A língua das máquinas.

Uma das tendências mais consistentes na história humana é a mecanização, ou seja, transferir uma função que originalmente era realizada pelo corpo humano para uma máquina. Colocar um boi para puxar um arado na fazenda e criar um robô para montar iPhones se encaixam nessa categoria. A ideia normalmente está ligada ao medo de perdermos nossos empregos, mas pouca gente se lembra que até segunda ordem, máquinas não sabem o que fazer e precisam ser comunicadas sobre sua função. Por isso, a seguinte pergunta torna-se muito importante: você sabe falar com uma máquina?

Se você está lendo este texto, com certeza sabe um mínimo. Precisou comunicar ao seu computador ou smartphone que queria entrar no desfavor e que queria ler mais. Para chegar até aqui, usou uma língua que não aprendeu ouvindo seus pais e outros adultos falando. Você fala com seu computador – de mesa ou de bolso – enviando comandos a partir do que está enxergando na tela. Um clique ou um toque significam algo, e isso faz com a máquina diante de você consiga fazer ações que jamais faria sozinha. Isso é uma forma de comunicação com intenção, não deixa de ser falar com a máquina.

E vou mais longe: toda vez que aperta um interruptor para ligar uma lâmpada ou que gira a chave de um carro, está falando com uma máquina do mesmo jeito. Um carro não sabe para onde vai a não ser que você comunique para ele quando acelerar, quando frear e obviamente quando virar suas rodas. Para isso você usa a língua dos pedais e do volante. E só veículos desse tipo entendem essa forma de comunicação: é bem duvidoso o resultado de pisar numa pessoa para fazê-la andar mais rápido, não?

De uma certa forma, você fala todas as línguas que conhece para se comunicar com seres humanos mais todas as línguas que precisa aprender para interagir com máquinas. Cada pedacinho de tecnologia que você aprende como funciona te ensina um grupo de ações específico que serve como sua forma de comunicação com ele. E como sabemos bem, ainda não existe máquina que entenda nossos interesses e desejos tão bem quanto outro ser humano. Não adianta descrever em palavras para o seu computador como você imagina um site, por exemplo. Ele não tem como trabalhar nisso a não ser que seja comunicado de cada parte do projeto.

Máquinas não tem visão de intenção, e raramente tem do quadro geral de um projeto. E, novamente, máquinas não precisam ser só coisas complexas como computadores e carros. Voltando ao exemplo do arado puxado por um boi: nem o arado nem o boi sabem que você está fazendo naquele pedaço de terra. Não vão perceber se você fizer linhas tortas ou se deixar muito pouco espaço para plantar comida suficiente para sua família. A máquina tende a estar presa no presente e fazer coisas sem entender o motivo delas. Intenção futura, contexto e estratégia ainda são exclusividades da inteligência humana.

E é aqui que eu quero colocar em questão a nossa habilidade de falar com máquinas. Sim, a maioria de nós já é capaz de tocar numa tela ou de apertar botões com intenção clara, mas nossos “vocabulários” para falar com máquinas ainda tendem a ser muito limitados. Sob este posto de vista, eu entendo a preocupação de muita gente sobre o contínuo avanço da mecanização na sociedade. Especialmente quando chamamos de automação, ou seja, quando máquinas conseguem fazer alguma tarefa sem a intervenção de um ser humano. Mas, antes dessa máquina trabalhar sozinha, algum ser humano conseguiu comunicar sua intenção de forma eficiente. A máquina pode trabalhar sozinha, mas não tem nenhuma noção própria da sua função no mundo.

Por isso, é melhor não ignorar as oportunidades que começam a surgir sem parar nesse mercado de conversar com máquinas. A demanda por programadores é enorme, desde aqueles que criam jogos até mesmo os que definem a lógica de funcionamento de uma linha de produção numa fábrica. Tudo isso depende de saber falar com as máquinas de forma eficiente. A diferença entre quem sabe tocar numa tela para abrir um vídeo e quem “ensinou” para a máquina que deveria abrir o vídeo quando alguém tocasse naquele ponto específico da tela é basicamente o tamanho do vocabulário e o esforço mental envolvido em falar a língua das máquinas.

