Estado de cartas.

Mesmo vivendo num país todo bagunçado, ainda sim há uma certa noção de que existe um sistema em funcionamento. Uma ordem mínima das coisas, por assim dizer. O Estado oferece alguns serviços básicos em troca de impostos, e esses serviços básicos garantem que uma sociedade siga padrões raozavelmente previsíveis. Existem leis e pessoas para fazê-las serem cumpridas, existe educação padronizada, existe atendimento médico, socorro para tragédias, coisas que permitam que o cidadão saiba o que vai acontecer no seu futuro em qualquer uma dessas áreas. Mas quão sólida é essa base?

Porque quando deu uma greve da polícia no Espírito Santo recentemente, e a adesão foi total, vimos cenas terríveis pelas cidades. Pessoas simplesmente saíram as ruas para saquear, gente saiu atirando a esmo por aí… mas apesar de estar mencionando isso, o sistema não desmoronou completamente. Uma parte dele estava desligada, mas não é como se todos tivessem se revelado psicopatas no segundo que sentiram o fim das repercussões legais por seus atos.

Mesmo quando vemos pelo mundo situações onde as coisas saem do controle do Estado, não é todo mundo que está nas ruas tentando preencher esse vácuo de poder como bem entendem. Claro, tem gente que não tem capacidade física para estar nas ruas sem proteção estatal, e fica escondida por medo, mas temos uma maioria que enxerga a falta do Estado como algo momentâneo. Ainda não é como se pudéssemos ver como as pessoas reagiriam com a certeza que estão por conta própria de vez.

E aí eu começo a pensar, quando chegaríamos nesse ponto? Em que momento a ideia do Estado com regras que vão além das nossas vontades desaparece de vez? Se você fica sem a polícia por alguns dias, começa a perceber que não existem consequências diretas pelos seu atos, mas… a maioria parece ter ficado escondida em casa esperando pelo retorno das consequências. A noção de abandono existe sim, mas não se mostra definitiva. O Estado ainda está na cabeça da pessoa.

Porque se a polícia está parada, se alguém tomar um tiro ainda pode ser levado para o hospital, não? Não tem quem evite o tiro e quem puna o atirador, mas tem quem evite que a vítima morra sem pelo menos tentar reverter os danos causados pela bala. Mesmo que a natureza humana esteja livre para causar violência, temos um sistema que reduz suas consequências. E se mesmo no meio dessa bagunça alguém ficar doente ou ter um acidente que independe de segurança pública, ainda tem essa proteção. Então, na minha análise aqui, a próxima coisa a sustentar um Estado é o serviço de saúde.

Se a pessoa não tem nada além dos próprios conhecimentos para proteger o bem estar próprio e de pessoas queridas, aí o Estado começa a ficar mais supérfluo. As pessoas podem lidar com uma coisa, mas não com as duas ao mesmo tempo. Estado sem polícia e sem sistema de saúde faz o quê? Bom, talvez ainda possamos contar com a educação. O estado deveria providenciar educação, pelo menos para as crianças.

Se o sistema educacional providenciar condições mínimas para que as pessoas entreguem seus filhos, podemos pelo menos considerar que no futuro o Estado vai continuar funcionando. A ideia é normatizar as visões de mundo das crianças para fazê-las membros produtivos da sociedade. E gera uma socialização balão de ensaio para vida fora da escola. Dentro daquele ambiente, a criança lida com regras e com pessoas que podem aplicá-las contra suas vontades, uma espécie de Estado miniatura. E com a informação acumulada através das aulas, presume-se que a criança adquira ferramentas básicas para dar contribuições para o mundo.

Uma sociedade que não educa suas crianças de acordo com as expectativas do Estado está fazendo uma roleta russa com o futuro. Algumas pessoas vão crescer em boas condições para a manutenção do sistema, outras, por pura aleatoriedade, vão fazer o caminho disruptivo, trabalhando o tempo todo com o eu na frente do nós. Egoísmo puro é o fim do Estado. Deve-se combater isso desde a mais tenra infância, não?

Então, sem polícia, sem saúde pública e sem sistema educacional, o Estado fica sem ter como garantir prevenção e correção da natureza humana. Nem o ideal de um Estado consegue se sustentar assim. Entende-se então que uma pessoa que não acredita que está protegida pelas leis, que não acredita que vá ser salva quando precisar e que não tenha acesso ou confiança na educação dos mais jovens não vai se sentir parte de um Estado.

Não necessariamente por raiva de outras pessoas, mas por falta de qualquer função do sistema em sua vida. Não adianta nem esperar alguma ação externa, ela não virá. E aí o egoísmo não pode ser uma escolha, não? Se a sociedade desaba dessa forma, a única solução prática é tomar tudo nas próprias mãos e desconfiar de seus vizinhos.

