Indo pra onde?

No Brasil, serviços públicos não costumam funcionar como deveriam. O transporte público não é exceção. Mas, imaginando viver num lugar onde ele funcione, Sally e Somir discordam sobre a importância de ter um carro. Os impopulares pegam carona.

Tema de hoje: é indispensável ter um carro quando se tem transporte público decente?

SOMIR

Sim, enquanto não inventarem o teletransporte, o carro é um dos maiores defensores do direito de ir e vir do ser humano. Mas vamos só colocar um porém aqui no começo: indispensável no sentido de valer a pena se você puder pagar por um. A humanidade sobreviveu sem carros na maior parte da sua história, e tem muita gente que se vira sem um nos dias atuais. Não é indispensável como uma necessidade fisiológica, mas é o tipo da coisa que a partir do momento que você pode usufruir, é até estranho não ter.

Tudo bem que até temos uma parcela considerável da população brasileira vivendo em centros urbanos extremamente concentrados, mas Sally está vindo para essa discussão com a noção de mais ou menos 1% do que é o mundo: de uma grande metrópole com pouca área disponível. Aqui, fora desse microcosmo de “calor humano”, o mundo na verdade é bem mais vasto. Mesmo os melhores sistemas de transporte do mundo moderno ainda não substituem carros quando sua vida presume sair do formigueiro.

Um sistema de transporte decente não é uma utopia do ir e vir: não vai ter pontos e paradas a cada quarteirão quando se sair do centro da cidade. Nem faz muito sentido ser assim. Claro, decente significa que você chega onde ou próximo de onde quer chegar e é bem tratado no processo, mas não te garante muitas liberdades no caminho. Acho muito bonitas as iniciativas para reduzir o número de carros no mundo, mas tirando os excessos em locais específicos onde muita gente se concentra em muito pouco espaço, o mundo é grande o suficiente para não ser factível ter metrô e ciclovia pra tudo.

Ás vezes, mesmo com um transporte público decente, onde você quer chegar está muito longe ou demora mais do que você gostaria. E mais importante: uma coisa é chamar táxi ou Uber no centro de uma grande capital, outra é fazer isso numa área afastada. Decente não é sinônimo de maluquices como um motorista sendo acionado e chegando em cinco minutos se você está numa área com baixa densidade populacional. Decente, mas economicamente viável, não é caridade! Nesta coluna, falamos de médias. Por mais que muita gente viva nas áreas mais desenvolvidas das cidades grandes, o grosso da população mundial não vive ou trabalha só nesses lugares.

O transporte público como é tratado nos dias atuais, uma bela ideia de bicicletas, trens e ônibus vivendo em harmonia em ruas sem carros funciona sim, mas funciona em lugares bem específicos. Aqui em baixo as leis são diferentes (eu acabei de citar Biquini Cavadão? Gezuiz…), se quiser as vantagens da locomoção livre, vai ter que ter um carro.

Vamos pensar em elementos básicos: você quer parar em algum lugar para comprar algo antes de chegar no seu destino. Transporte público ou carro? Você quer chegar ou sair na hora que quiser sem depender de ninguém… transporte público ou carro? Você quer ir para um lugar muito longe do centro da cidade… transporte público ou carro? Sim, você pode responder transporte público em todas essas, mas com limitações, inclusive uma delas sendo a dependência da sorte para os horários baterem, para o táxi chegar logo, para os itinerários encaixarem… carros são indispensáveis pela liberdade que proporcionam, não por serem a única forma de se chegar num lugar.

Tanto que com carro você normalmente pode até mudar de ideia no meio do caminho, o problema é seu, o caminho é seu. Não tem o itinerário do ônibus ou metrô imposto a você, não tem um motorista de táxi ou uber esperando que você vá até onde se propôs, não tem nem o problema de estar todo suado no meio do trajeto da bicicleta. Com o carro, você é o mestre do seu trajeto. Pode dar caronas, ir buscar pessoas, comprar coisas e voltar… tudo sem pedir para ninguém resolver por você.

