Skip to main content

Colunas

Arquivos

Tempo passado.

Tempo passado.

| Somir | | 17 comentários em Tempo passado.

Fiquei realmente em dúvida se falava disso agora ou esperava para ver se viraria tema no sábado. O caso da menina de 10 anos grávida de seu estuprador que teve que passar por um show de horrores para fazer o aborto deu muito o que falar nos últimos dias, e apesar dos pesares, teve um final no mínimo adequado (considerando o Brasil). Foi bom ver boa parte da sociedade enfrentando o fanatismo religioso e saber que pelo menos dessa vez, a lei venceu a insanidade. Mas dessa notícia surgiu uma estatística que me fez mudar o foco do que escreveria e quem sabe, ainda manter o tema em aberto para o final de semana.

Dados oficiais dizem que em média acontecem seis abortos nas mesmas condições todos os dias no Brasil. Vamos deixar mais claro: todo dia no Brasil, seis meninas entre 10 e 14 anos fazem o procedimento para terminar uma gravidez por terem sido estupradas. Esse é o número que passa pelo governo, registrado no SUS. Uma porcentagem desses casos pode ser explicada pelo fato da idade de consentimento no Brasil definir que sexo com menores de 14 anos é invariavelmente estupro, mas considerando o perfil médio de quem comete esse tipo de crime – parentes ou amigos da família já adultos – não dá para botar essa na conta da sexualização precoce.

Daqui, podemos seguir por dois caminhos. O primeiro é dizer que esses ativistas cristãos que foram chamar uma criança correndo risco de vida de assassina na porta do hospital não são consistentes nem na sua escrotidão: tentaram atrapalhar um, mas só neste ano, deixaram passar mais de 1.300 abortos parecidos, vai ver que o deus deles só contabiliza os que passam na TV… mas era de se esperar, não é um povo que preza pela lógica: ativista pró-vida defendendo uma gravidez de altíssimo risco para uma criança não é um momento brilhante do conservadorismo brasileiro. Não é nem o mérito do aborto em si, se não fosse uma gravidez obviamente perigosa para a menina até teria uma margem de manobra aqui. Mas foi uma besteira tão grande que um país 96% cristão (dados antigos, deve ser até mais hoje em dia) não ficou do lado deles.

O que nos leva ao segundo caminho: se tem seis meninas passando por abortos resultantes de estupros num país 96% cristão, quem está violentando-as? Quase sempre esses casos vêm de famílias pobres (a estatística é do SUS), e podem apostar que nessa faixa de renda o número de ateus tende a zero. Essa fé maravilhosa que vai fazer alarde na frente de hospital em nome da vida é a mesma que queima no coração de quem estupra essas meninas. Estou chamando todos os cristãos de estupradores? Claro que não. Mas é a partir daqui que eu mudo o foco.

Num texto que começa com a estatística de abortos de crianças e pré-adolescentes, não há necessidade alguma de ver o lado positivo. Vamos continuar afundando: esse tipo de prevalência de abusos contra menores é comum em países muito pobres. Não que ricos sejam imunes ao comportamento, com certeza não são, mas quando você vê os dados de países como Brasil, Índia e boa parte das nações do sul asiático e África, começa a perceber esse padrão. São histórias e mais histórias de meninas sofrendo em casa e muitas outras sendo vendidas para prostituição…

Existe sim uma área cinza em relação ao instinto sexual humano e o que consideramos idades aceitáveis de consentimento, nem tanto tempo atrás assim uma menina em qualquer país do mundo ficava em casa até o começo da puberdade e era basicamente vendida para um pretendente. Em 1920, não seria nada de chamar tanta atenção assim uma garota ter seu primeiro filho aos 13 anos de idade na imensa maioria do mundo, inclusive em países ricos. Talvez uma preocupação maior com a gravidez, mas tantas mulheres morriam no parto mesmo… boa parte do que consideramos aceitável hoje em dia é resultado de uma evolução recente na forma de tratar a vida sexual dos jovens, especialmente as mulheres.

