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Sinestesia.

Sinestesia.

| Sally | | 10 comentários em Sinestesia.

Já pensou se os seus sentidos se misturassem? Se o som de um piano causasse visões, se sua música favorita tivesse um gosto ou se a data do seu aniversário tivesse uma cor? Pois é, esta superposição dos sentidos pode acontecer e é mais comum do que se imagina. Desfavor Explica: Sinestesia.

Sinestesia é uma condição neurológica onde a ativação de um sentido acaba ativando sem querer outro, ao mesmo tempo. Por exemplo, ao ouvir seu nome (audição) a pessoa acaba sentindo gosto de melancia (paladar). Não, não é loucura. É um bug cerebral na hora de interpretar os estímulos que recebe. Estima-se que uma em cada duas mil pessoas experimente algum tipo de sinestesia. É uma condição permanente, um modo de funcionar do cérebro. Não é doença, por sinal, muitas vezes, pode até representar uma vantagem na vida. Ninguém sabe ao certo porque acontece, mas já se sabe como.

Via de regra, cada estímulo que nosso corpo recebe é processado e compreendido pelo cérebro por um caminho próprio, como se fosse uma rua de neurônios para cada estímulo. É isso que nos faz ter a percepção das coisas. Quando toca uma música, a informação vai pela “rua da audição”, que a leva até seu destino final: é percebida e decodificada pela região responsável (papo técnico: córtex auditivo). Então, escutamos a música. Quando vemos um gatinho, a informação passa pela “rua da visão”, que a leva até o seu destino final: é percebida e decodificada pela região responsável (papo técnico: córtex visual), então vemos o gatinho.

Então, o que você sente, não é necessariamente o que está acontecendo. Você sente o que seu cérebro te diz que você sente. Você vê o que seu cérebro te diz que você vê. E nosso cérebro nos engana o tempo todo. Não raro pessoas hipnotizadas são induzidas a comer uma coisa e sentir o gosto de outra. E é nessa percepção do que está acontecendo que a Sinestesia entra.

Em algumas pessoas, não se sabe bem ao certo o porquê, estas “ruas”, estes caminhos que levam cada estímulo para o lugar onde serão decodificadas, se cruzam e às vezes até se confundem. A imagem vai parar na área da audição. A audição dá uma passadinha pelo paladar. É como se para chegar no seu destino final, o estímulo tivesse que passar antes por outro lugar.

Dá uma linha cruzada no cérebro e o que era som desperta também a visão. Sinestesia é essa mistura de sentidos, onde um é ativado inexplicavelmente pelo outro. No exemplo dos parágrafos anteriores, toca uma música, a informação é levada pela “rua da audição” para o córtex auditivo, mas antes ela dá uma passadinha pelo córtex visual. Resultado: sempre que escuta aquela música a pessoa vê bolhas coloridas.

Isso foi constatado após realizar exames de imagem (ressonância magnética e tomografia), avaliando quais áreas do cérebro eram ativadas conforme cada estímulo. Por exemplo, no caso da pessoa que vê bolhas coloridas quando toca uma música, perceberam que a área responsável pela audição era ativada, mas a área da visão também piscava feito uma arvore de natal. Inclusive em cegos de nascença, que nunca na vida enxergaram nada.

Não é de todo ruim, nem ao menos é considerado doença. O que é ruim é a desinformação: ter esta condição atribuída à possessão demoníaca, maus espíritos, loucura ou qualquer outro motivo que não o real. É uma condição neurológica involuntária, incontrolável e que não afeta em nada a inteligência, o caráter e o desenvolvimento da pessoa. Então, vamos sossegar o facho do sobrenatural, que a ciência já sabe de onde vem.

O tipo mais comum de sinestesia é associar uma cor a uma letra ou um número. A bagunça acontece dentro do córtex visual. Em vez de processar apenas o sinal visual (letra ou número), com a cor na qual ele foi escrito, por algum motivo o cérebro o relaciona a uma cor específica. Assim, a letra B pode ser sempre vermelha, ou a letra V sempre amarela.

“Mas Sally, isso é incapacitante!”. Será? O físico americano Richard Feynman via letras e números coloridos e ganhou um Nobel. Pode acontecer até disso se manifestar com mais de um estímulo, por exemplo, o numero 5 pode ser amarelo e salgado. A pessoa nasceu assim, ela sempre viu aquilo assim, para ela não é tão confuso como parece pra você.

Normalmente os sinestetas apresentam um ou dois tipos de sinestesia, porém há casos de alguns abençoados cujo cérebro fez bagunça em pelo menos 10 tipos de estímulos. O pintor russo Wassily Kandinsky fazia uma mistureba tão grande entre visão, audição, olfato e tato que chegava a compor músicas com as cores que usaria para pintar seus quadros. Sim, ele cantava o quadro antes de pintá-lo.