E é o seu “castelo”. Você não está no veículo de outra pessoa (ou de todas as pessoas), não tem que lidar com um ser humano a mais do que deseja. Sejam eles os outros ocupantes do transporte público ou o motorista do táxi. Seu carro só vai estar fedendo se você deixar ele feder, só vai ter gente falando sobre o poder de Gezuiz se você deixar entrar essa ralé… considerando o tempo que passamos por dia em deslocamento, não é muito melhor ter o seu próprio universo para entrar e sair quando achar melhor? E outra, vai entrar no motel de uber? Carro é privacidade. Privacidade para fazer e colocar quem quiser lá dentro.

Sem contar o controle. Quem faz o caminho é você, pega atalho se quiser, pega um caminho mais longo se quiser ver outra vista, anda na velocidade que achar melhor, até para para não fazer nada se der na sua telha. Você fica livre assim. E péssimo o argumento que trânsito é perigoso, não porque não seja, mas porque a partir do momento que você estiver numa rua, qualquer outro imbecil pode te colocar em risco. Morre gente a rodo dentro de ônibus também!

Sim, carros podem ser mais caros na manutenção, considerando consertos, impostos e combustível, mas é evidente que serviços melhores vão custar mais caro. E, seu carro pode ter a sua cara. Há um fator óbvio de personalização, desde a escolha do modelo até mesmo como ela é mantido. Claro que existe um senso de posse e unidade com seu veículo. É seu. Existe algo agradável no psicológico de dirigir o seu carro e ninguém ter nada a ver com isso. Não acho que seja agradável viver uma vida no banco do carona, sem poder algum sobre seu destino.

E, sobre a natureza… bom, o dia que a bicicleta me levar até o outro lado da cidade de forma rápida e digna, com certeza eu abraço o conceito. Até então, comam fumaça, porque a prioridade tem que ser a liberdade, e só depois esses luxos de áreas chiques de cidades grandes. Ainda não inventaram nada que chegue PERTO do que é o carro para a ideia de exercer livremente seu direito de locomoção no mundo, é indispensável sim.

Para dizer que se ofendeu com meu descaso com a natureza, para dizer que é típico de homem pensar assim (isso foi sexista, tá?), ou mesmo para dizer que o mundo sem carros é lindo até alguém estar com pressa: somir@desfavor.com

SALLY

Ter um carro é indispensável mesmo se sua cidade tiver transporte público decente? Ter carro é totalmente dispensável, em termos práticos, se existir um transporte público decente. Muita gente ainda conservaria o carro por uma questão de status ou para atividades escusas, mas necessário… necessário não seria.

Se existe transporte público decente, isso significa que ele atende a toda a cidade em boas condições de funcionamento, o que inclui pontualidade, horários compatíveis com o deslocamento naquela cidade e boa prestação de serviços. Se eu posso me deslocar por um custo mais baixo, com eficiência e conforto, por qual motivo vou me estressar no trânsito, pagar caro em gasolina, prestação de carro, seguro, IPVA e tantas outras despesas? Não faz o menor sentido, talvez porque EU não faça meu carro de motel. Usando apenas como transporte, não se justifica.

Não pense no transporte público brasileiro, que não é decente. Eu sei, eu sei, custa até imaginar como seria um transporte público decente. Faça uma força: limpo, pontual, eficiente e confortável. Com muitas vezes você pode escapar do trânsito (no dia em que tiver congestionamento no metrô vou ficar muito surpresa), nem que seja por um corredor expresso para transporte público. Você não precisa se estressar dirigindo, não está sujeito a acidentes provocados por idiotas sem responsabilidade e pode beber à vontade cada vez que sair, pois não vai dirigir.

Carros custam caro, não apenas a prestação pela compra do veículo, que compromete seu orçamento por meses, mas também a manutenção: impostos, combustível, revisão, troca de peças, multas, reparos… você sabe quanto custa um pneu? Sério mesmo, se o seu pneu furar no meio da rua (coisa que não é difícil de acontecer nas maravilhosas ruas do Brasil) você sabe o quanto isso vai te custar? Dependendo do carro, pode custar mais de R$ 500,00! Sem contar o risco no qual você se coloca dirigindo: parar em um sinal ou em um cruzamento podem significar um assalto.

Em um transporte público, todas as preocupações e responsabilidades saem de você: a segurança é responsabilidade deles, assim como manutenção, combustível, direção e outros. E como estamos falando de um transporte público decente, estaria tudo ok. Claro, tudo na vida tem um lado negativo: você teria que passar a pagar por motel, o que pode te causar alguma revolta se você acha que uma mulher não vale nem cem reais, mas a vida é assim, feita de escolhas.