Foi meio de surpresa para boa parte do mundo, mas idades de consentimento foram subindo consideravelmente, primeiro em países mais desenvolvidos, e depois nos mais pobres (ou teimosos). Conseguimos estabelecer uma ideia inovadora de dar mais tempo para as pessoas se educarem e entender sua função na sociedade antes de esperar que tivessem um monte de filhos. A coisa avançou tanto que em muitos países a taxa de reposição não é mais atingida: morre mais gente que nasce. Como eu disse no texto da semana passada, até mesmo a ideia de casar e ter filhos começou a se perder.

Se deixar só na conta do bicho humano, o lance é fazer filho o mais rápido possível. Mas assim como conseguimos avançar em diversas outras áreas antes, o século passado veio para cimentar mais uma vitória da humanidade sobre o instinto básico. O cidadão humano não deveria mais ficar preso a essa mentalidade e entender que existem muitos benefícios em deixar adolescentes em paz na questão reprodutiva, e talvez nem pressionar tanto assim para que deixem descendentes. Tem gente demais no mundo, não?

Pois bem, esse é um papo muito bacana, mas agora eu começo a amarrar tudo de volta: você que lê um texto desse tamanho e consegue acompanhar o raciocínio faz parte da mesma minoria que eu. A minoria das pessoas que ganharam o passaporte para o século XXI. De alguma forma, você teve a oportunidade de fazer parte da evolução que tivemos no último século, seja por uma criação por pessoas mais educadas, seja por esforço pessoal e oportunidades de desenvolvimento geradas pela internet. O importante aqui é entender que quando falamos de diferenças sociais, muitas vezes estamos falando de um vão temporal entre o mundo que privilegiados como nós vivenciam e o tempo no qual vivem boa parte dos mais pobres e menos educados desse mundo.

Pelo menos intelectualmente, viagem no tempo existe. Boa parte da humanidade viva hoje em dia está num período de tempo que uma minoria privilegiada já deixou há várias décadas. E quando casos como os da menina que ganhou as manchetes nos últimos dia surgem, é isso que muitos de nós estamos vendo. O choque de ver gente “em preto e branco”. Fica explícito no conservadorismo bizarro e insensível dos manifestantes contra o aborto, mas é muito pior: a menina e o estuprador também estavam presos nesse mundo atrasado. Durante toda a história tivemos pessoas horríveis que abusavam de crianças e mesmo aceitando a teoria de deslocamento temporal da mente, não o exime de culpa alguma, que fique claro. Mas ter isso em mente nos ajuda a entender o número de casos que acontecem diariamente. Seis abortos do tipo por dia, isso com certeza presume um número absurdamente maior de abusos.

Quanta gente vive presa numa realidade que não exige evolução mental? A humanidade moderna exige um grau de maturidade “teórica” que parece inalcançável para boa parte das pessoas. Há 100 anos atrás, talvez não fizesse tanta diferença: casava cedo, tinha um monte de filhos e era forçado a tomar conta de uma casa sob o risco constante de perder tudo. A humanidade tinha um atalho para a maturidade, e era dentro de um contexto bem específico. As coisas mudaram nesse acordo social numa velocidade alucinante para a maioria desprovida de oportunidades, e de repente, o pobre coitado recebe a missão de agir como se tivesse feito parte desse processo todo.

Não fez. Está com uma noção instintiva do que deve fazer e nenhum sistema que o controle. De repente, presumimos que todo mundo entendeu que não fazemos mais sexo com meninas de 11 anos e que criamos leis melhores que as das religiões da antiguidade e fomos embora discutir quantos gêneros existem mesmo. Uma pena que tenha sido através do sofrimento dessa menina, mas são histórias como essa que ajudam a botar os dois pés no chão e lembrar como tem coisa muito escrota para resolver ainda. A menina é uma coitada que deve ser protegida, o estuprador é um coitado também, mas um que não pode ser perdoado. A merda está feita.

