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Em frente!

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| Somir | | 2 comentários em Em frente!

Tadeu já faz por reflexo: assim que vira na rua do trabalho já contorna três buracos em sequência. Uma guinada à direita, uma à esquerda e de volta à direita. Mais algumas pedaladas e coloca sua bicicleta no lugar de sempre, entre o muro e o carro do chefe. Seguindo um conselho da secretária, ele puxa uma pequena toalha da mochila e seca o suor do rosto antes de entrar na fábrica.

A porta está trancada. Tadeu puxa o celular para confirmar a hora, estava um pouco adiantado. Resolve não incomodar o chefe entrando pela lateral do barracão e abrindo uma trava atrás das grades que só quem trabalhava lá sabia que era acessível. Já dentro, ele nota as luzes apagadas ainda na produção. Só uma lâmpada acesa no mezanino. Ele não precisava de ninguém para saber como iniciar o dia de trabalho ali. Acende as lâmpadas, ativa as máquinas e começa a fazer a manutenção preventiva na sua posição.

Com o protetor de ouvido e capacete equipados, Tadeu procura por problemas na grande máquina que gerenciava ali. Rachaduras, falta de óleo, desencaixes… isso tomava os primeiros quinze minutos do seu turno, todos os dias. Ele inclusive começa a pensar em como aquilo era simples e porque os outros funcionários sempre reclamavam de fazer. Se tinha que fazer todo dia, tinha que fazer todo dia.

Tadeu começa a desconfiar de um dos pistões dando sinais de ferrugem quando sente um cutucão no ombro. Ao virar-se, nota o chefe, o Sr. Almeida, com os braços abertos e expressão de dúvida. O homem gesticula para Tadeu tirar os protetores de ouvido, e é prontamente atendido.

“O que você está fazendo aqui, Tadeu?” – Sr. Almeida pergunta.

Tadeu, com expressão surpresa, responde: “Trabalhando…”

“Você não trabalha mais aqui. Ninguém trabalha mais aqui… eu te disse na sexta passada.”

“Ah, seu Almeida, fica tranquilo, eu sei que a crise tá braba, mas eu não sou de desistir assim não. Pode confiar que eu vou continuar aqui.”

“Tadeu… a empresa faliu. Eu não tenho mais como pagar salários pra ninguém.”

“Então tem que fazer mais peças pra ter dinheiro de novo!”

“Não é fácil assim, né? Eu tenho uma dívida do tamanho do mundo pra pagar antes de poder ter dinheiro de novo. E outra, só você veio… vai fazer tudo sozinho?”

“Eu que ensinei todo o povo a fazer as coisas aqui! Faço melhor que eles!”

“Sozinho, Tadeu?”

“Se precisar, sim. A gente faz um pouco menos, e quando vender essas o senhor traz mais um, eu ensino ele… e vai indo, sabe?”

“Tadeu, eles vão cortar a energia hoje daqui. Eu vim para pegar o que eu podia dos computadores…”

“É, aí fica mais puxado. Tem um primo meu que faz gato lá na comunidade, ele faz direitinho, mas tá sempre ocupado… quando eu voltar hoje, eu falo com ele.”

“Isso é uma fábrica, Tadeu! Eles vão perceber se a gente puxar energia da rede, é muito! Sabe quanto eu pagava de conta por mẽs?”

“Mas que nada, Seu Almeida, fica bonitinho, põe até um relógio falso na frente. Na hora do almoço então eu volto pra casa e procuro ele. Não dá pra ligar porque eu fiquei sem crédito…”

“Você sempre foi o mais teimoso aqui, né?”

Sr. Almeida suspira e dá meia volta. Tadeu recoloca o protetor de ouvido e continua a inspeção na máquina. O pistão realmente estava começando a enferrujar, mas dava para trabalhar mais alguns dias. Ele passa então a manhã toda cuidando das máquinas e produzindo, parte a parte, peças automotivas. Quando chega o meio dia, ele observa o resultado do trabalho. Quarenta peças completas, bem menos que as cem que deveriam ser feitas até essa hora num dia normal de trabalho.

Tadeu sobe a escada em direção ao escritório, bate na porta da sala de Sr. Almeida e avisa que está indo almoçar. Antes mesmo de conseguir descer a escada, é interpelado pelo chefe.

