Adpocalypse Parte 2: Desmonetizados.

O consumo de mídia mudou consideravelmente nos últimos anos. A internet criou versões mais práticas e frequentemente mais livres dos formatos consagrados de áudio, vídeo e texto. Um modelo que começou com hobbistas dedicando seu tempo livre para produzir conteúdo, mas que hoje em dia é uma indústria maior que todas as outras combinadas. Inclusive no dinheiro movimentado. E onde tem dinheiro, tem interesses…

Durante um tempo, a livre criação de material para redes sociais (especialmente YouTube, que continua sendo o foco aqui) era extremamente positiva para quem queria anunciar: com a profusão de conteúdo vindo de todos os lados, muitos extremamente de nicho, podia-se apontar anúncios para pessoas com uma especificidade nunca antes vista. Meio difícil saber exatamente se o seu anúncio de carros combina bem com a audiência de uma novela, mas se a pessoa está vendo um vídeo bem específico sobre carros, grandes chances que ela se interesse bem mais pelo tema.

Sem contar que de uma certa forma, o YouTube é uma TV com milhões de canais diferentes. Seria terrível se os anunciantes tivessem que tratar com os produtores de conteúdo diretamente, gastando um tempo que ninguém tem. Mas, como o Google gerencia tudo ao mesmo tempo, você pode anunciar em milhões de canais ao mesmo tempo, inclusive até perseguindo as pessoas que acha interessantes canal por canal. Vai dizer que nunca sentiu que tinha um anunciante correndo atrás de você pela internet toda? Eles de fato estavam. Do jeito que o sistema funciona hoje, quem faz a propaganda não sabe seu nome ou seu endereço, mas sabe que você viu tal conteúdo, visitou tal site… o que resolveu problemas históricos da publicidade tradicional.

Mas aí, como de costume, a lua de mel acaba e produtores de conteúdo e anunciantes começam a perceber que a outra parte acorda com bafo… quanto mais popular é uma plataforma, maior a pluralidade das opiniões das pessoas que a utilizam, e com o YouTube se tornando de fato a maior “TV” do mundo, houve um influxo de produtores de conteúdo no que provavelmente chamaremos de “era de ouro” do site em alguns anos. Havia espaço para todos, produzindo incontáveis horas de material para uma plateia cada vez maior. E muitas pessoas começaram a ganhar dinheiro de verdade com isso. Os anunciantes derramando suas verbas de mídia recém-retiradas das mídias tradicionais, e os produtores livres como nunca para fazer o que bem entenderem.

Bom demais para ser verdade. Quando os anunciantes percebem realmente o poder que tem ao financiar uma revolução na produção de conteúdo na humanidade, eles percebem também que estavam abdicando do controle que sempre tiveram na mídia tradicional sem necessariamente um motivo para isso. Quem é acostumado com poder não fica passivo por muito tempo. Os anunciantes queriam saber melhor o que estavam financiando e o que os consumidores potenciais estavam fazendo ao ver suas mensagens naqueles vídeos. Com isso começa a primeira grande extinção de vídeos monetizados do Youtube.

Com a vitória de Trump nas eleições e um crescimento acentuado de canais ditos de “direita” no YouTube, acabava uma era de “inocência” no conteúdo apresentado no site. Não havia mais uma presunção de conteúdo livre de polêmicas por lá, e para quem coloca sua marca quase que às cegas na frente do material produzido pelos youtubers, isso parecia muito perigoso. Ainda mais considerando a febre “politicamente correta” nas redes sociais e os riscos óbvios de gerar polêmica e boicotes caso arriscassem ficar fora da narrativa vigente sobre o que é certo. Os anunciantes começaram a pressionar com sua arma mais poderosa: o dinheiro.