O usuário final de um aplicativo é um troglodita apontando e grunhindo para a máquina, o programador é um professor que tenta ensinar a máquina o que fazer escolhendo em que ordem ela deve aprender cada habilidade. Não tem mágica em programação, é apenas saber se comunicar de forma mais avançada com uma máquina. E isso não quer dizer que no futuro todos teremos que ser programadores. A humanidade se vira muito bem mantendo pessoas especializadas em coisas diferentes. Sim, quanto mais automatizada a vida humana, maior a demanda por aqueles muito proficiente na língua das máquinas, mas assim como hoje quem sabe só falar o básico do básico para elas ainda consegue fazer muitas coisas úteis para o mundo, no futuro não vai ser necessário saber toda a língua para ser viável na sociedade. Só quer dizer que o conhecimento médio dessa forma de comunicação vai aumentar.

É cada vez mais comum que as máquinas já cheguem até a nós com algo parecido com um cérebro: capaz de analisar e armazenar informações independentemente de quem a usa. Vamos usar exemplos de computadores aqui, mas a cada dia que passa, mais e mais objetos de nossas casas tornam-se inteligentes. E por um bom motivo, afinal, isso torna o “vocabulário” compreendido pela máquina em algo muito maior.

E para conseguir se expressar melhor nessa língua, precisamos entender alguns preceitos básicos: o primeiro é que a máquina não sabe para onde você está indo. Ela pode analisar informações numa velocidade e complexidade impossíveis para o nosso cérebro, mas está presa no presente. Máquinas não imaginam e não se planejam de forma consciente. Uma máquina processa informações imediatamente e só faz o que se pede dela. Estamos acostumados a também viver no presente quando falamos com uma máquina, apertamos um botão, clicamos numa parte da tela ou mexemos um comando de acordo com nosso desejo imediato. Para o uso do dia a dia, é excelente, mas se você quer realmente conversar com a máquina em toda a extensão da capacidade ela, deve começar a entender como passado e futuro podem ser utilizados nessa conversa.

Quando você se comunica com uma máquina, pode pensar no futuro sim. Só tem que explicar isso em detalhes. Muitos dos programas de computador que utilizamos hoje em dia tem funções de ações automatizadas e templates. Na prática, isso significa que você pode prever as ações que mais repete e ensinar o computador a já deixar isso pronto para você. Sem esse conceito, a internet atual seria basicamente impossível. Aqui mesmo no desfavor, o sistema que eu uso para publicar o site já sabe que uma postagem é composta do texto, da imagem, autor, coluna e tags. Eu não preciso montar a página inteira, o sistema copia tudo o que se repete sempre e me entrega pronto para que eu consiga adicionar as novidades da vez. O site sabe onde vai a imagem, por exemplo, só não sabe que foto eu escolhi. Esse é conceito de template: algo que já sabemos que vai se repetir e só precisa de alterações pontuais para ficar pronto.

Além disso, em toda ação que se repete mais ou menos da mesma forma toda vez que se usa, existe a oportunidade de automatização. Se você sabe que precisa adicionar os números de um relatório numa tabela de Excel todo mês e fazer quatro gráficos diferentes, existem funções no programa não só para criar e exportar os gráficos no formato que você quer, como também sistemas capazes de ler os relatórios e buscar as informações certas para colocar na tabela sem intervenção humana. Mas para tudo isso funcionar bem, as pessoas envolvidas no processo precisam saber falar a língua das máquinas.

Para achar os dados certos no relatório, a máquina precisa que eles sempre estejam num lugar previsível. Ou na primeira coluna de uma tabela, ou sempre depois da expressão “resultado mensal:”. Para falar com a máquina, você deve entender que ela é espetacular para realizar ações complexas desde que você entregue um padrão sólido para ela. Você pode automatizar inúmeras funções se for capaz de pensar no processo como um todo. Computador é pior que criança nesse ponto: precisa de rotina e regras claras para viver bem. Seres humanos tem a mania de fazer a mesma tarefa de formas diferentes a cada vez que fazem pela segurança que eles ou outros vão entender a lógica geral da coisa. Máquinas não falam essa língua. Elas precisam de padrões claros, repetição e principalmente, propósito.

