Plataforma furada.

É tanta coisa acontecendo no Brasil que pouca gente falou sobre o que aconteceu ontem, dia 28: o governo americano lançou uma ordem executiva fechando o cerco sobre redes sociais que fazem checagem de fatos em postagens. Sim, é o Trump brigando com o Twitter, mas provavelmente sem querer, o presidente americano forçou um debate que precisávamos ter faz muito tempo…

Para te situar melhor, Trump estava escrevendo suas maluquices habituais no Twitter, como faz dezenas de vezes por dia. A da vez colocava em dúvida o sistema de voto por correio (muito comum nos EUA) num tom conspiratório. O Twitter foi lá e colocou embaixo da postagem de Trump um link chamativo explicando o sistema e sugerindo que a informação do presidente estava incorreta. Trump ficou muito irritado, a decisão da rede social dividiu opiniões e até mesmo o CEO do Twitter, Jack Dorsey, postou assumindo a responsabilidade pela decisão.

Trump prometeu que isso não ficaria assim, o que nos leva a essa decisão executiva. Não dá para fingir que não é o presidente americano atacando uma empresa privada por não gostar do que fez com ele, porque nem o texto oficial consegue disfarçar isso, falando explicitamente sobre o Twitter. Dentre outras coisas, sugere até que o governo reveja o quanto está gastando com publicidade nas redes sociais. É uma retaliação evidente.

Porém, no meio da criancice de Trump, há um argumento poderoso que pode ter muito mais impacto nas redes sociais como um todo: Twitter, Facebook, YouTube só existem até os dias atuais por gozarem de uma proteção legal contra o conteúdo que terceiros postam em seus sites. Se você tem milhões de usuários publicando tudo quanto é tipo de material na sua plataforma, é óbvio que a cada momento vai ter conteúdo ilegal nos seus servidores. Ilegal como em vídeos de execuções, pedofilia, venda de drogas, mas ilegal também como em quebra de direitos autorais.

E na prática, apesar de todos os problemas com a primeira categoria de ilegalidades, são as questões de direitos autorais que realmente ameaçam a existência de uma rede social: cidadão não está nem aí, pirateia, adapta e publica conteúdo pago de graça na internet como se não tivesse amanhã. Você pode argumentar se é justo ou não, você pode ser pró ou contra pirataria especialmente em países pobres, mas a lei continua existindo. Uma empresa não pode “apagar a conta” ou “fazer um fake” para escapar do problema, toma multas gigantescas mesmo.

O YouTube esteve prestes a ser fechado uns 10 anos atrás por causa de uma ação gigantesca de uma empresa de mídia. Os usuários do site subiam vídeos deles, e para a empresa, era como se o YouTube fosse o responsável por isso: estava lucrando com o conteúdo deles sem pagar. Para a sorte do site, outras grandes produtoras começaram a notar o potencial do site para divulgar suas obras e o clima virou o suficiente para o YouTube lançar um sistema automatizado de busca por conteúdo com direitos autorais e escapar de multas bilionárias.

E ali, a ideia que protege as redes sociais hoje foi plantada: sites como YouTube, Facebook e Twitter são plataformas de conteúdo, não publicadores. Você não pode culpar a casa pelo o que a pessoa faz dentro dela. Desde que as redes sociais tenham ferramentas para eliminar conteúdo ilegal e demonstrem trabalhar ativamente nisso, estão imunes a tomar processos por causa de seus usuários. Sim, estamos falando dos EUA, se fosse no Brasil cada juiz decidiria de um jeito e seria impossível manter os sites funcionando.

Agora, se você é a plataforma e não o publicador, presume-se que você não é autor do conteúdo que disponibiliza. A rede social renuncia à responsabilidade pelo conteúdo, certo? Então, como unir essa ideia à checagem de fatos? O argumento de Trump é que a partir do momento que você decide colocar um aviso numa postagens dizendo que ela não é verdadeira, você está cruzando a linha entre plataforma e publicador. Claro, se a cúpula do Twitter fosse de direita ao invés de esquerda, Trump jamais se preocuparia com isso, aposto que aplaudiria checagem de fatos nos seus desafetos, mas não é só porque sabemos que é mesquinharia do presidente americano que vamos ignorar o que ele colocou em discussão.

O argumento que o Twitter e outras redes sociais são empresas privadas e podem fazer o que bem entender com o conteúdo postado nelas é válido, claro. Quem está pagando a conta de servidor para publicar e armazenar as frequentes insanidades de Trump é o Twitter. O Twitter deveria ter o direito de fazer o que bem entender com os dados que foram entregues a ele, especialmente considerando que os termos de serviço da plataforma que precisam ser aceitos para começar a utilizá-la dizem isso. Os dados são do Twitter.

