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Atrasados crônicos.

Atrasados crônicos.

| Somir | | 10 comentários em Atrasados crônicos.

Tem gente que parece estar sempre atrasada. Não importa a hora que marque com você ou com qualquer outra pessoa, não cumpre. Seja algo como um encontro onde a pessoa te deixa esperando, ou mesmo prazos de trabalho, o atrasado crônico dá um jeito de deixar todos ao seu redor esperando por ele. E se você acha que eu vou passar o texto todo batendo neles, não sou tão masoquista assim: vamos entender os atrasados crônicos a partir da experiência de um.

Este texto é inspirado em textos e palestras de Tim Urban, do blog “Wait But Why”, que encontrou uma forma muito didática de explicar seus atrasos para pessoas que não sofrem dos mesmos problemas, e também de fazer pessoas como eu sentirem-se menos terríveis pela bola de neve que é ter esse tipo de comportamento na vida. Tim Urban chama essas pessoas de CLIPs, que numa tradução simplificada é a sigla de Pessoas Insanas Cronicamente Atrasadas. E ênfase no termo “insanas”… porque a ideia não é passar a mão na cabeça de quem faz isso, mas tentar entender melhor o processo e quem sabe, ajudá-las a reduzir o sofrimento delas e de todos ao seu redor.

Mas, antes de começar, vamos nos habituar às personagens que Tim usa em suas ilustrações sobre o tema, porque, sim, ele teve que literalmente desenhar para tornar a coisa clara o suficiente.

A pessoa no leme (vulgo volante de barco) é o Tomador de Decisões Racionais, a parte do seu cérebro que sabe o que está acontecendo ao seu redor e vai te direcionando de acordo com suas necessidades diárias. O animalzinho ao seu lado é o Macaco da Gratificação Instantânea, a definição daquela vontade poderosa de deixar de fazer o que é importante para fazer o que te dá prazer naquele momento. E o ser vermelho gigante é o Monstro do Atraso, a personificação daquele momento onde pessoas como ele ou mesmo eu percebem que estão atrasadas ou no limite de tempo para realizar suas tarefas.

Tecnicamente, todos nós lidamos com esses três conceitos na nossa vida. A responsabilidade de fazer o que precisa, a vontade de fazer só o que nos diverte e a realização de que às vezes erramos por falta de foco ou comprometimento. O CLIP não é um ser especial que lida com problemas que ninguém mais lida, afinal, pessoas pontuais e confiáveis tem que se esforçar para fazer as coisas direito, não é mágica para ninguém. Mas, o argumento aqui é que o CLIP tem problemas que o atrapalham na hora de fazer a coisa certa, e não é necessariamente egoísmo ou desinteresse.

Porque o próprio artigo no qual este texto é baseado tenta fazer a separação entre o grupo de pessoas que se atrasa sempre porque não está nem aí para os outros e o que se importa e está sempre se sentindo mal por não conseguir fazer diferente. Eu saio um pouco do entendimento do autor original para ser um pouco mais cínico: toda vez que criamos dois grupos, um escroto e um mais inocente, o dos mais inocentes só existe para podermos nos colocar lá. Sim, como CLIP eu posso garantir que nossos atrasos não passam impunes dentro da nossa mente e que é uma sensação terrível ficar decepcionando os outros vez após vez. Mas, com certeza tem um grau de falta de foco no outro ao deixar o Macaco da Gratificação Instantânea assumir o leme tantas vezes assim.

Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Antes de qualquer coisa, vamos considerar como essa dinâmica de personagens deveria funcionar numa mente menos insana: o Tomador de Decisões Racional sabe o que está acontecendo, os prazos e as prioridades. Ele está te guiando, sabendo que o Macaco da Gratificação Instantânea está por perto, mas sendo capaz de dar atenção pra ele de vez em quando. Também lida com o Monstro do Atraso às vezes, porque todo mundo se enrola de vez em quando. Mas, na média, há controle sobre a direção e consequências menores tanto para a pessoa quanto para quem está ao seu redor.