Falar com a máquina é mais ou menos como ser chefe de um bando de pessoas muito burras e muito esforçadas. Elas vão fazer tudo o que você mandar no máximo de suas capacidades, mas você não pode esperar que elas resolvam sozinhas problemas diferentes dos que você as treinou para resolver. Das duas uma: ou você coloca essas pessoas num ambiente isolado de estímulos externos, ou você vai ter que estar sempre com elas para tomar decisões que fogem do escopo do que as disse para fazer. A mente humana não está fora desta equação por muito tempo ainda: alguém precisa programar a automação e criar os templates para as máquinas trabalharem, e alguém precisa estar atento para resolver problemas que as máquinas não foram criadas para resolver.

Então, a língua das máquinas, a língua do futuro… não deixa de ser a boa e velha habilidade de liderança. Com a diferença essencial de não precisar lidar com a emoção humana e eliminar quase toda criatividade “de chão de fábrica” que mantém esse mundo funcionando. Como não vai ser surpresa para ninguém, temos uma maioria de chefes pouco preparados na nossa economia, gente que não enxerga no futuro e não sabe se planejar. Quem costuma salvar esses chefes ruins são funcionários que se viram contra todas as possibilidades e improvisam soluções no seu trabalho do dia a dia. Máquinas não salvam chefes ruins. Máquinas só fazem o que foram mandadas fazer, mesmo quando parecem muito inteligentes.

Uma das maiores barreiras para o sucesso de chefes nos dias atuais é lidar com a complexidade emocional do ser humano: pessoas tem suas vidas, e suas vidas acabam influenciando sua capacidade de trabalhar. Um bom chefe sabe olhar para sua equipe e ir trabalhando os momentos de cada um. Isso exige uma inteligência emocional elevada, algo que não treinamos as pessoas para desenvolver. Mesmo chefes competentes no mercado que atuam sofrem com esse gerenciamento de pessoas. Máquinas retiram muito dessa pressão. Máquinas só exigem que você saiba falar a língua delas para dar as ordens corretas. A tendência é que as profissões do futuro exijam muito mais inteligência de comunicação com máquinas do que a emocional (eu sei que já escrevi que inteligência emocional não existe como algo quantificável, mas o termo explica bem a capacidade de usar empatia e experiência para se relacionar melhor com outras pessoas).

Se você acha isso bom ou ruim, neste exato momento não importa. Ainda existem muitos lugares onde você vai poder usar suas habilidades de comunicação com outras pessoas, mas que a tendência da humanidade é tirar as funções do corpo e passar para máquinas, é. E quem não aprender a pensar pela máquina (não necessariamente como uma máquina), não vai conseguir se manter relevante com o passar das décadas. Eu sugiro que você lendo este texto comece a treinar sua capacidade de organizar seus projetos em etapas, reduzindo trabalho desnecessário e diminuindo a necessidade de “descobrir na hora o que fazer”. A habilidade de concatenar ideias complexas em passos menores é a base da língua das máquinas. Cada linguagem de programação tem seus específicos, mas todas seguem uma base de lógica simples, passo a passo até chegar no resultado.

E por incrível que pareça, essa mentalidade robótica é uma das coisas que vai te tornar mais resiliente contra a mecanização e a automação: quando o seu trabalho é um trabalho de robô, repetindo tarefas sem pensar nelas e vivendo apenas no presente, um robô de verdade é muito mais eficiente que você. Somos muito inferiores quando tentamos lutar contra um robô no campo para o qual ele foi criado, mas temos um poder que nenhum deles deve ter por muito tempo ainda: o de traduzir a intenção e a visão do ser humano numa língua que as máquinas entendem. Sem a gente, elas não têm propósito. Somos os deuses das máquinas, por assim dizer. Só que essa relação não funciona se essas divindades não souberem se comunicar.