Mas numa visão estritamente de livre mercado, qualquer outra empresa pode provar que eles estão ganhando dinheiro com anúncios exibidos sobre conteúdo que fere seus direitos autorais. O que impede a Disney de processar o Twitter por bilhões de dólares senão a proteção legal de ser considerado plataforma e não ter responsabilidade direta sobre o que seus usuários postam? Destruir as redes sociais com processos seria uma péssima estratégia para os criadores de conteúdo, mas é uma escolha mesmo assim sem a proteção legal.

O Twitter e as outras redes sociais são empresas privadas sim, pagam para manter os serviços funcionando do próprio bolso, mas não estão 100% desconectadas do poder público. Sem a segurança que um juiz mandaria pastar quem viesse as processar por quebra de direitos autorais, a maioria não estaria funcionando hoje. Aquele processo contra o YouTube foi essencial para permitir a internet como conhecemos hoje.

Então, se o poder público decide por neutralidade na hora de proteger as redes sociais, as redes sociais não deveriam pagar de volta com neutralidade na hora de analisar o conteúdo postado nelas? Ou ela diz que não é responsável pelo o que está postado, ou faz a curadoria do conteúdo, não existe um meio termo. Até porque conteúdo evidentemente ilegal tem que ser apagado de qualquer jeito. Já existem provisões para isso: se o Facebook é avisado sobre uma postagem de pedofilia, por exemplo, é obrigado a apagar. Não é escolha deles seguir a lei, é obrigação, como para todos. E até na parte dos direitos autorais, existem leis que definem o que pode ou não utilizado, no caso americano, existem limites de quantos segundos de um conteúdo podem ser utilizados, a intenção (uma crítica ou paródia evitam que o conteúdo seja derrubado) e várias outras formas de definir o que é legal ou não.

Não é como se a moderação do Twitter tivesse que tomar decisões complexas sobre o que pode ou não ser apagado: existem leis para definir que tipo de conteúdo é ilegal, basta seguir. Mas até agora, as redes sociais fizeram mais do que isso, começaram a adicionar novas regras sobre o tipo de conteúdo permitido nas plataformas. E aí, mesmo conteúdo que não é ilegal começou a ser eliminado. Começou com um foco em discursos de ódio, mas com o tempo a definição foi ficando mais e mais ampla para acomodar as óbvias tendências políticas da maioria dos funcionários dessas empresas. Dentro de Google, Facebook e Twitter, há uma quase unanimidade ideológica.

O que, pelo ângulo da liberdade de uma empresa privada, não é problema, mas que merece discussão quando falamos de empresas privadas que só existem por causa de proteções legais baseadas em liberdade de expressão. O entendimento legal sobre a responsabilidade da empresa sobre o conteúdo existe para tirar gigantes da mídia do pescoço das redes sociais, mas elas evoluem para uma curadoria cada vez mais estrita sobre o conteúdo que pode ser publicado? Se vai colocar um aviso no post do Trump, não quer dizer que está lendo e tomando decisões sobre todos os outros também? Ou é só no post do Trump? Porque se for só no dele, isso fere as leis de liberdade de expressão americanas.

Não dá para dizer que é questão de bom senso, postagem a postagem. Você não pode olhar para meia dúzia de perfis e ignorar o resto, ou a empresa tem uma política global, ou está atacando uma pessoa em específico. Sim, eu sei que o Trump só fala bobagem e boa parte da sua turma defende as ideias mais bizarras possíveis, mas se o Twitter quer ser uma plataforma e não um produtor de conteúdo, tem que engolir muito sapo. Sem contar que na prática, se você estiver do lado político dos funcionários do Twitter, pode falar qualquer insanidade sem medo de repercussão negativa. Oras, estão agindo como se fossem publicadores. Direito deles ter um posicionamento político, mas isso quebra o distanciamento necessário para protegê-los de processos por postagens de conteúdo ilegal e quebra de direitos autorais.

É triste que esse discussão exista por causa da infantilidade de Trump, mas que bom que ela tenha aparecido, finalmente. Fake News são uma praga no mundo moderno, checagem de fatos é um caminho aceitável, mas isso não funciona se for feito de forma partidária. Não é que o Twitter aceita quase tudo o que postam por ser neutro, é que não tem equipe ou atenção suficiente para moderar todo o conteúdo. Pode apostar que boa parte da equipe dessa e de outras redes sociais adoraria ditar o que é conteúdo aceitável na internet, só não conseguem lidar com o volume imenso de conteúdo publicado diariamente. O problema é que a inteligência artificial está avançando rapidamente, e até mesmo a sua segurança por obscuridade pode ser impactada num futuro próximo.