“Tadeu… sério, vai procurar um emprego. Desculpa, mas eu não tenho como te pagar. Eu te deixei trabalhar agora para ver se você entendia o que estava acontecendo, mas… acho que não vai acontecer.” – Sr. Almeida junta as mãos quase que como se pedindo clemência.

“Verdade… não tem jeito não. Precisa de mais gente trabalhando pra entregar a meta. Deixa comigo…”

Tadeu tira o macacão do trabalho, pendura perto da saída e parte porta afora, deixando para trás um chefe muito confuso.

Uma hora depois, Sr. Almeida escuta batidas no portão frontal. Ao abrir, defronta-se com Tadeu e mais um grupo de pessoas. Alguns trabalhadores demitidos na semana anterior, alguns completamente desconhecidos.

“Eu sabia que tinha vagabundo trabalhando aqui, fui buscar o pessoal que trabalha aqui e teve gente que não quis voltar. É até bom, viu, Seu Almeida? Porque aí só fica quem dá conta. Peguei também um pessoal trabalhador da comunidade, gente honesta, viu?”

As pessoas ao redor de Tadeu estão sorrindo, esperançosas.

“Eu… FALI! Eu não tenho dinheiro pra pagar ninguém, não sei o que o Tadeu falou pra vocês, mas não vai ter nem energia pra ligar as máquinas daqui a pouco! Não sei como as luzes ainda estão acesas!” – Sr. Almeida põe as mãos na cabeça, visivelmente frustrado.

“Ah, mas o meu primo já está resolvendo isso. Valdir, tudo certo aí?” – Tadeu olha pra cima. Há um homem mexendo no poste, pendurado com uma corda e aparentemente sem material de proteção algum. O homem acena de volta do topo do poste: “Meia horinha, Tadeu!”

“Então gente, vamos lá que a gente precisa ir treinando os novatos. Seu Almeida, essa é a Cris, ela fez todos os cursos de computador, sabe mexer no Word, no Excel e tudo mais, né Cris?”

Uma jovem encabulada sai de trás de Tadeu e concorda sorrindo.

“A Taís não quis voltar. Eu gostava dela, mas ela disse que já tinha arranjado outro trabalho… mas a Cris aqui vai dar jeito em tudo! Vai lá com o Seu Almeida que ele te diz o seu trabalho.”

Sr. Almeida observa estático enquanto a jovem se aproxima e para ao seu lado.

“Todo mundo pra dentro! Vai ter que fazer cento e sessenta peças no turno da tarde, então todo mundo na correria!” – Tadeu quase que empurra Sr. Almeida para passar, e logo é seguido pelos outros. Os trabalhadores antigos da fábrica passam cumprimentando o ex-chefe-novo.

Tadue não perde um segundo, começa a organizar todo o turno de trabalho, e coloca novatos ao lado dos mais experientes. Sr. Almeida eventualmente sobe até seu escritório, seguido por sua nova secretária. Até o final do dia, são produzidas as duzentas peças da meta, Tadeu organiza tudo e convoca todos para voltarem no dia seguinte. A energia continua funcionando.

O chefe desce as escadas para encontrar Tadeu, o último a sair, como de costume:

“Obrigado, eu não sei o que vai dar disso, mas… obrigado!”

“Não se preocupa não, fica mais fácil com o tempo. Até amanhã!” – Tadeu sorri ao dizer isso, deixando seu interlocutor com uma expressão de dúvida.

Tadeu pega sua bicicleta novamente e pedala de volta ao seu bairro. Chegando em casa, nota as luzes acesas e um cheiro delicioso vindo de dentro.

“Maria, é você?”

“Oi, meu amor! Adivinha o que eu fiz para você hoje?” – Uma jovem sorri de dentro da casa de Tadeu, toda arrumada e maquiada.

“Maria…”

“Carne assada! Com aquele tempero que eu sei que você adora!”

“Maria, a gente… a gente se separou faz uma semana…”

“Ai Tadeu, chega dessa bobagem! Vamos jantar logo que eu estou morrendo de vontade da sobremesa…” – A mulher pisca e morde o lábio.

Tadeu suspira e senta-se à mesa.

Para dizer que não sabe se a história te anima ou não, para dizer que desistir jamais, ou mesmo para dizer que já nem reclama mais dos contos: somir@desfavor.com


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