E é aqui que eu volto aos cristãos. Sem querer, eles entendem essa questão temporal. Como religiões são especialistas em ficar paradas no tempo, não é à toa que o discurso delas seduza uma porcentagem tão grande dos miseráveis do mundo. É o que ainda faz sentido. Essa gente bem arrumada falando de direitos humanos, ressocialização e liberdades pessoais poderia muito bem estar falando aramaico para a maior parte da população humana. Se a sua mente mal saiu do século XIX, é praticamente impossível te explicar os novos padrões de comportamento humano. Não é só explicar por que aborto é uma questão de saúde pública, é explicar o que são direitos humanos, é explicar por que saúde pública é importante, é explicar que as leis modernas funcionam melhor para gerar qualidade de vida… e torcer para a pessoa ter alguma coisa na memória que corrobore com isso. Boa sorte falando de Estado para quem toma esculacho da polícia e demora seis meses para marcar consulta médica…

A religião consegue se manter relevante justamente porque não evolui. Ela está sempre alinhada com o menor denominador comum da humanidade. Eu sempre achei que religião era a causa dessa doença do atraso mental, mas agora começo a perceber que é o sintoma da doença da desigualdade. Talvez tivesse outro papel há séculos atrás, mas hoje é isso o que representa. Uma ferida aberta na iluminação humana do último século. É claro que ela não poderia perder força, de uma certa forma, é… um grito de socorro. E quanto mais a desigualdade cresce, mais alto fica esse grito desesperado de quem ficou pra trás e não entende o que diabos deve fazer para fazer parte do mundo moderno.

Todo esse discurso conservador que vemos crescer no Brasil começa a fazer mais sentido: é a realização que foram embora sem eles. Aliás, em muitos casos isso é dito com todas as letras em frases do tipo “rejeite a modernidade”. Estava embaixo dos nossos narizes. E o movimento ganha tanta força porque a velocidade da mudança aumenta demais com a internet. Percebam que eu tomei um certo cuidado para não chamar conservador de burro, porque muitos dos exercem poder sobre essa massa “fora de tempo” sabem muito bem como explorar o mercado disponível. Uma parcela considerável está enxergando essa diferença brutal entre a parcela de população que conseguiu absorver a loucura de mudanças de mentalidade do século XX e as que não chegaram lá ainda.

E pelo visto, o grosso das populações pobres desse mundo sequer consegue perceber onde a coisa está azedando. Só sentem, pelo clima, que algo está errado. Percebem que tem gente discutindo as conclusões de ideias cujas premissas nunca ouviram falar, e obviamente se incomodam. A desigualdade tem um preço, e por incrível que pareça, o preço não é a quantidade de absurdos como as estatísticas horríveis que eu citei, isso é humanidade fazendo o que sempre fez num mundo que perdeu os mecanismos de controle com os quais sempre contou. O preço é perceber que quando falamos de coisas que consideramos direitos básicos, uma grande maioria não tenha a menor ideia sobre o que estamos falando.

O mundo foi remodelado para gente que acha errado engravidar uma menina de 10 anos, mas não explicaram direito para a maioria o porquê. Mesmo que eu acredite que a maioria dos brasileiros não ache abusar de uma criança algo certo, o diabo está nos detalhes: a discussão foi sobre o aborto. A lei do presente venceu dessa vez, mas se o processo de “distanciamento temporal” entre as mentes de alguns privilegiados e a grande maioria perdida no passado continuar acelerando (e aqui entra boa parte da culpa dos lacradores), o diálogo se torna impossível e o caminho de menor resistência sempre vai a estagnação.

Seis abortos de menores de 14 anos por dia no SUS. Essa é a maioria, não necessariamente pessoas ruins, mas pessoas com outro padrão do que configura humanidade, e nenhuma previsão de quando vão vir para o mesmo tempo que nós.

Para dizer que eu tornei o caso ainda pior, para dizer que eu estou passando a mão na cabeça de bandido (se você souber ler nas entrelinhas, vai perceber algo muito diferente), ou mesmo para dizer que é tudo culpa do funk: somir@desfavor.com

Comentários (17)

Deixe um comentário para Lica Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado.