrevendo um texto para explicar o processo, mas como vocês viram, não estou advogando que seja seguido por ninguém esteja lendo. Quero só apresentar essa possibilidade. Talvez nas mãos de pessoas mais capazes de escolher suas batalhas, o processo da reconstrução seja uma ferramenta valiosa sem os pontos negativos já apresentados.

Parece ridículo descrever aqui a ideia de criar algo só para destruir e começar de novo, tanto pela simplicidade do conceito quanto por sua inegável futilidade, mas acredito que ninguém fale sobre um processo híbrido entre inspiração e expiração, não de verdade. Ou é uma versão excessivamente artística de criação expontânea abastecida por uma mente naturalmente brilhante, ou é uma excessivamente redutiva onde só o esforço quase que obssessivo é capaz de desenvolver uma ideia interessante. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra, creio eu.

Porque as duas coisas presumem características muito específicas e difíceis de emular pela maioria das pessoas. Poucos de nós temos uma mente que nos faça parecer psicografar ideias, poucos de nós temos um senso de disciplina e foco poderosos o suficiente para gerar criatividade “na marra”. E aí, vem aquele discurso bizarro de muita gente que diz que não é criativa. Embora muitas pessoas tenham sim dificuldades de expressão criativa for “atrofia”, o processo não é inspiração mágica vinda de um universo paralelo. E muito menos algo que só poucas pessoas no mundo nascem capazes de fazer. Criação é um processo, um caminho.

E como eu honestamente não sei se é a falta de caminhos alternativos ao “dom” ou a disciplina extrema que seguram as pessoas, sugiro o método da reconstrução como uma tentativa válida. A experiência de ver várias pessoas trilhando seus primeiros passos nessa área me fez notar alguns problemas comuns a quem ainda não tem o hábito de produzir conteúdo original: o mais sério é a auto-imposição da obrigação de saber tudo o que precisa estar na arte ou no texto antes de fazê-la. Talvez com muita experiência e uma boa dose de pressão por prazo a pessoa consiga fazer isso, mas na média, ideias são construídas bloco a bloco, dá sim pra não saber onde quer chegar quando começa, só não pode estar perdido quando termina.

E para esse problema, a reconstrução é uma excelente alternativa. Melhor fazer algo menos eficiente do que travar ou simplesmente desistir. Se você quer escrever um texto, por exemplo: ao invés de esperar o universo te dizer o que colocar no papel ou mesmo tentar travar tudo dentro de uma série de regras e metas pré-definidas, que tal simplesmente “falar” tudo do jeito que vier à cabeça? A tendência, ainda mais sem treino, é que venha um desastre literário onde as ideias não parecem ter conexão, difícil de acompanhar…

O problema é que muita gente para aí. Olha para isso e fica presa na hora entre aqueles dois mundos que eu descrevi anteriormente: se pega a linha da “inspiração divina”, acha que não foi capaz ou acha que aquilo está bom só porque veio de dentro; se vai no sentido oposto, convence-se que não tem o que é necessário, ou até pior, acha que só por ter se esforçado está bom. Pouca gente, pelo menos até onde eu entendi dos outros seres humanos, tem essa capacidade de entregar uma boa criação de primeira.

Mas dá sim pra entregar uma criação de primeira. É só entender que mesmo quando colocamos nossas ideias num papel ou numa tela, elas não necessariamente estão traduzidas para uma língua inteligível para outros seres humanos. Eu considero o processo de reconstrução como uma segunda tradução: nossos cérebros são bem parecidos com máquinas. O cérebro trabalha com impulsos elétricos e armazena informações picadas que são unidas só na hora que são chamadas. A primeira etapa de tirar essa bagunça da cabeça e traduzir para uma forma que entendemos é entre seu cérebro e você. Foi só isso que aconteceu. Aqueles impulsos elétricos viraram imagens ou palavras. Mas isso não quer dizer que você terminou o processo.

Como toda boa criação, ela deve se comunicar com outras pessoas. A etapa da reconstrução – de refazer tudo sem tentar remendar o original – funciona muito bem se for uma segunda tradução. Você já tirou da sua cabeça o que queria, pode estar um desastre, mas você sabe o que tentou comunicar em linguagem humana, não mais puramente sináptica. Então, basta refazer tudo pensando em como fazer outros seres humanos entenderem aquilo. A fase da criação “pura” já foi. E essa não tem pressão externa. Você tirou isso da sua cabeça, não é pra mais ninguém além de você. Só quando se reconstrói que a preocupação de alcançar outras pessoas começa a nortear seu esforço.

Claro, experiência e conhecimento te fazem misturar os dois processos e evitar a obrigação de reconstruir tudo, sempre. Mas, se você está começando, se quer apenas quebrar essa primeira barreira entre as ideias que estão dentro da sua cabeça e o resto do universo, sugiro que tente fazer dessa forma. Primeiro explique para você mesmo – em palavras ou em imagens – o que quer fazer. Quando você entender, aí sim pode explicar. Criatividade é um microcosmo do processo educacional. Cada ideia tem que ser aprendida antes de ser ensinada. Você é um professor das próprias ideias a cada vez que tenta criar algo novo.

A ideia de trabalhar com reconstrução é justamente tornar mecânico o processo. Primeira fase é onde você aprende, segunda é onde você ensina. Deixar um texto de lado e começar a escrever basicamente a mesma coisa com outras palavras pode te ajudar muito, se você entender que essa segunda passagem pela ideia é focada em ensinar os outros o que você acaba de aprender sobre o que pensava. Quem não sabe do que está falando dificilmente consegue explicar para outra pessoa, não?

Pessoalmente, eu exagero muitas vezes com esse sistema, ele pode virar uma mania nas mão erradas, mas ele é excelente pra calar a boca de gente que acha que não é criativa. E até mesmo para começar a produzir conteúdo de mais qualidade. Não dizem que a prática leva a perfeição? Até mesmo dentro de um sistema tão reduzido quanto esse de colocar uma ideia no mundo a prática pode ser… praticada. Treinar a diferença gigante entre a forma como uma ideia é gerada e como ela é proposta pode te tornar cada vez mais eficiente nisso.

Talvez não em tempo, mas com certeza no poder da mensagem. Se eu tivesse escrito só o primeiro parágrafo, daquele jeito, será que eu teria me feito claro sobre o tema? Será que eu me fiz claro agora? Se não, talvez reescreva no futuro. Uma hora a gente acerta…

Para dizer que vai escrever um comentário e não postar, para dizer que fica esperando minha próxima tentativa, ou mesmo para dizer que você não é uma pessoa criativa: somir@desfavor.com


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