Carro já é algo ultrapassado em cidades modernas onde existe transporte público decente, pois além dos motivos pessoais que já citei, existe um bom motivo coletivo para trocar o carro pelo transporte público: sustentabilidade. Menos poluição, menos gasto com combustível, menos trânsito. Não é apenas pela natureza (que eu honestamente não abraço como causa), é também pela qualidade de vida. Um ar mais limpo me faria bem. Menos barulho de trânsito quando eu estou tentando dormir me faria bem. Menos pessoas me ligando de madrugada perguntando o que fazer por estarem sendo conduzidas à delegacia depois de serem flagradas fazendo sexo no carro me faria bem.

Podem existir situações eventuais onde o transporte público não te atenda? Sim, claro. Para elas existe táxi ou Uber. Uber é vida. Uber é coisa linda de Deus. Motorista gato, carro bom, trajeto monitorado em tempo real por GPS, balinha e água. Se você fizer as contas na ponta do lápis verá que é mais barato isso do que pagar todas as despesas de um carro. Táxi ou Uber você chama por aplicativo no celular ou por telefone e vão te buscar até na China. Dá até para tirar uma sonequinha no caminho e dividir o valor da corrida com quem estiver no carro com você. A menos que você tenha a intenção de fazer sexo no Uber para economizar motel, te atenderá perfeitamente.

Um fato curioso: a maioria das pessoas dirige mal, mas não tem consciência disso. Você realmente tem vontade de se colocar em uma situação diária de dividir as vias com pessoas que dirigem mal? Quando se está em um carro, não basta que você dirija bem, se um idiota vier na contramão e bater em você, sua prudência não fará muita diferença. Se um imbecil atravessa correndo na sua frente e você acaba atropelando, pode se preparar para anos de dor de cabeça, processo, perda de dinheiro e talvez até mesmo prisão. Carro é problema, carro é dor de cabeça. Carro é risco constante.

Carro pode ser roubado a qualquer momento. A menos que você seja um privilegiado que tem estacionamento particular onde quer que vá, deixar o carro na rua é sempre um risco. E, dependendo do preço do estacionamento pode significar um custo exorbitante no final do mês ou do ano. Pode googlar, tem notícia de fontes confiáveis que calcula o valor de estacionamento durante um ano e prova que custa o mesmo que um carro zero. Carro pode ser batido e, por mais que você tenha seguro, sempre tem um valor de franquia a pagar. Geralmente os primeiros 5 mil reais são seus, só o resto será pago pela seguradora.

Muita merda pode acontecer, inclusive por sua culpa, em um carro. Não somos perfeitos, falha humana é sempre uma possibilidade. Pessoas pegam no sono, erram o cálculo de distância ou velocidade, se aborrecem desmedidamente pelo estresse do trânsito e brigam. Admitir nossas fraquezas e explorar uma possibilidade mais segura é sinal de inteligência. Essa coisa de querer ter o controle, achando que você é a melhor opção na direção, não passa de arrogância. Com a garantia de que o transporte público é decente, o condutor será bom. Nada te amarra a um carro, o ônus de um carro é custoso demais para que pessoas sensatas se sujeitem a ele sem necessidade.

E, mesmo que você não se aborreça, você pode aborrecer a um maluco qualquer no trânsito, ainda que sem querer. Já vi gente levando tiro por ter fechado outro carro sem nem ter percebido que o fez. Acho sensato escolher não se expor a pessoas randômicas e estressadas (muitas vezes armadas) que podem ter reações exageradas diante de problemas de trânsito.

Então, fica aqui meu conselho: se um dia você morar em um lugar com transporte público decente, economize seu dinheiro e venda seu carro. Use o transporte público para o dia a dia e, para eventualidades, chame um Uber ou um táxi. E não seja pão duro, pague por motel.

Para dizer que homem é menos homem se não tiver carro, para dizer que não consegue responder por nem conseguir imaginar o que é um transporte público decente ou ainda para dizer que tem dinheiro para bancar um carro mas não tem cem reais para o motel: deixe seu comentário.

