Tempo perdido.

Recentemente, tivemos mais dois casos de celebridades cujo passado no Twitter foi revirado para achar piadas e comentários considerados “problemáticos”. James Gunn e Dan Harmon, criadores famosos que trabalham para Marvel e Adult Swim (do Cartoon Network). O diretor do Guardiões da Galáxia 1 e 2, apesar dos bilhões que trouxe para a empresa, já está demitido. O criador do desenho Rick&Morty por enquanto está mantido (sabe-se lá até quando). O elemento em comum nos dois casos é o tempo entre o problema com o conteúdo e quando ele foi escrito. Quanto tempo é suficiente?

Diferentemente do caso do Cocielo, nesses não teve nenhum estopim recente para fazer as pessoas irem buscar mais sarna para se coçar. Os dois que estão sofrendo com o ataque em massa no momento eram inclusive muito mais voltados para o lado dos politicamente corretos, criticando o Trump e fazendo tudo o que se esperava de personas públicas nos dias atuais. Quem desenterrou esse material, de quase 10 anos atrás em ambos os casos, fez com a clara intenção de botar fogo na situação. Já desconfia-se fortemente que quem mostrou esses tweets o fez como retaliação “política” por casos como o de Roseanne Barr (que também teve texto aqui no desfavor). A esquerda derruba celebridades da direita e a direita se vinga.

As motivações de desenterrar ou mesmo o teor das piadas que essas pessoas fizeram uma década atrás pouco importam neste contexto. Eu quero me concentrar agora nessa quantidade de tempo entre algo que uma pessoa diz e o quanto isso ainda é relevante para sua existência atualmente. Antigamente, não tínhamos que nos preocupar tanto com isso, a nossa relação com o mundo deixava menos rastros, e mesmo que a pessoa tivesse uma plateia muito grande para suas falas, opiniões ou piadas, poucas delas realmente ficavam marcadas na memória coletiva.

A realidade respeitava mais as regras naturais do próprio cérebro: guardamos algumas informações de forma mais clara, mas a grande maioria das nossas memórias é na melhor das hipóteses vaga. Sem contar o grosso da nossa interação com o mundo no dia a dia que simplesmente não é guardado. Tente lembrar o que você almoçou há exatos 4 anos atrás e vai ver que a informação nem está lá. O cérebro apaga o que não usa. De uma certa forma, a sociedade também faz isso. Nossas percepções sobre o mundo e as outras pessoas estão sempre abertas a serem reescritas por novas informações.

E isso tinha muito a ver com a dificuldade de armazenar informações suficientes sobre outras pessoas. Nem mesmo figuras históricas e extremamente famosas tiveram todas suas interações com outros seres humanos gravadas para a posteridade. Jesus e Hitler não tiveram… mas hoje em dia, qualquer um pode ter. Na era das redes sociais, o que era fama antigamente está ao alcance de qualquer um. Não precisa de mais alguém interessado em compilar suas ideias, um computador o faz automaticamente.

E aí surge uma nova necessidade: descobrirmos na prática por quanto tempo uma ideia ou opinião é válida para definir a imagem de alguém. Quanto tempo demora para uma pessoa mudar e ser tratada de forma diferente. Esse valor claramente não está escrito em lugar algum, tenhamos em vista esses casos recentes no Twitter. Depois de 10 anos, quem não mudou? Eu vejo aqui no desfavor mesmo, dos meus primeiros textos pra cá, minha forma de enxergar a realidade e até mesmo analisar as coisas mudou imensamente. Quem ficou com a gente desde o começo foi se reinventando junto, invariavelmente.

Obviamente essa é uma pergunta difícil de responder: cada pessoa tem seu tempo e seu interesse em mudar. Algumas pessoas podem se manter muito estáveis por uma década, e de uma semana para outra, ter alguma experiência que muda completamente sua visão de mundo. Não dá para ter muita noção sobre o que uma pessoa realmente pensa sem ter um contato bem recente com ela. Claro, podemos descobrir pistas sobre a linha geral que ela segue através do histórico dela, mas não é nada mais do que isso.

E por ser uma pergunta difícil de responder, fica claro que pouca gente está com paciência de lidar com ela. Na dúvida, mantivemos a visão antiga das coisas: se temos acesso a informação, é porque era importante o suficiente para ser mantida. Com a internet e o espaço “infinito” para guardar nossos históricos em redes sociais, isso deixou de ser verdade. O que está na internet foi mantido por uma máquina sem juízo de valor nenhum, não é importante da mesma forma que as mensagens de antigamente. Havia um filtro natural de importância na manutenção do histórico das pessoas, mas essa limitação técnica caiu.