Redes sociais se tornam gigantes na nossa realidade, praças públicas que podem decidir quem tem voz ou não. É tudo uma questão de quanto permitimos que elas gozem de liberdades de empresas privadas ao mesmo tempo que se apropriam da comunicação pública da humanidade. Estamos na adolescência da era da comunicação, é tudo muito confuso e os hormônios estão à flor da pele. Nem sei se quero que Trump vença essa batalha contra o Twitter, afinal, o que ele e boa parte de seus defensores americanos ou brasileiros querem mesmo é liberdade de expressão para eles e censura para os adversários.

Mas que essa batalha precisa ser travada, precisa. Ou você é plataforma, ou é produtor de conteúdo. Não misture as coisas.

Para dizer que eu sou fascista por querer direitos iguais, para dizer que eu sou comunista por não deixar empresas fazerem o que quiserem, ou mesmo para dizer que torce para que os dois se matem: somir@desfavor.com

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Comments (14)

  • E no final das contas, é o sonho dos acionistas (e não dos funcionários ativistas) de Google e todas as outras redes sociais: vídeos de banho de Nutella. Os anunciantes pagam sem medo e não dá nenhuma polêmica. Idiocracia, aí vamos nós.

  • Fazer um artigo porque uma plataforma simplesmente coloca um link com informações adicionais e confundir isso com intervenção indevida é dose. O discernimento é do indivíduo que está lendo: se tiver a capacidade de refletir sobre o que leu, talvez consulte a informação. Caso contrário, não. Logo, não sei pra que tanta preocupação, como se censura fosse.

    • Millôr disse melhor que eu jamais poderia dizer: “democracia é quando eu mando em você, ditadura é quando você manda em mim”.

      O mundo dá voltas. Uma legislação que permite que uma entidade privada goze de liberdades de uma entidade pública pode ser excelente quando a entidade privada reflete opiniões nossas. Mas é uma brecha perigosa para o dia que ela não refletir mais. Liberdade de expressão só funciona quando ninguém está 100% satisfeito. Por isso, mantenho que a discussão é válida.

  • o Q seria de mim sem o desfavor , estou no século passado. Vc já fez algum texto sobre a China ? Como eles lidam com as redes sociais ? É realmente comunismo/socialismo? Será q será o futuro dos outros países esse tipo de governo ? É tanta informação q fico desinformada.

  • Vale a mesma divisão para jornalismo e comentário político. Jornalismo deve apurar fatos e descrevê-los de maneira isenta. Comentário político deve ser feito com clareza de quem está falando e qual posição defende. Na prática, temos assessorias de imprensa travestidas de jornalismo. Se for apurar fake news nesse jornalismo blogueirinho de hoje em dia, cai tudo.

  • Tecnocracia é furada, alguém vai estar programando a IA pra julgar com determinados valores tais ações ou caracteristicas, e as pessoas não vão questionar porque o santificado computador central sabe o que é melhor pra nós. Expectativa: Shadowrun. Realidade: Demolition Man + 1984.
    Cada palavrão que tu falar vai ser uma multa, todo mundo vestindo e comendo as mesmas coisas, lendo e assistindo as mesmas coisas, vivendo em blocos de apartamentos iguais, só uma ou duas marcas vão existir e haverá termo de consentimento com carimbo e duas vias pra transar. Que saco, hein!

    • O grau de depravação de um ser humano esterilizado dessa forma vai alcançar níveis absurdos. Eu torceria muito por realidade virtual poderosa se isso acontecer, porque se for para extravasar em algum lugar, que não seja em outras pessoas…

  • Sobre a tal guerra cultural, uma parte de mim pensa que provavelmente haverá uma ressurgência de regimes autoritários, como o fascismo, outra parte pensa que o extremismo de ambos os lados é muito anti-humano para ter apoio de pessoas comuns e as elites provavelmente vão dar uma freada. Honestamente não sei.

    • A questão aqui é que tipo de regime autoritário funciona no século XXI? Talvez a única experiência realmente moderna de ditadura seja na China, e mesmo assim, nem é um exemplo de começar uma do zero, e sim de se adaptar com o passar dos anos.

      Que tem muita gente querendo que seu grupo controle totalmente quem pensa diferente, tem, mas não parece que alguém chegou à conclusão de como fazer direito ainda.

      • “The perfect dictatorship would have the appearance of a democracy, but would basically be a prison without walls in which the prisoners would not even dream of escaping. It would essentially be a system of slavery where, through consumption and entertainment, the slaves would love their servitudes.” (Huxley)

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