E é aqui que eu começo a considerar o seguinte: e quem mora numa favela onde não entra polícia, que vê gente morrendo em filas de hospital sem atendimento, que não percebe nenhuma utilidade no que os filhos aprendem na escola ou que não aprendeu nada ele mesmo? Qual é o Estado dessa pessoa? É o mesmo de quem tem acesso a serviços básicos? Mas, se é o mesmo, porque alguém vai pagar o mesmo preço por viver nele se não tiver de volta nada do que outros tem?

O termo “marginal” vem justamente daí, da pessoa que está às margens da sociedade, que não tem condição de participar dela como os outros. Se o Estado não chega até o cidadão, ele é cidadão de onde? Uma sociedade eficiente não precisa ter todos os serviços básicos funcionando perfeitamente para ter um povo que se sente integrado ao sistema, se um deles for meio fraco, os outros acabam compensando a noção maior de que existe ordem no caos das vontades humanas. Mas, se todos os básicos estão falhando? O Brasil é um exemplo claro de como a falta de qualquer coisa funcionando muito bem torna toda a sociedade num castelo de cartas. Não tem algo que segure a ideia de um Estado quando qualquer coisa falha de vez. No Japão a polícia pode entrar em greve por uma semana… não é bacana, mas tem outras coisas funcionando tão bem que a sociedade nunca desaparece de vez. Aqui no Brasil, bastou a polícia não estar na rua que não tinha mais nada além do medo segurando as pessoas. O Estado sobreviveu só porque havia a ideia de que a repressão voltaria por forças externas. Porque é só isso que segura o Brasil atualmente: medo. Medo de bandido e medo de polícia.

Não tem Estado de verdade se ele não funciona de verdade.

Para dizer que queria ver como ficaria no Rio sem polícia, para dizer que o Brasil está em guerra civil e não percebeu, ou mesmo para dizer que eu estou defendendo bandido: somir@desfavor.com

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Comments (10)

  • Entre 2010 e 2011, a Bélgica ficou sem governo depois que nenhum partido conseguiu eleger o mínimo de 20% das cadeiras no parlamento para nomear um primeiro-ministro. Levaram quase 600 dias para chegar a um acordo.

    Fico imaginando se algo dessa magnitude ocorresse por aqui, até porque volta e meia a possibilidade do parlamentarismo por aqui é cogitada…

    • Talvez funcionasse no Brasil se ninguém avisasse o povo que estava sem governo. Até alguém perceber alguma diferença…

      • Fico imaginando se algo dessa magnitude ocorresse por aqui, até porque volta e meia a possibilidade do parlamentarismo por aqui é cogitada…

        (Quase que) Nem considero imaginar, só ficam cogitando com o pretexto (…irônico…) de “o Estado não cairia junto com o governo, como ocorre no presidencialismo / impeachment” – (aquele/s) maldito/s “bando/s de falaciosos” !

  • Então, se o Estado não funciona e o castelo de cartas desaba, passaria-se a vivenciar um sistema de Anarquismo?

    O Anarquismo não se sustenta por muito tempo – afinal, se não há leis não há produção, e se a produção parar em algum momento a fonte dos saques vai esgotar.

    Assim, poderia ter início um processo de auto regulação originado nessa própria sociedade, constituindo o embrião de um futuro Estado novo?

    Desta forma, poderíamos pensar que o destino de um Estado capenga sempre será a extinção total de sua sociedade como é conhecida, e posterior reinvenção dela mesma (para melhor ou pior)?

    • No final das contas, eu meio que argumento aqui que já estamos no Anarquismo, mas não pra todo mundo ao mesmo tempo. O Estado existe para uma parcela da população, e essa parcela financia os mecanismos de repressão de quem não está nele.

      E talvez a realidade mais cruel disso seja que o Estado não comporta mesmo quem está fora dele. Não com esse grau de incompetência e corrupção.

      Sobre o ciclo de destruição e reinvenção, isso fica claro na história humana. Todo império cai quando fica grande demais… a ordem se perde em dado momento, a anarquia fica grande demais para ser contida e o sistema tem que se reorganizar em partes menores.

      Eu nem tinha pensado nessas implicações do Estado de cartas… talvez ele seja feito para desabar mesmo…

      • No final das contas, eu meio que argumento aqui que já estamos no Anarquismo, mas não pra todo mundo ao mesmo tempo. O Estado existe para uma parcela da população, e essa parcela financia os mecanismos de repressão de quem não está nele.

        E faz muito bem (!) : concordo até “anedoticamente”, (faz algum tempo que) é uma das minhas maiores sensações aqui com (e n)o RJ…

        E talvez a realidade mais cruel disso seja que o Estado não comporta mesmo quem está fora dele. Não com esse grau de incompetência e corrupção.

        “Sem mais” (…).

  • Um nível razoável de ordem, de amparo, de segurança, de previsibilidade que um Estado conceda, — o medo das pessoas de ter que viver sem isso — , dificultam o descalabro total do Estado. E mesmo que isso venha a acontecer, um outro será construído em seu lugar; melhor ou pior, mas será.

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