Regulação do mercado.

A notícia é recente: a Cloudflare decidiu terminar sua prestação de serviços para o site 8ch.net por motivos ideológicos. Segundo a gigante de infraestrutura de internet, o site abrigava e incentivava racistas responsáveis pelos tiroteios recentes nos EUA. Não houve ordem judicial, sequer recomendação oficial, a escolha foi puramente motivada pelos supostos valores dos executivos da empresa. Se você não percebeu o problema nisso, está na hora de abrir os olhos…

Mas eu provavelmente joguei um monte de informações na sua cabeça sem o devido cuidado. Cloudflare é uma megaempresa americana que fornece serviços de espelhamento e armazenamento de dados para os mais diversos sites ao redor do mundo. Um servidor só não costuma dar conta de sites com muito conteúdo e/ou muitos acessos, então os donos desses sites contratam a empresa para disponibilizar seu conteúdo em servidores muito rápidos ao redor do mundo. Outra coisa importante que eles fornecem é proteção contra ataques chamados DDoS, que podem derrubar um site em questão de minutos mandando muitos “acessos falsos” ao mesmo tempo.

Sites grandes precisam dessas coisas hoje em dia. Especialmente sites visados como a 8chan (sim, mais uma chan!) que estão cheios de inimigos tentando derrubá-los. Quando a Cloudflare retira os seus serviços da 8chan, o site fica lento, e mais importante: fica sem defesa contra os ataques DDoS. Em questão de minutos o site estava fora do ar. Acostumados com polêmicas e problemas, os administradores do site rapidamente acharam uma outra empresa chamada BitMitigate para prestar o mesmo serviço. A BitMitigate declarou que salvo ordem judicial, jamais censuraria um cliente.

E por alguns minutos, pareceu uma vitória da liberdade de expressão! O problema é que desde o começo, isso tinha sido uma ação coordenada por lacradores do Twitter, que queriam derrubar a 8chan por causa dos tiroteios (mesmo sem provas de nada) e foram pressionar todas as empresas envolvidas na manutenção do site. Como os administradores da 8chan estão pouco se lixando para as turbas enfurecidas do Twitter, eles precisaram ir mais fundo. Ao perceber que a Cloudflare oferecia os serviços de proteção do site, pressionaram a provedora. Cloudflare cede na hora. Quando os lacradores percebem que a nova provedora dos serviços, a BitMitigate, não iria amarelar, começam a cavar mais fundo.

Descobrem que a empresa alugava equipamentos de infraestrutura de outra chamada Voxility. E a Voxility era suscetível à pressão: depois de pressionados pelos valorosos guerreiros de Twitter, a empresa cancela seus contratos com a BitMitigate. A 8chan estava sem proteção de novo. Mas agora, era ainda pior: os donos dos cabos da internet estavam tomando ações diretas para derrubar o site. Até este momento, a 8chan está fora do ar na maior parte do tempo, sem previsão de retorno à normalidade.

Eu vou pular boa parte mitologia ao redor da 8chan, vamos só estabelecer melhor quem eles são: quando a 4chan (a maior de todas) resolveu apagar o fórum político deles por estar de saco cheio dos problemas que ele causava, um grupo liderado por um deficiente físico com o hilário apelido de HotWheels decidiu criar seu próprio site, livre de ingerências e pânicos de administradores da 4chan. Nascia a 8chan. Com o tempo, o fórum de política da 4chan voltou, mas eles preferiram ficar na sua casinha, afinal, para a 8chan, a 4chan é muito lacradora… sim, esse é o nível.

Longe de mim dizer que o público médio da 8chan é flor que se cheire. A parcela mais radical de incels e cia. tende a se encontrar por lá, mas não é exatamente uma célula terrorista de nazistas como o grupo de linchamento do Twitter está pintando. Como em todo grupo, tem seus malucos violentos. E até para não deixar isso sem menção: dos dois tiroteios recentes nos EUA que causaram essa comoção toda, um foi feito por um radical de direita da 8chan, e o outro por um da Antifa (o movimento radical e violento dos lacradores). Mas ninguém está tentando derrubar os servidores do Twitter… curioso, não?