Se você às vezes se atrasa, se às vezes perde um prazo e se complica, é uma pessoa normal. Quer dizer, o mais normal possível nesse caso. Pessoas muito pontuais e confiáveis são raridade também. O ser humano, em média, sofre um pouco com essa dinâmica de foco e gerenciamento de tempo. Então, cuidado ao se identificar aqui: uma coisa é ser uma pessoa falível e distraída, outra é viver dentro da realidade do CLIP. Por mais que me doa admitir, é mesmo uma forma de insanidade.

E insanidade no sentido de repetir as mesmas coisas esperando resultados diferentes. Se fosse um pouquinho mais fácil resolver o problema do atraso crônico, pode ter certeza que eu e a maioria absoluta das pessoas que sofrem com isso já teriam feito. O preço é caro. A maioria das pessoas ao seu redor acha que você não se importa ou que é um vagabundo mesmo. As poucas pessoas que entendem o problema ainda sim não tem obrigação nenhuma de aguentar a encheção de saco que é conviver com alguém assim. Não é surpresa nenhuma que a autoestima do CLIP tenha vários buracos nessa área, e que passem muito tempo da vida se lamentando por deixar os outros na mão.

Mas eu aprendi do jeito difícil que pouco ou nada resolve fazer os outros entenderem que você está sofrendo junto. A única coisa que resolve é… resolver. Não atrasar e não furar prazos. E enquanto não for capaz de dar conta disso, pagar o preço. E para resolver, por mais utópico que me pareça agora, o primeiro passo é entender o que acontece. Então, com ajuda das personagens de Tim Urban, vou tentar explicar como esse processo de atraso funciona na minha cabeça, por exemplo.

Em tese, quem está no controle da sua cabeça é o Tomador de Decisões Racionais (TDR), o Macaco da Gratificação Instantânea (MGI) é um passageiro constante que também sabe te guiar, mas está pouco se importando com a rota que o TDR traçou. A consequência dessa mudança de curso é encontrar com o Monstro do Atraso (MAT). O TDR não se sente bem por perto do MAT, mas com o MGI a coisa é pior ainda, é pânico mesmo.

Numa cabeça insana, ou a cabeça do CLIP, o TDR ainda está trabalhando normalmente, só que tem uma dificuldade incrível de controlar os surtos do MGI. Ou seja: você está escrevendo um texto para o seu blog, sabe que precisa terminá-lo em tantas horas para ter tempo de fazer todo o resto que precisa no dia, programa-se lindamente para encaixar todos seus compromissos nesse tempo, mas… é como se acontecesse um apagão mental e quando você se dá conta, está vendo um documentário sobre vulcões da Islândia quando deveria estar escrevendo um texto sobre inteligência artificial. E você só tem essa realização porque o MAT aparece berrando na sua frente quando o prazo está terminando e finalmente o MGI sai correndo dali, deixando o TDR vendido na história.

Parece vitimização, né? Coitado de mim, não tenho controle… de uma certa forma, não tenho mesmo, mas evidente que a responsabilidade é exatamente a mesma. Todo mundo tem vontades expontâneas de fazer outras coisas que não suas obrigações, mas a maioria espera um pouco. O CLIP não. E isso acontece por uma tríade maldita de concepções erradas sobre a realidade que fazem o CLIP realmente parece maluco de pedra.

1 – Otimismo temporal: antes de ter esse nome, eu chamava de “Tempo Somir”, a noção irreal de quanto tempo as coisas demoram típica dos CLIPS. Todos os prazos são pensados de acordo com o melhor cenário possível e aparentemente nada te prova o contrário, mesmo depois de décadas de atrasos. Se você acha que tomar um banho e trocar de roupa demora 10 minutos da sua vida, porque é isso o que demora quando tudo está conspirando pra isso, esse valor fica tatuado na cabeça. E aí, quando você precisa tomar um banho, fazer a barba, passar uma roupa social e vesti-la… mesmo com a lógica dizendo que vai demorar mais, na sua cabeça são 10 minutos. E isso só fica claro quando você está há 10 minutos só passando uma camisa por esquecer como acha aquilo chato e é péssimo nisso. O mais irritante para o CLIP (porque para o resto das pessoas o irritante é o atraso) é que dá um trabalho imenso reverter essa noção temporal errônea, e isso só funciona UMA vez. Na próxima vez recomeça tudo.