Eu já disse antes, repito: aprenda QUALQUER forma de programação. Nem que seja fazer uma macro no Word. Não é sobre conhecer os termos exatos, é sobre entender como funciona a “mente” de uma máquina e usar isso para que ela trabalhe por você. E se for muito chato para você (nada contra, pode ser mesmo), que tal começar a planejar melhor tarefas do seu dia a dia? Começar a fazer listas antes de ir para o supermercado já é um passo na direção certa. É pegar problemas complexos e dividi-los em partes pequenas. Você ainda é o dono do propósito, mas vai conseguir enxergar a realidade como uma máquina enxerga. Vai ter muita gente com a habilidade de escrever o código certo para cada máquina, mas quem sabe o que dizer para elas tem uma vantagem competitiva que vai durar por muito tempo ainda. Talvez até para sempre.

Robôs competem com robôs. Não seja um robô.

Para dizer que precisa de um robô para traduzir este texto, para dizer que sua profissão é imune porque nem mesmo um robô se rebaixaria a fazer isso, ou mesmo para dizer que a inteligência artificial vai roubar todos os empregos e se demitir em seguida: somir@desfavor.com

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Comments (8)

  • Cantarolando: “Ainda/Que eu falasse a língua dos homens/ E falasse a língua das máquinas/Sem programas/Eu nada seria…”

  • “Falar com a máquina é mais ou menos como ser chefe de um bando de pessoas muito burras e muito esforçadas. Elas vão fazer tudo o que você mandar no máximo de suas capacidades, mas você não pode esperar que elas resolvam sozinhas problemas diferentes dos que você as treinou para resolver”

    Parece eu tendo de explicar para um recém-chegado na empresa algum serviço ao qual esse novato ainda não está acostumado. O cara pode até ser bem inteligente e muito bom na execução da tarefa, mas na hora de mostrar pela primeiríssima vez o que e como fazer, eu procuro ser o mais didático possível, dizendo detalhadamente o passo-a-passo de toda e qualquer etapa que deve ser cumprida para que no final tudo fique bem feito. Entendo que tanto didatismo assim acabe sendo meio chato para alguns – tem até pessoas que se irritam e acham que as tomo por débeis mentais -, mas não quero que depois falem que fulano fez cagada porque EU não expliquei as coisas direito. Ao mesmo tempo, também não é todo mundo que tem os devidos conhecimento, tato e paciência para ensinar…

  • Só posso torcer pra que o sistema de renda mínima universal se torne realidade, senão vou morrer de fome. Sempre fui ruim em Exatas, não importa o quanto eu estudasse só passava raspando, além de que nessas coisas de programação qualquer vírgula errada buga tudo, não é? Meu cérebro é distraído demais pra reparar nesses detalhezinhos.

    • Embora seja verdade que uma vírgula errada costume quebrar um programa inteiro, boa parte dos programas no qual se escreve códigos hoje em dia consegue notar esses erros. Não é mais questão de memorizar o jeito certo de escrever, é entender o que cada coisa faz. E como eu disse, não é como se todo mundo precisasse virar programador, só entender essa lógica de máquinas: pequenos passos se unindo para fazer algo maior.

      • Em 2009 um dos programas ensinados para minha turma era a versão 5 do Delphi, que já destacava os erros dos códigos…

  • Até a arte pode acabar sendo automatizada mais cedo ou mais tarde, matando as esperanças dos românticos:
    http://digg.com/video/nvidia-ai-drawing
    é um vídeo sobre uma AI que pode fazer ilustrações realistas com base em rabiscos simples. O cara fez um risco vertical e a AI fez aparecer uma cachoeira, por exemplo.
    A única coisa que vai sobrar pro ser humano fazer é apertar botões, comer e dormir.

    • Por essa lógica, a criação da fotografia teria matado a arte também. Mas não matou, a arte mudou e começou a integrar essas coisas. Se a tarefa de desenhar uma paisagem realista fica muito fácil, sobra mais tempo para criar a personagem da peça. Ou mesmo transformar isso em animação. Máquinas ainda não tem intenção, e isso vai demorar para ser automatizado.

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