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Comments (20)

  • Resumindo minha posição: o carro é perfeitamente dispensável, pelas razões que a Sally citou. Sem mais, meritíssima. Somir ainda vive na década de 60.

    Aliás, esse mundo hipotético já existe, Sally. Por duas semanas, estive no Japão, e percebi realmente o que é um sistema de transporte público integrado, decente, bem-conservado e acima de tudo, pontual.

    A minha única preocupação era pegar o trem errado, porque o sistema é super complexo, mas isso é uma excelente característica, pois oferece inúmeras opções de trajeto, tanto em curtas e longas distâncias. Além disso, todas as linhas são devidamente sinalizadas, também com informações em inglês.

    Pena que o que é bom dura pouco… voltar pra essa Bruzundanga dos infernos e perceber que nada disso existe aqui… é de cair o cu da bunda…

  • Com transporte público decente, carro, na grande maioria dos casos, será desnecessário. Passei 10 dias em Berlin a trabalho em 2007 e andei a cidade toda só na base do busão e do metrô, ambos interligados e infernalmente pontuais, sem falar que também ciclistas podem usar esses meios porque tanto busão como os vagões do metrô têm espaço apropriado para eles. Curiosamente, um alemão me disse que carro lá até é barato de comprar, mas caríssimo da manter. Por sua vez, um grande amigo mora em Londres e me afiançou ser igualmente desnecessário carro por lá. Mas isso são coisas de países bem estruturados e organizados.

  • Se por um lado temos Uber e Táxi X, por outro há cidades, como Paris e Estocolmo, em que já há compartilhamento de automóveis. Em uma reportagem que assisti há uns dois anos, os moradores de um condomínio em Estocolmo se cotizaram para comprar e compartilhar uns dez automóveis, que eram utilizados para viagens, eventos sociais e compras maiores no supermercado. Já em Paris, os carros ficavam estacionados na rua e eram compartilhados pelo grande público.

    Dessa forma, acredito que esse compartilhamento poderia atender tanto aglomerações quanto áreas afastadas.

  • Realmente, devo admitir que um transporte público decente, com veículos de qualidade, passando em horários que batem com meus horários de trabalho, pontualidade e motoristas que não fingem estar em filmes de ação, tornariam o carro menos necessário. Mas nem tudo o busão resolve: ainda vejo no carro a liberdade de sair a hora que me for mais conveniente, fazendo a rota que eu achar melhor. Ônibus também pega trânsito quando não tem corredor exclusivo

  • Serio mesmo que ser cliente de Uber sai mais barato que ter carro aqui na Bananolandia? Mesmo se vc usar o Uber 2X ao dia pra ida e volta do trabalho 1h de viagem? Volta e meia se fala em proibir o Uber e dai como faz?
    Em pais de 1 mundo carro seria um luxo desnecessario, aqui na Banania que seria fundamental pra se livrar de ir em pe e espremido com sovacos vencidos, alem de aturar motoristas grossos e mal amados.

    • Querido histetico: a proposição de hoje não é sobre o Brasil e sim pensando em um TRANSPORTE PUBLICO DECENTE.

      Tome uma maracujina e releia o texto.

  • Vendi o carro justamente por ter feito as contas, não vale a pena. Só sinto falta mesmo se faço uma compra maior no supermercado, mas nada que um uber ou táxi não resolvam.

  • Carrocêntrico é brega !

    (…) troca de peças, multas, reparos… você sabe quanto custa um pneu? (…)

    E o tanto (que ainda são) de peças !

    Pronto, desabafei sobre “os desenhos realistas”….

    Uber é vida. Uber é coisa linda de Deus.

    (…) o que pode te causar alguma revolta se você acha que uma mulher não vale nem cem reais (…)

    (Sempre tive satisfatória opção por um pouco menos e sempre foi excelente quando – partiu de mim e – paguei acima disso !)

    DSVS

  • Eu penso que é desnecessário se houver transporte público E segurança pública decentes. Por melhor que seja o transporte público, os trajetos a percorrer a pé são sempre significativos.

      • Pois é (!) : faz tempo que chegou o serviço variante “Uber X”, há possibilidade de usar cupom(ns), raramente “é (situação de) preço dinâmico” (“bandeira” deles)…

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