Obsolescência programada.

Por ser temporão na família, tenho poucas memórias da casa dos meus avós. O tempo que passei por lá foi enquanto meu foco de atenção era bem limitado, como de costume em crianças muito pequenas. Mas tem uma coisa que eu lembro bem: uma geladeira azul de formas arredondadas que vivia abrindo para pegar todo tipo de besteira que não podia comer em casa. Ela esteve por lá na minha infância, e depois foi levada para a casa de parentes (juntos com os avós, agora mais velhos e dependentes) e continuou em atividade por pelo menos mais uma década. Já mais capaz de ouvir as coisas que os adultos falavam, descobri que o eletrodoméstico já tinha cinquenta anos de uso ininterrupto. Em nota relacionada, a última geladeira que eu comprei já estava dando problemas menos de cinco anos depois de chegar em casa. Será que ficamos dez vezes piores na produção de geladeiras nesse meio tempo?

A resposta é simples: sim e não. Ok, não é tão simples assim… mas a percepção de que no passado se faziam coisas mais duráveis que tanta gente tem é mais do que razoável, é real. Hoje vamos falar sobre obsolescência programada, isto é, o ato deliberado de produzir bens de consumo com prazo de validade. O nome complicado vem de “obsoleto”, ou seja, algo que já foi substituído por algo mais novo e supostamente melhor. Aquele seu telefone que só fazia ligações está obsoleto, mullets estão obsoletos… até mesmo a imparcialidade já parece obsoleta nos dias atuais. E é “programada” porque as empresas que produzem esses bens de consumo como lâmpadas, geladeiras e smartphones estão fazendo isso de propósito.

A ideia é que produtos que duram muito atrapalham o ciclo de consumo e reduzem o faturamento daqueles que os vendem. Se você compra uma geladeira e ela vê a terceira geração da sua família abrindo suas portas, é uma casa a menos consumindo geladeiras por muitos e muitos anos. A ideia de fazer os produtos com um nível de qualidade inferior ao que se pode só para que ele quebre ou se torne problemático num período determinado de tempo não tem um ponto inicial bem definido. Desde que o mundo capitalista é mundo, certeza que sempre teve alguém fazendo algo do tipo para garantir mais vendas.

Mas, não era uma prática tão difundida assim. Durante muito tempo, as pessoas esperavam que qualquer objeto de casa que comprassem durasse o suficiente para ser passado para filhos e netos. Antes da revolução industrial, produzir qualquer objeto era um processo artesanal, as coisas tinham mais valor até mesmo pelo tempo que demoravam para ser feitas. Se a oferta de produtos é pequena, é bom que eles durem… não tinha estoque o suficiente para garantir o acesso dos consumidores. Quando as indústrias surgem e tornam mais eficiente o processo de produção, em padrão e principalmente em velocidade, a humanidade ainda não tinha tido tempo para pensar de forma diferente.

Então, durante um bom tempo, o consumidor tinha produtos em grande volume e todos feitos com a ideia de duração em mente. As milhões de geladeiras sendo produzidas em massa ainda funcionavam como qualquer outro objeto de eras anteriores: ou dura muito ou é uma porcaria. E ainda mais naqueles tempos, não tinha muito mercado para porcaria. Os vendedores tinham poucas chances para esvaziar os estoques e tinham que se garantir muito pela qualidade dos produtos. Mas, no começo do século passado, as fábricas começam a notar o problema… produção em massa não combina com produtos muito duráveis. Eventualmente todo mundo que precisa de um desses produtos vai ter. E eles não vão ser trocados por várias décadas. Vai fazer o quê com a fábrica e os vendedores?

Mais ou menos nesse tempo, surge um cartel de produtores de lâmpadas entre americanos e europeus. O Cartel Phoebus. Naqueles tempos (1924) não existia muita regulação para as empresas, principalmente para as grandes. Então, empresas como GE, OSRAM e Philips se juntaram para combinar preços e práticas de produção e vendas de suas lâmpadas, sem se preocupar muito com esconder as coisas. E esses fabricantes tinham um problema em comum: as lâmpadas estavam ficando cada vez melhores, com os engenheiros de cada marca lutando ferozmente para entregar o produto com o maior número de horas de funcionamento para o mercado. O problema – como sugeri no parágrafo anterior – era justamente esse.