Ainda não vencemos o pensamento retrógrado sobre o valor da informação na era do excesso da informação. Mais ou menos da mesma fonte vem os problemas com fake news e a insanidade atual da polarização: como ainda não conseguimos entender que nem tudo o que lemos ou dizemos na internet tem o peso que nosso inconsciente aplicou pelos tempos de controle da mídia tradicional, a fala da internet ainda não tem a mesma cara da fala ao vivo, onde podemos expressar os maiores absurdos com quase ou nenhuma repercussão. Que atire a primeira pedra quem não fala coisas 100 vezes piores com amigos na vida real do que falaria na internet…

Porque nessa situação, sabemos bem melhor que as pessoas falam um monte de asneiras na vida, e que não é para guardar tudo aquilo para usar no futuro (menos se for sua namorada, ela sempre vai lembrar). Sabemos que pessoas são momentos, e que vamos esquecer a maioria das coisas que vivemos com elas (pelo menos nos detalhes) com o passar da vida. Na vida real, ainda valorizamos o presente, mas na internet as pessoas perdem esse direito de se reinventarem constantemente. Isso já está tornando a vida de muita gente um saco, e só tende a aumentar até que fique insuportável demais para a maioria das pessoas. Os famosos são nossos testes nos dias de hoje, mas com certeza isso ainda chega em nós, pobres mortais, antes de alguém finalmente ter paciência para responder essa pergunta.

Enquanto isso, só não se esqueça: quem se abre na internet perde o direito a ter passado.

Para dizer que não tem tempo de pensar em tempo, para dizer que o prazo de validade é até cair no chão, ou mesmo para dizer que o importante é que eles estão se matando: somir@desfavor.com

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Comments (12)

  • Tenho pena da geração atual, com seus 13 ou 15 anos, quando chegar aos 30 anos e ter que apagar tanta bosta que neste momento está postando.
    Mas concordo que a tendência é banalizar, assim como está acontecendo com vazamento de nudes.

    • Não vão conseguir apagar não. Por mais que você apague das redes sociais, sempre fica em algum lugar. Conheço gente de RH de empresa que vasculha justamente as postagens apagadas de rede social dos candidatos.

  • Tem mais de dois anos que eu praticamente não manifesto minhas opiniões em redes sociais, o mundo tá chato demais dependendo de qual partido você apoia nem emprego você arruma, percebi isso a tempo de deletar minhas antigas redes sociais e adotar a persona de um cara que só compartilha memes e piadinhas inofensivas (quando eu lembro de entrar). A internet ultimamente está chata e cheia de extremistas, não sei pra onde correr.

      • …Este é (!) o paíseco onde já era possível sentir-se traído(a) por vizinhança(s) dependendo de qual casa / rua se é, no mesma (pseudo)cidade dependendo de qual extremista-bairrista se há o azar de encontrar; e principalmente “os racha$” de grupo(s) de mesmo partido contra outro(s)…

        Cada vez mais lamentável !

  • “(…) quem se abre na internet perde o direito a ter passado.” Perfeito, Somir! Em tempos de redes sociais e de patrulha ideológica por todos os lados, o “crime” de dizer algo que desagrade alguém jamais prescreve, independentemente de época ou contexto. E o pior é que o que não falta por aí são procuradores de pêlo em ovo especializados em sentir desagrado por qualquer coisa…

  • o Mundo estava muito chato sem fogueira, forca, cruz… fico imaginando essa geração de influenciadores digitais adolescentes quando chegar o dia do juízo final. Ainda bem q não tive filhos e só fico na moita.

    • Nem precisa esperar juízo final, fico imaginando essa geração daqui a 5 ou 10 anos, quando estiverem na vida adulta, no mundo real sem safe spaces e com chefes cagando pras suas neuras e problematizações.
      Não é a toa que a maioria quer ser “seu próprio chefe”, mesmo sem experiência, disciplina e mentalidade pra isso.

    • É o que eu já disse muitas vezes aqui: o problema do Ocidente é a falta de problemas.
      Ainda bem que eu segui a linha tradicional estudo -> faculdade -> trabalho e não tenho um desses empregos moderninhos e instáveis que dependem de redes sociais, deve ser um inferno passar a vida administrando tantas contas pra não perder hype/engajamento, nunca entendi a graça de expor vida, cara e nome real (o meu não é Lucas) pra desconhecidos que podem fazer qualquer coisa com essas informações. Estou ficando velho, mesmo…
      Opiniões polêmicas não falo nem pra minha família, quanto mais pra colegas de trabalho. Entro mudo e saio calado, estou lá pra trabalhar não pra debater.

  • Eu tenho essa curiosidade de saber qual é o “endgame” desses linchamentos. Porque muita gente aí vai continuar ricaço e tocar a vida mesmo se for demitido e perder fama e patrocinador. Querem execução pública, estilo Arábia Saudita?
    Assustador o fato de que eles conseguem que o entretenimento e outros setores se curvem a eles. Todos são a mesma coisa, a mesma mentalidade, discursos e a agenda fixa fechada a questionamentos e inputs. Não sei qual é essa tara de ver famosos e empresas falando a mesma coisa e repudiando o óbvio.

    “A empresa tal abraça a diversidade e repudia preconceito, racismo, LGBTfobia, machismo, cuspe no chão e mindinho na quina da mesa.”

    Enfim, creio que a tendência é essa evasão do passado e da privacidade banalizar de tal forma que se torne natural e talvez a regra. O bizarro vai ser nunca ter tido redes sociais, nem ter postado bostas e nunca ter vazado nada comprometedor seu na internet.

  • Olha, ao menos nisso os evangélicos são melhores que esses patrulhadores: um “convertido” tem seus pecados perdoados pelo seu público-alvo até o momento da mudança. Só não pode, claro, voltar atrás na conversão.

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