O ponto aqui é o seguinte: a Cloudflare abriu um precedente. Informaram para o mundo todo que fornecem seus serviços para aquele com os quais concordam. Abriram mão de isonomia profissional e assumiram um lado numa disputa cultural. Não me incomoda que uma empresa privada escolha para quem vai fornecer seus serviços, mas ela e a Voxility quebraram uma lógica do mercado que perdurava há décadas na internet: se não é ilegal no país onde está hospedado, não deve ser derrubado. O dono da infraestrutura da internet se comprometia a não fiscalizar seu conteúdo de acordo com seus gostos e valores pessoais, só fornecia o serviço no limite da legalidade.

Para quem ainda está meio aéreo sobre o que realmente está acontecendo aqui, vamos dar um exemplo bem simples: é mais ou menos como se a Vivo ou a Claro resolvessem cancelar seu plano de celular porque você criticou muito o Lula na internet. A Justiça não pediu, a Polícia não pediu, só um grupo muito chato de ativistas ficou pentelhando a empresa no Twitter. Nem eu que sou eu visito a 8chan, porque acho um povo meio descompensado demais para os meus gostos, mas não tem nada mais ilegal por lá do que no Facebook ou mesmo no Twitter. Em qualquer comunidade de pessoas grande o suficiente, surgem criminosos.

Grandes empresas com grandes estruturas físicas de servidores e cabeamento podem deixar seus usuários fazerem quaisquer aberrações e não serem ameaçadas por cortes surpresa de fornecimento de serviços. Quem não tiver os bilhões necessários para formar essa rede de segurança passa a ficar sob vigilância estreita de justiceiros de Twitter. Toda aquela história de tentar censurar um canal de YouTube que mencionei recentemente causou tanto estrago que os lacradores se animaram: dá para derrubar adversários políticos dando chilique na internet. Não é mais boicote, é destruir organizações adversárias retirando-as da rede.

E convenhamos, a estratégia é perfeita: durante décadas, todos nós financiamos o crescimento dessas gigantes da internet com nossos acessos e mensalidades. Eles conseguiram os bilhões necessários para ter poder quase que absoluto sobre a internet sob a falsa promessa de neutralidade. Todos nós deixamos a internet se tornar um oligopólio com uma barreira de entrada impossível para qualquer um vindo de fora. E agora que um grupo ideológico bem definido enfiou as garras profundamente na mentalidade dessas empresas, eles podem ditar o que é permitido ou não independentemente do governo. Não precisa cometer crime para ser derrubado, basta discordar. E isso já está feito. A não ser que Amazon, Apple ou Microsoft surjam como heróis da liberdade de expressão, a guerra cultural acaba de ser vencida pelos lacradores de Twitter.

Google, Facebook e agora a Cloudflare já decidiram de que lado estão. Tornaram-se abertamente políticas. São gigantes praticamente inalcançáveis por novos concorrentes, que já usaram o dinheiro conquistado na fase de crescimento às custas de todos para construir esse muro. Eu sei que soa como alarmismo, afinal, cidadão médio não está nem aí para nada disso e nunca vai formar um pensamento muito coerente na vida, mas quem controla a internet controla o meio pelo qual praticamente todos os formadores de opinião da sociedade moderna atuam.

Já estávamos flertando com censura corporativa há alguns anos, mas este fato recente faz tudo escalar para um (pouco) admirável mundo novo. O governo vai perdendo poder para corporações, e as posições no topo delas que podem definir que tipo de discurso pode ou não pode ser usado na internet. Outro diretor na Cloudflare poderia ter simplesmente ignorado a gritaria no Twitter e nada do que eu estou dizendo aqui teria acontecido. Eles se tornam cada vez mais importantes, e eles não são eleitos. Meu lado liberalista não me deixa mentir: tudo bem que empresas privadas possam agir de forma livre dentro da lei, o mercado se regularia por oferta e demanda. Mas as leis que regem o mercado não valem da mesma forma num oligopólio como esse, um concorrente quase surgiu para pegar o cliente, mas ele foi derrubado pelos mesmos motivos ideológicos.