Com lâmpadas durando milhares e milhares de horas, o tempo entre cada compra estava se tornando dispendioso demais para suas estruturas. Depois de algumas conversas, decidiram que uma lâmpada deveria durar mais ou menos mil horas em média. Quem quisesse fazer com maior duração que cobrasse o equivalente: se a lâmpada de mil horas custasse 10, a de duas mil tinha que custar 20. Assim, todo mundo saberia em quanto tempo teriam seus clientes de volta de acordo com o quanto gastassem. Lâmpadas feitas antes disso vinham para o mercado com a ideia de durar o máximo possível, tanto que nos EUA tem uma lâmpada produzida em 1901 que está acesa até hoje. Ela se chama Lâmpada Centenária e pode ser vista em tempo real através deste site. Já o cartel durou bem menos, até o começo da segunda guerra mundial, por motivos óbvios. Mas o estrago já estava feito.

Mais e mais setores produtivos chegavam à mesma conclusão, e sabendo do que os fabricantes de lâmpadas fizeram, começaram seus movimentos nesse sentido também. Algumas indústrias aderiram primeiro, outras resistiram um pouco mais, mas eventualmente todas elas começaram a trabalhar com esse princípio. Um produto tem que ter limite de tempo até ser trocado por uma nova versão, todo o trabalho para aumentar a durabilidade de algo deveria seguir a lógica e ser adaptado aos produtos de acordo com o ciclo de compra planejado.

Atualmente, basicamente tudo o que você consome já tem data de expiração. O seu carro, os seus eletrodomésticos, o seu smartphone… não é à toa que os iPhones começam a dar problemas mais ou menos na mesma época que saem as novas versões. Aliás, é até um mecanismo mais cruel de invalidar um hardware (as partes sólidas do equipamento) através de uma atualização de software (as partes que você cutuca para postar bobagens na internet e tirar fotos da sua genitália). E não é só a Apple que apronta dessas, as outras fabricantes tem isso por regra em seus ciclos de produção. Para vender o novo, o velho tem que virar lixo, não é mais sobre te oferecer algo mais moderno que te faça querer trocar de celular, é sobre fazer o velho ser uma porcaria à força.

E é totalmente compreensível ficar irritado com isso. É o nosso suado dinheiro em jogo, ninguém gosta de ter que ficar gastando de tempos em tempos só porque as fabricantes querem lucrar de forma previsível. Queremos comprar algo e usar até não aguentar mais, certo? Bom, talvez valha a pena fazer uma análise mais imparcial nesse momento (mesmo que seja obsoleto): quando eu disse que ficamos e não ficamos piores na produção de geladeiras, estou levando em consideração que as peças tem data para quebrar, mas também que se não fosse isso, pode ser que eu estivesse com aquela geladeira azul em casa até hoje, com todas as limitações tecnológicas da primeira metade do século passado. Ela não tinha freezer, enferrujava, fazia um barulhão, poluía o ambiente, gastava muito mais energia…

Mesmo que a minha geladeira atual não vá me acompanhar por muito mais tempo, foram… tempos modernos. A tecnologia necessária para congelar os alimentos pouco saudáveis que me sustentam só foi criada porque as empresas produtoras podiam contratar engenheiros e investir em modernização porque tinha gente comprando geladeiras em períodos cada vez mais curtos. Para um empresa ter capacidade de investir no futuro, precisa ganhar dinheiro no presente.

A obsolescência programada soa errada, mas é uma área um pouco mais cinza. Se queremos uma economia em constante movimento, com inovação e pessoas bem pagas para levá-la em frente, há de se considerar o preço que nos cabe como consumidores nesse processo. É possível misturar durabilidade e tecnologia, é claro, mas provavelmente não no sistema vigente na nossa economia. A não ser que a humanidade seja capaz de garantir uma boa vida para as mentes (caras) que podem nos entregar esse resultado sem a economia de mercado que funciona nos dias atuais, produtos com data de validade providenciam essa capacidade no setor privado.

O que volta a ficar nebuloso quando pensamos nas verdadeiras evoluções entre versões de produtos como smartphones – que não precisariam ficar obsoletos em apenas um ano como é de praxe no mercado atual, vindo repaginados com pouca ou nenhuma novidade em relação à versão anterior – mas que em mercado mais “tradicionais” providenciam evolução suficiente para fazer valer essa suposta baixaria das indústrias. Não é só questão de reclamar das empresas, é questão de reavaliar todo o sistema capitalista como funciona atualmente. O que fica mais complicado, obviamente.

Pra variar, nada é de graça nessa vida.

