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Daqui pra frente…

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| Sally | | 52 comentários em Daqui pra frente…

Lembra de todos os avisos que demos sobre os perigos do Coronavírus no Brasil? Lembra do quanto batemos na tecla que não tinha que ter carnaval? Lembra de como escolhemos deixar o blog maçante e repetitivo falando dia após dia sobre Covid-19, para tentar ao máximo conscientizar todos os que nos seguem?

Pois é. Esse trem já partiu. Agora estamos em uma nova etapa: como lidar com aquelas pessoas do nosso convívio que não nos escutaram e estão começando a enterrar entes queridos?

Estou escutando uma pá de merda desde que comecei a minha jornada para tentar alertar sobre o que me parecia ser verdadeiro a respeito do Coronavírus. Não é muito comum me ver levantando uma bandeira, na maior parte das vezes sou a favor do “se fode aí”. Mas, ao contrário de outras doenças, como HIV, o Covid-19 não mata apenas o idiota que se arrisca, e sim inocentes que estão à sua volta: pais, filhos, amigos, colegas de trabalho, etc. Justamente por isso abracei a causa e estou enchendo o saco das pessoas, por aqui e por outros meios, sobre a merda que estava por vir.

Obviamente, fui severamente desacreditada. Até aí, tudo bem, que bom que as pessoas têm opiniões próprias, ninguém é obrigado a aderir à opinião de ninguém. A questão que me traz ao questionamento de hoje passa pelo respeito: muita gente desacreditou debochando, me chamando de histérica, de burra, de lunática e de coisas piores. Em público inclusive. Sugeriram que eu estava sendo manipulada por um “governo de esquerda”, que eu estava “tendo prazer em causar pânico” e coisas ainda piores.

O mundo é redondo e dá voltas. Estou vendo, gradativamente, familiares e amigos dessas pessoas que foram agressivas em público adoecendo e morrendo. Já foi o pai de um, a mãe de outra. E aí eu pergunto, e é uma pergunta real e não retórica: como agir perante essas pessoas?

É óbvio que não devemos apontar para a pessoa e rir, tal qual Nelson, dos Simpsons. Esse mínimo de verniz social eu tenho. Mas, como dar condolências a uma pessoa à qual você avisou exaustivamente que poderia matar seu pai, quando ela de fato contaminou e matou seu pai? Finge que nunca disse nada? Aborda o assunto e lamenta que tenha acontecido? Simplesmente não dá condolências? Não tenho modos para saber como me portar. Alguém, por favor, me aconselha?

Criou-se um cheiro de merda forte em muitas relações interpessoais minhas por causa disso, que eu sinceramente não sei como dissipar. Óbvio que a culpa da morte dessas pessoas não é minha, mas deve ser inevitável que fique algum ressentimento de quem alertou: se ninguém tivesse falado nada, a pessoa que contaminou poderia ter maior paz de consciência e se consolar com o argumento de que ela não sabia e não poderia prever esse resultado.

A partir do momento que alguém mete o dedo na ferida e prevê esse resultado repetidas vezes, a pessoa perde esse refúgio. Sim, ela sabia. Sim, ela tinha ao menos uma pista de que essa era uma, em meio a outras possibilidade. Isso a responsabiliza de alguma forma pela morte de um ente querido e talvez seja algo imperdoável. Carregar essa dor/culpa para sempre é algo que muitos de nós podemos ter causado ou vir a causar nessas pessoas. Muito natural que passem a desgostar da gente em vez de fazer uma autocrítica.

Quando você tira da pessoa o escudo da negação, ela fica sem proteção e isso dói. Obviamente não foi feito por maldade, foi feito para tentar evitar uma tragédia. Uma vez instaurada a tragédia, a pessoa se vê obrigada a lidar com ela sem nenhuma proteção, o que eu imagino, deixe o processo muito mais doloroso. É possível levar adiante uma amizade depois disso?

E trago essa questão aqui pois sei que quem ainda lê o Desfavor comunga da minha opinião sobre Coronavírus (ou então é masoquista, pois faz mais de um mês que eu só marreto nessa tecla): tem que se proteger e proteger as pessoas que a gente goste, por mais que a gente ache que, de alguma forma, possa não ser tão grave, certeza ninguém tem, então, na dúvida, buscamos preservar a vida das pessoas amadas.