2 – Dificuldade com mudanças: mudar de atividade é terrível. Quando você finalmente consegue entrar em algo parecido com um estado de fluxo no que está fazendo, é quase impossível sair daquilo e ir fazer outra coisa, mesmo que ela seja mais urgente e esteja no limite do prazo. O CLIP pode ser produtivo tanto com o TDR quanto o MGI no leme, a diferença é que quando o macaco toma o controle, você se torna produtivo em algo que não dá tempo de fazer, porque convenhamos que nem sempre estamos com vontade de nos dedicar ao que é mais urgente. Tem quem consiga redirecionar os esforços, tem quem só consiga fazer isso com um MAT berrando na sua orelha. E mesmo assim, a quebra de foco por interesse é tão traumática que a próxima atividade fica comprometida. Então, além de gastar muito tempo com o que não era urgente pelo prazer da atividade, você ainda começa mal a que é urgente, tanto pelo trauma da mudança quanto pela culpa inerente ao processo de se ver novamente atrasado e com pessoas decepcionadas ou mesmo furiosas com você.

3 – Produtividade adulta: o CLIP não é burro para não saber que está merdando, a compulsão que é forte demais. E quem passa uma vida nesse estado de débito está sempre com várias pedras na mão, inclusive contra si. Quando eu acordo do “transe” do MGI, por exemplo, estou com tanta raiva que fico me forçando a terminar a atividade atrasada como se fosse uma punição pelo acontecido. E essa insistência no que já está atrasado vira uma bola de neve que começa a atrasar todos os próximos compromissos. Até porque eu garanto para vocês que o CLIP está sempre com a impressão que não vai dar tempo depois. Insanidade: calcula o tempo de forma otimista, calcula as consequências de forma pessimista. O medo é de nunca mais conseguir fazer aquilo e viver com a derrota para sempre se não resolver na hora. Quando o CLIP consegue entregar as coisas no prazo, aí sim começa uma bola de neve “do bem”, porque se sente livre para relaxar e fazer menos planejamentos insanos sobre seu tempo.

Uma das piores coisas de estar e se sentir eternamente atrasado é justamente o inverso do que a maioria das pessoas acredita: a falta de lazer e tranquilidade. Uma pessoa que consegue não se enfiar nessas situações cretinas de atrasos seguidos pode simplesmente usar o seu tempo liberado para fazer uma atividade que gosta com a paz que vai poder curtir aquilo. O CLIP diverte-se esquecendo por alguns momentos que está atolado de coisas para fazer (que deveria ter feito, e que todo mundo diz que deveria ter feito) para correr atrás do tempo perdido. São calorias vazias, por assim dizer. É viver com uma culpa que só pode ser aplacada por “distração”

Eu realmente não sei como resolver isso de vez, até onde eu aprendi, é uma luta que recomeça a cada compromisso e para a qual não parece existir remédio ou tratamento eficaz. Às vezes a gente consegue fazer melhor, às vezes não. E tem que lidar com isso… eu e quem está ao meu redor. Juro que tentei entregar este texto às 06:00… mas só consegui agora. E o resto do meu dia está todo cagado por causa disso.

Então, para terminar essa explicação/mimimi, repito algo do texto original: não é para tolerar atrasos ou achar bonito quem faz essas merdas, mas é preciso entender que o problema do CLIP não tem a ver com você ou com o quanto ele te acha merecedor de consideração, é um problema da pessoa. Com certeza dá para melhorar, mas às vezes atrasa…

Para dizer que eu atrasar este texto parece proposital até, para dizer que é desculpinha esfarrapada, ou mesmo para dizer que quer ler o da Sally sentando a pata em atrasados como resposta: somir@desfavor.com

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