Ou exigimos mais controle do governo sobre essas empresas, ou é melhor começar a comprar umas ações ordinárias dessas gigantes da internet, essa pode ser a única democracia que teremos no futuro.

Para dizer que vai comprar uma arma no WalMart para protestar, para dizer que a fala do Trump sobre os games é pior ainda, ou mesmo para dizer que enquanto não for algo que te incomode pessoalmente, está ótimo: somir@desfavor.com

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Comments (8)

  • Ou exigimos mais controle do governo sobre essas empresas, ou é melhor começar a comprar umas ações ordinárias dessas gigantes da internet, essa pode ser a única democracia que teremos no futuro.

    Elon Musk fez isso comprando o Twitter e o transformando no X.com. Os lacradores odiaram e a Liga Antidifamação (uma das associações cooptadas pela onda lacradora) passaram a tomar o Twitter como alvo. Musk teve um prejuízo grande em termos financeiros com a plataforma que está difícil de recuperar, mas a plataforma sobrevive, apesar de tudo.

    Houve experimentos como o Koo (bancado por uma empresa baseada na Índia) e o Threads (capitaneado pelo Facebook), mas esses ao menos por enquanto não se mostraram substitutos perfeitos pro Twitter, a despeito do trabalho do Musk ter trazido sérios problemas pra turminha lacradora.

    De qualquer forma, essa turma continua espalhando suas pós-verdades com a complacência do Facebook e do Google, que em nome do dinheiro fazem vistas grossas pra muitas patifarias.

  • Não é por valores éticos dos executivos da empresa. É por medo de ter de prestar contas pra polícia ou até mesmo pro senado norte-americano, tipo aconteceu com o Mark Zuckerberg.

  • O futuro que se desenha é de uma tenebrosa censura não-governamental. Duas soluções (ambas bem pouco) possíveis: ou as pessoas tentam eleger ao redor do mundo parlamentos e chefes de executivo que se importem com isso e trabalhem pra desmantelar esse esquema, ou menos provável, alguém decida gastar seus bilhões em montar um sistema independente que não ceda a essas pressões desses patrulhadores de twitter.

    Mas aí você pensa: “porra, o cara vai meter quantias astronômicas de dinheiro em uma rede independente de servidores pra incel ter fórum onde se encontrar?”…só que o ponto aqui é: depois de derrotados esses radicais, alguém toma o lugar deles na “escala SJW de quem é de extrema-direita”. E mais pra frente, qualquer coisa que não se curvar aos absurdos ideológicos dessa turminha vai ser derrubado.

    • Pena que o McAfee não tenha tanto dinheiro quanto alardeia, ele poderia financiar essa estrutura. Kim Dotcom, coitado, foi esmagado pela indústria do entretenimento e direitos autorais antes mesmo de ter chance de ser execrado por defender liberdade de expressão. Com dinheiro, ele faria isso.

  • Então aquela tese daquele anônimo que falou que mulheres e gays vão destruir a sociedade estava certa?? Lamentável.

    “A não ser que Amazon, Apple ou Microsoft surjam como heróis da liberdade de expressão” Aposto uma grana que nem você acredita nisso… Apesar de me inclinar economicamente pro liberalismo, gosto daquele meme que tem a famosa cobra sendo pisada por um pé gigante tatuado com logos de grandes corporações e a legenda “at least it’s not the government”, reflete bastante os tempos atuais.
    Apesar do setor de marketing das empresas ser infestado de progressistas que fazem parecer que a adolescente genérica do Twitter representa todo o mundo, ou toda a clientela de um nicho, existe muito empresário realmente mal-intencionado por aí que não é “ingênuo”, só está navegando pela narrativa dominante pra conseguir coisas muito maiores que curtidas na página da empresa na internet.

    • Eu acredito que as grandes empresas seguem o dinheiro. Só nos resta ver o tamanho do mercado corporativo para quem não quer lidar com turba de linchamento virtual a cada passo. Uma hora a conta chega…

  • Caro usuário, sua SmartFridge está bloqueada por tempo indeterminado após detectar um discurso de ódio contra alienígenas transexuais ontem, xx/xx/20xx, por volta das 8:30 da noite, no local mesa de jantar.

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