Na dúvida, vamos ser adultinhos e preparar nossa própria comida em vez de pedir delivery, uma vez que não sabemos quem preparou aquela comida nem em que condições. Na dúvida, vamos pedir compras em casa se for possível, pois sabemos que ir ao supermercado é se expor a um risco extra. Na dúvida, não vamos a salões de beleza, lojas no geral nem saímos à rua, a não ser que seja caso de incêndio ou para levar alguém ao hospital. Quem, na dúvida, fizer o contrário, se colocará em risco e colocando em risco as pessoas que os cercam. É muito simples e claro: se for possível, não tem que sair de casa.

Saídas eletivas (ou seja, aquelas que poderiam ter sido evitadas encontrando outra solução), são um risco. Hoje não acontece nada, amanhã não acontece nada, mas, pela lei da probabilidade, está cada vez mais perto o momento em que pode acontecer. O vírus não mata só idosos e pessoas com condições preexistentes. O vírus mutou e hoje é muito mais democrático. O vírus não morre com o calor. Descartem tudo que vocês leram nos nossos primeiros textos sobre o assunto, pois, como avisamos nos próprios textos, as condições de contágio e o dano causado podem mudar do dia para a noite.

E quando falo de saídas eletivas, me refiro a qualquer saída não essencial, sem a qual a pessoa não pode viver. Você pode viver com raiz do cabelo por fazer, com unha cagada ou sem determinado biscoito que gosta muito. Obviamente, para assegurar esse cuidado maior, todos estamos abrindo mão de algum grau de conforto, mas é isso o que tem que ser feito, para que depois não carreguemos o fardo da morte de uma pessoa querida, sem o escudo do “mas eu não sabia”.

Nós sabemos. Nós temos consciência. Usemos informação para o que ela serve: para nos beneficiar. “Mas Sally, a Globo mente”. Sim, meu anjo, mas não é só a Globo que está noticiando caos, colapso, corpos em frigoríficos, famílias tendo que enterrar seus entes queridos por falta de coveiro, familiares mortos em casa que não podem ser removidos por excesso de demanda, recusa em atendimento a hospitais, corpos se acumulando em corredor de hospital e em necrotério e tantas outras barbaridades. São todos os veículos de comunicação.

Todos mentem? Os médicos que dão depoimentos desesperados no Brasil mentem? Os infectologistas também? Os hospitais? A OMS? TODO MUNDO está mentindo? Francamente, quando para sustentar uma narrativa você precisa colocar defeito em TODO MUNDO, tem alguma coisa errada com você. É como aquelas pessoas encrenqueiras que brigam com todo mundo e dizem que todos a perseguem. Quando o erro está em todo mundo, é muito mais provável que ele esteja em você. Hora de cair na real. Não é possível que todo mundo esteja mentindo.

“Mas Sally, na minha cidade não tem nenhum caso”. Que bom, meu anjo. Vamos torcer muito para que continue assim, mas essa é uma exceção. A regra é que se trata de um vírus extremamente contagioso, que varreu o mundo inteiro. Afetou de forma devastadora cidades muito ricas e bem aparelhadas. Então, pela regra, vai chegar em você em algum momento. Vamos torcer pela exceção, mas, desculpa te informar, no geral, é a regra o que acontece.

Daqui pra frente, será necessário, além de pensar em cuidar de você e das pessoas que você gosta, também é preciso pensar em como abordar quem se fodeu. Acredito que você, assim como eu, também tentou alertar muitas pessoas. Dessas muitas pessoas, provavelmente uma parcela não te deu bola e ainda debochou, te escrotizou, te ridicularizou. Quando a pessoa criou esse clima bélico, como você vai se posicionar quando essa pessoa perder um ente querido? Novamente, não é pergunta retórica, eu não tenho a resposta. Estou pensando e evitando entrar em contato com aqueles que estão passando por isso.