Para dizer que o tema ficou obsoleto com a decisão do STF, para dizer que sempre achou que você que dava azar, ou para dividir histórias sobre geladeiras antigas: somir@desfavor.com

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Comments (10)

  • Tenho muito interesse nesse assunto desde que vi um documentário sobre o assunto alguns anos atrás, e confesso que apesar da ótica que vc propõe, Somir, sobre o avanço da tecnologia estar relacionada com o consumo desenfreado, não acredito que o justifique em toda sua intensidade. A mudança de uma geladeira que não congelava pra uma que o faz, por exemplo, justifica com certeza a troca e o descarte da antiga, mas pra mim isso não se aplica a celulares ou tvs, que muitas vezes estão em estado perfeitamente funcional e só trocamos por uma atualizaçãozinha boba ou mudança no design. O comentário da Leona é muito pertinente pois acredito que a questao da praticidade em se trocar de produto e “fazer em 10x” é maior do que procurar quem saiba consertar e ter disponibilidade pra isso, pra todo mundo é assim, o que eu particularmente faço é seguir duas premissas: a de que nem sempre vale a pena financeiramente o conserto, mas que o mundo não aguenta tanto consumo, então, pra min, vale o esforço. A outra é de que nós não precisamos MESMO de tantos aplicativos e funcionalidades, eu cago pra atualizações tecnológicas “sem propósito” (aka novos emoticons do whatsapp ou filtros de seila o que) e redes sociais, então jamais trocaria meu celular, por exemplo, por esses motivos. Meu iPhone 5 tem 6 anos e sou a 3 dona, nem de longe sou um primor de cuidado com ele e ele já está em sua segunda bateria, que me dá trabalho sim pq preciso andar com bateria extra carregada. Fora isso funciona perfeitamente, me atende, faço ligações, uso o whatsapp, vejo alguns vídeos, acesso o desfavor, então pra que gerar mais um lixo (além de qse 3 pau num novo)? Pra mim não faz sentido. E acho que muito desse consumismo ridículo que vemos hoje em dia se deve à busca insana por aprovação e de um vazio que as pessoas têm por dentro (que eu faria um link com aquele texto recente da Sally sobre atividades de lazer que não agregam nada, mas já escrevi a bíblia). Bom, é isso aí. Até mais e obrigada pelo texto!

  • Acredito que a obsolencia programada deve ser repensada por causa das consequencias ambientais. Os produtos eco friendly não dão conta de frear o acúmulo de lixo produzido, apenas diminuem o tamanho do estrago na natureza. O parlamento europeu quer lançar medidas de duração mínima de produtos, pois estão cientes de que a obsolencia nao pode conter a queda de consumo decorrente da baixa taxa de natalidade. O setor produtivo deveria investir em soluções que tornem os produtos reutilizáveis, por exemplo os containers descartados que são reutilizados na construção de casas.

  • Obsolescência programada que com certeza é fruto do individualismo, consumismo e desperdício. Receio que a humanidade só vai mudar mesmo quando estivermos muito próximos do fim das condições mínimas de uma vida digna neste planeta. Oremos!

  • Calma aí! Smartphones duram sim (se a pessoa não deixar cair no chão ou na privada). A questão é a bateria. Nenhuma dura mais de 4 anos. O problema passa a ser encontrar uma nova com um bom preço (no camelô não vale). O pessoal fica trocando porque quer estar na moda.

    Ferro de passar, por exemplo. Tem dos caros e dos baratos, de 40 reais. Quando dá defeito, tem como consertar. Só que não vale a pena, é melhor comprar um novo. A não ser que o próprio saiba fazer. Então para consertar tem que levar em conta outros fatores: geladeira, máquina de lavar, tem que ter alguém em casa para receber o técnico, as pessoas não tem tempo e não querem perder o dia de trabalho. Aí tem que pagar a visita e o conserto. Eu acho que antigamente o povo se arriscava e abria os eletrodomésticos mesmo.

    A propósito, lâmpada dá para trocar na loja se queimar dentro da validade. Levando a nota fiscal.

    • Porra, meus celulares depois de 2 ou 3 anos não comportam mais o tamanho que os aplicativos (com suas atualizações) ficam.

      Pode ser por eu ser uma demente que ainda joga Pokemon Go? Pode.

      • tem um monte de aplicativos de fábrica nada a ver que comem uma parte enorme do armazenamento, eu até tenho vontade de fazer uma chacina de desinstalação mas tenho medo de cagar alguma coisa importante do sistema ou sei lá

  • Tudo de antigamente tinha mais qualidade. Podia ter a geladeira durante a vida toda sem defeitos . Até as construções tinham isolamento acústico. Prédio moderno vc escuta os passos do vizinho de cima e ouve até as conversas. Meu Nokia tá vivo até hoje, cheio de tombos e porradas. Smartphones agora só duram até o fim da garantia. O ser humano vai ficando vagabundo.

    • Eu tenho um nokia até hoje também, pena que ele não é mais “funcional”, isto é… o Sistema symbian está obsoleto, desatualizado, não há aplicativos para ele e nem o whatts app (app fundamental hoje em dia! Quem diria, se tornar dependente de um aplicativo!) funciona mais com ele, então… Hoje ele ainda existe, mas é só uma peça de museu.

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