Por sinal, é bem comum associar sons a cores, o músico Eddie Van Halen é sinesteta e usou essa peculiaridade para criar uma nota, que ele chamou de “a nota marrom”, muito utilizada nos discos de sua banda, Van Halen. Existem muitos famosos com esta condição, como por exemplo Lady Gaga. Especula-se que Jimi Hendrix e Marilyn Monroe também.

Há testes clínicos para confirmar a sinestesia, porém não existe um “tratamento”, pois não é considerada doença. Muito pelo contrário, vários sinestetas afirmam que esta percepção diferente os ajuda muito, principalmente na parte artística. Sua taxa de acerto sobre uma nota musical é muito maior se você puder contar com dois estímulos para identifica-la: enquanto pessoas normais tem que perceber um “dó” só com a audição, um sinesteta pode contar com a audição e com a visão para isso. Exemplo: é muito mais fácil perceber que aquilo não é um dó porque é vermelho do que contar só com seu ouvido musical.

No geral, a memória deles acaba sendo melhor, justamente por contar com dois estímulos para fixar a informação. Muitas habilidades também acabam mais fáceis, pelo mesmo motivo. Há relatos de sinestetas que conseguem ver cores em letras tem escrita praticamente perfeita, pois contam que qualquer erro salta aos olhos, pois as cores não batem.

Claro que existem alguns inconvenientes, dependendo do tipo de sinestesia e da profissão que a pessoa escolha. Geralmente os sinestetas, por sofrerem de um excesso de estímulos naturais, não gostam de lugares muito cheios, muito barulhentos ou com muito estímulo relacionado à sua sinestesia. E os casos incômodos geralmente podem ser controlados, pois são coisas bem pontuais. Um dos mais famosos narra uma mulher que se queixava de escutar um ruído desconfortável, muito agudo, que lhe causava dor de cabeça, cada vez que via uma cortina vermelha.

Há mais de 50 tipos de sinestesia catalogados, e isso é só o começo. A sinestesia foi “descoberta” de forma tardia, vem sendo estudada a sério faz pouquíssimo tempo. O primeiro caso registrado data de 1922, mas estudos dentro de padrões aceitáveis começaram só na década de 80, então, ainda tem muita coisa para ser descoberta. O que se especula é que seja mais frequente em mulheres (três vezes mais frequente) e em pessoas canhotas e que provavelmente é hereditária.

Por sinal, muitos sinestetas nem sabem que o são até que um dia, já na vida adulta, acabam descobrindo por acaso que mais ninguém escuta aquele barulho quando vê tal imagem ou sente aquele cheiro quando toca a música tal. Além desta condição não ser muito divulgada, para eles sempre foi tão normal ser assim, que não concebem um mundo diferente.

Será que tudo que você vê, escuta e sente é realmente “normal”? Muitas vezes se procuram explicações místicas para um funcionamento cerebral diferente. O que você acha ser uma intuição, por exemplo, pode ser sinestesia. Não raro eles associam nomes a sensações, por exemplo, José não é confiável, terça-feira é alegre.

Claro que, dependendo do estilo de vida e da profissão, a sinestesia pode trazer alguma limitação. Sinestetas que vêm cores em letras descrevem um profundo desconforto quando as letras já vêm de fato coloridas em uma cor que não corresponde à que eles percebem. Uma confusão mental mais ou menos parecida com a que a gente sente quando colocamos duas músicas diferentes para tocar, uma no fone de ouvido da direita e outra no fone de ouvido da esquerda.

E, na verdade, a gente tenta descrever a sinestesia, mas não consegue chegar ao que realmente se sente. É como tentar descrever uma cor para um cego de nascença: você pode racionalizar o quanto quiser, mas nunca conseguirá fazê-lo entender a sensação de enxergar. Sinestetas dizem que a sensação que eles sentem vai muito além dessa narrativa fria, e parecem gostar de ter esse “dom”.

Algumas drogas podem causar sinestesia, mas geralmente é desordenada, sem padrões e passageira. Configura uma agressão para o cérebro, algo forçado. Dificilmente será sempre da mesma categoria: paladar + som, audição + visão, etc. É bem aleatório. E o efeito colateral dessa brincadeira custa muito caro, então, não tentem isso em casa.

Há quem diga que em todo cérebro de vez em quando dá uma linha cruzada e bate uma sinestesia eventual. A ciência discorda. Existe um gif famoso, de uma torre pulando corda, onde uma a cada cinco pessoas relata escutar o som, mas na verdade o vídeo é silencioso, se você fechar os olhos, o som para. Se quiser fazer o teste, o vídeo está aqui.

No saldo final, a sinestesia acaba gerando mais benefícios que problemas, gera humanos com uma capacidade acima da média, se souberem explorar esse plus. É estranho? É. Mas nem por isso é ruim. Fique atento, se um dia uma criança te perguntar qual é a cor do seu nome, pode não ser apenas uma fantasia infantil.

Para dizer que agora entende porque a quarta-feira tem gosto de geleia, para dizer que agora percebe porque quando o gato mia você vê círculos roxos ou ainda para dizer que eu inventei tudo isso deliberadamente: sally@desfavor.com

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