O tempo da conscientização acabou. Quem nós conseguimos alcançar, que bom. Quem não, vai aprender quando uma pessoa próxima morrer. Sinto informar, mas aos olhos da ciência (a menos, é claro, que todos estejam mentindo), quem mora no Brasil terá ao menos um conhecido ou pessoa próxima morta pelo Covid-19. E essa vai ser a conscientização daqueles que não entenderam no amor. Infelizmente virá pela dor. Minha consciência está tranquila, fiz tudo que estava ao meu alcance para evitar.

Eu penduro minhas chuteiras. Não vou mais conscientizar ninguém. Se vierem com discurso de negação, apenas peço para não falar mais no assunto comigo, como de fato já fiz diversas vezes. Esse trem já partiu. A realidade já está batendo à porta, não preciso mais me esforçar, e nem adiantaria – quem não escuta a realidade não vai escutar minhas palavras.

Recomendo que façam o mesmo. Entreguem para o aprendizado da vida, os tempos de conscientização acabaram. Como eu disse, tem gente que só vai entender quando levar um choque de realidade e morrer uma pessoa querida.

Agora cabe a nós começar a refletir como lidar com isso. Como acolher essas pessoas (ou não). Como abordar uma tragédia que você anunciou sem parecer um arauto da desgraça, sem felipenetar o outro. Já pensei bastante e não tenho a resposta, por isso resolvi trazer a reflexão para os comentários, pois sempre surgem boas ideias em retorno. O tema é azedo e desagradável, mas é preciso conversar sobre ele.

Da mesma forma que não é didático chutar cachorro morto, também não é didático passar a mão na cabeça de quem merdou feio. Onde está esse meio termo para não escrotizar o colega, mas para ajudá-lo a entender o equívoco, de modo a que ele vire aprendizado e não se repita, de modo a evitar que mais pessoas morram por causa da negação alheia?

Já escutei de algumas pessoas que o melhor é “se afastar, pois não vale a pena uma amizade com uma pessoa burra”. Porém, não acredito que isso faça da pessoa uma “burra”. Todos nós, em algum momento, quando o calo aperta, caímos na armadilha da negação. É uma atitude pontual burra, apenas. Uma pessoa é muito mais do que uma atitude. Se fossemos virar as costas para todos os que erram, ninguém seria amigo de ninguém. Eu, inclusive, não teria amigos, pois erro o tempo todo.

Mas também não dá para fingir que nada aconteceu. Uma coisa muito grave aconteceu, pelo fato da pessoa ter teimado em achar que estava certa e, na dúvida, não ter tomado as precauções que deveria, não ter sacrificado parte do seu conforto, seus desejos e seu bem-estar para fazer o que tinha que ser feito. É egoísmo, é negação, é um erro muito cruel que tem que servir como aprendizado para que isso não se repita.

No mínimo, essas pessoas precisam entender o grande déficit que elas têm em calcular as consequências futuras dos seus atos. Seria muito bacana para a pessoa corrigir isso, pois assim ela tomaria menos no cu. Desarmar mecanismo de negação, desarmar mecanismos de autossabotagem ou qualquer outra armadilha que leve a pessoa a esses cálculos errados sobre a consequência dos seus atos pode mudar significativamente a vida de uma pessoa. Muitas vezes é isso que diferencia um profissional de sucesso de um desempregado, de um pai divorciado que vê o filho de vez em quando para uma família feliz ou até uma pessoa viva de uma pessoa morta.

Então, não é sobre tripudiar dos nossos amigos. É sobre colaborar, dentro das nossas possibilidades, para que essa vivência dolorosa se converta também em um aprendizado e deixe de ser apenas um trauma doloroso. Porém, a linha entre o tripudiar e ajudar no aprendizado é tênue demais para que uma pessoa sem paciência com eu a perceba ou sequer a respeite.

Deixo a pergunta no ar, responde nos comentários quem quiser: como se portar diante das pessoas que você alertou, mas que, ainda assim, te escrotizaram e negaram a realidade, entraram em clima de confronto com você e que agora enterram entes queridos?

Para dizer que tem que tripudiar sim e que isso faz parte do aprendizado pela dor, para dizer que não tem que dizer nada pois a vida ensina ou ainda para dizer que o mais seguro é enviar uma carta anônima: sally@desfavor.com


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