Escandalizados com exemplos de seus produtos e serviços supostamente financiando vídeos de racistas e coisas do gênero, grandes anunciantes ameaçaram tirar suas vultuosas verbas de mídia do YouTube (que custa uma nota pretíssima ao Google por minuto só pelos servidores) enquanto a gigante das pesquisas não desse atenção ao problema. E com incontáveis horas de conteúdo no seu site, era impossível fazer uma curadoria eficiente do que estava ou não de acordo com as políticas do site. Além disso, no minuto que o YouTube colocar pessoas para escolher que vídeos podem ou não estar no seu site baseados em qualquer outra coisa que não a legalidade, passa a ser considerado o responsável pela publicação dele, abrindo uma brecha legal para tomar processos por qualquer coisa que ofenda uma das centenas de milhões de pessoas (quiçá bilhões) que consomem seu conteúdo diariamente.

A solução foi deixar o “robô” que analisa os vídeos treinado para tirar as propagandas dos vídeos que pareciam perigosos. E nessa, muitos canais perderam basicamente toda sua fonte de renda da noite para o dia. Na dúvida, o YouTube atirou. Derrubava então toneladas de vídeos (alguns sem deletar, mas escondendo e tirando anúncios) e os criadores que se virassem pra reverter. O que boa parte não conseguiu. O algorítimo do YouTube para definir que vídeos poderiam ser monetizados é de difícil compreensão aparentemente até para seus criadores, e totalmente esotérico para quem produz o conteúdo. Nessa, quem se deu bem foram os canais que nunca se meteram em polêmica. Inclusive aqueles canais malucos de vídeos infantis do texto anterior, que passaram por debaixo do radar dessa grande extinção e precisaram ser atacados separadamente meses depois.

Nessa, os anunciantes conseguiram o que queriam: começaram a controlar, mesmo que indiretamente, o conteúdo dos canais do YouTube. Quem não consegue monetizar seus vídeos e não é preferido pelos algorítimos de indicação do site acaba isolado num canto escuro da internet. Em tese, o YouTube se mantém livre de censura ideológica, mas na prática, é exatamente o que está acontecendo. Para quem paga pelo conteúdo, não vale o risco de existir uma plataforma livre demais, um vídeo que te faz pensar sobre assuntos muito pesados tende a te deixar menos propenso a fazer uma compra ou experimentar algo novo. Tanto que antes da primeira grande extinção de vídeos monetizados pelos conteúdos “racistas” (entre aspas porque tem muita histeria nesse processo), os vídeos com conteúdos LGBT(e sei lá mais o que) também sofreram um processo de desmonetização em massa. Polêmica e temas difíceis são ruins para o negócio, pelo menos no modelo clássico que os anunciantes estão acostumados.

Ouvi dizer bastante por aí que o YouTube está acabado e só vai piorar com o tempo, o que eu tenho um contraponto: vai piorar para quem não entrar em conformidade com o conteúdo esperado pelos anunciantes. Mas vai continuar imprimindo dinheiro para o Google e aqueles que sabem não pisar em terrenos perigosos por muito tempo ainda. Não existe concorrência ainda. Com exceção do Instagram, nenhuma rede social com modelo de monetização está crescendo mais, e a tendência é que o pico da viabilidade comercial das redes sociais esteja chegando. Todo o poder financeiro que controlava a mídia tradicional está quase que transferido para as mídias digitais, ou seja, vai tudo ser profissionalizado. Acabou a corrida do ouro.

E com isso, acabou o tempo do conteúdo livre e lucrativo. O modelo do YouTube estabilizou, e apesar dos sustos, o Adpocalypse foi adiado por mais alguns anos. O preço que pagamos foi alto, mas… não tinha como ser diferente. Até termos um novo salto tecnológico considerável que mude totalmente nossos hábitos de consumo de mídia, é bom se acostumar. Ou você é livre, ou você ganha dinheiro… como sempre foi.

Para dizer que adora essas conclusões pessimistas, para dizer que estava torcendo para o YouTube falir, ou mesmo para dizer que sabe quem é o responsável por tudo isso (se falar deles no seu canal, ele é desmonetizado): somir@desfavor.com

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Comments (2)

  • Ser neutro e esconder suas opiniões para agradar grandes massas e maximizar audiência e lucro, nada de novo sob o sol… Já viu o criador da Galinha Pintadinha, por exemplo, falando sobre aborto ou política?

    Ou você é você mesmo, ou você lucra. Fim.

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