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Urinoterapia

Urinoterapia

| Sally | | 40 comentários em Urinoterapia

Para comemorar o feriado nacional do Desfavor, o Dia de Sísifo, uma ode à inutilidade, escolhemos fazer uma semana temática falando das terapias que são a maior perda de tempo. Vou abrir em grande estilo, baixando o nível, afinal, meus textos não são conhecidos por sua finesse: urinoterapia.

Correndo o risco de me repetir no que eu disse no texto de ontem, quero deixar claro que ao refutarmos qualquer terapia alternativa, não se trata da nossa opinião. Quando falamos de ciência, opinião não importa. Se você acredita ou não em algo, o método científico vai prová-lo ou refutá-lo independente da sua crença. Opinião, crença, uma experiência pessoal, tudo isso é irrelevante para a ciência.

O que diz se algo é eficaz ou não, à luz da ciência, são estudos sérios, com duplo cego (um grupo que efetivamente testa a substância e outro que, sem saber, testa um placebo), estudo revisado pelos pares, estudo publicado em uma revista científica séria. O que você pensa, o que deu certo para a amiga da sua prima, o que alguém acha sobre isso pouco importa. Ciência não dá margem para opinião.

Dito isto, vamos ao tema de hoje, que é fascinante. Por algum motivo que não me entra na cabeça, há um grupo de pessoas que acredita ser uma boa ideia ingerir a própria urina e que isso seria a cura para diversas doenças: desde problemas menores como resfriados, alergias e queimaduras até coisas mais sérias como câncer, HIV, esclerose múltipla e doenças autoimunes.

Provar que é bom, nada. Nunca conseguiram publicar um estudo científico, nos moldes que eu descrevi como um estudo sério, mostrando qualquer benefício desta prática. Mas, sabemos que obscurantismo é tendência e está ressurgindo com tudo, então, mesmo sem provas, basta revestir a prática com o manto da pertinência e da conspiração que mais e mais pessoas aderem.

Se você entende um mínimo de funcionamento do corpo humano, sabe que aquilo que não é aproveitado, não é útil ou até é nocivo, é excretado. A urina é, basicamente, água com aquilo que o nosso corpo não absorveu. Por algum motivo que foge ao bom-senso, tem gente que acha produtivo recolocar para dentro aquilo que o corpo descartou. Meus queridos, nem deveria ser necessário entrar na questão da ciência refutar a eficácia, as pessoas estão bebendo mijo! Isso parece mentalmente são para você?

Vamos olhar de perto e entender como nasce o nosso xixi. A coisa funciona mais ou menos assim no nosso corpo: o sangue passa pelo fígado, onde as toxinas, células mortas e vários outros resíduos são removidos e eliminados. Depois, esses resíduos vão para os rins, onde o excesso de fluidos e de moléculas solúveis (papo técnico: nitrogênio, vitaminas, minerais, proteínas, anticorpos e outros metabólitos) são extraídos e transferidos para a bexiga, onde ficam aguardando para serem evacuados.

Com isso não quero dizer apenas que o conteúdo da urina é o lixo que nosso corpo produz. Neste trajeto e neste ambiente onde o corpo armazena e excreta a urina encontramos também colônias de bactérias. Portanto, a urina, mesmo depois que deixa o corpo, não é um líquido estéril. Então, além de beber o lixo do corpo, quem faz urinoterapia também ingere bactérias.

Ter bactérias dentro do nosso corpo não é necessariamente ruim, temos bactérias que nos ajudam muito, principalmente no intestino, porém, é muito bacana conviver com elas assim: no lugar onde elas pertencem. Ingeri-las e levá-las para a boca, para o estômago ou para a corrente sanguínea não é uma boa ideia.

Em tese, essas pessoas lunáticas alegam que a urina seria rica em substâncias benéficas para o corpo. Spoiler: se fossem tão boas, não estariam sendo descartadas. É um misto de ignorância com arrogância: você não sabe melhor do que o seu corpo do que ele precisa. Seu corpo sabe melhor do que você. E o que ele não precisa ele põe para fora. O que ele precisa ele absorve.

Um argumento muito usado para defender esta prática escatológica é que ela seria “milenar”. Foi praticada há mais de cinco mil anos, bla, bla, bla. Isso, para mim, deveria ser argumento contra. Alegar que é bom trazer uma prática da época em que as pessoas tinham expectativa de vida de 30 anos de idade não me parece nem um pouco inteligente.

A medicina surgiu quando foi possível comprovar a eficácia dos tratamentos. Antes disso, era curandeirismo. Durante séculos práticas extremamente prejudiciais foram aplicadas, achando que se estava fazendo o melhor para o paciente, justamente pela falta de ferramentas para comprovar o resultado do “tratamento”. Então, não venha me dizer que por ser praticado por séculos algo é bom. É bom quando, à luz da ciência, estudos sérios comprovam resultados.

Se o fato de ter sido praticado por muito tempo avaliza qualquer tratamento, então vamos voltar a fazer sangrias nas pessoas? Foi uma prática aplicada por séculos e hoje sabemos que não ajuda e ainda faz mal. Cortar uma pessoa doente e deixar ela perder meio litro de sangue não tem benefício algum. Que tal trazer de volta a indução de vômito? Suadouros? Ingestão de mercúrio e arsênico? Todos eles têm anos e mais anos de tradição.

Quando a ciência começou a testar esses métodos “milenares”, muitos foram abandonados, pois se descobriu que não proporcionavam nenhuma melhora, muito pelo contrário, muitas vezes colocavam em risco a vida do paciente. Então, o que faziam no Egito antigo não me interessa, me interessa falar do que a ciência provou que funciona. E não é que a urinoterapia não consegue provar que funciona, a ciência já comprovou que ela não funciona.

Vocês podem estar rindo, mas estima-se que cerca de 3 milhões de pessoas no mundo bebam a própria urina todos os dias. Em alguns países, pasmem, isso não é uma completa aberração. Calma que piora: para vencer a resistência (mais do que natural) de beber dejetos do próprio corpo, os adeptos dessa prática recomendam que não se use mais o termo “urina” e sim “água da vida”. Obviamente me recuso terminantemente a participar dessa demência, e vou continuar chamando de urina, se não mijo.

A ideia dos adeptos da urinoterapia seria convencer a pessoa de que “xixi é um soro pessoal que recompõe as perdas nutricionais sofridas pelo organismo.” Repitam comigo: O BRASIL ODEIA A CIÊNCIA! Mijo não faz você “perder” nutrientes, urina descarta aquilo de que o corpo não precisa!

Li e vi muitos depoimentos de pessoas que garantem infinitas melhoras em seu corpo depois de aderir à urinoterapia, principalmente no que diz respeito à um corpo mais saudável, relatando inclusive perda de peso. Fazem até umas fotos antes/depois, para impactar leigos e desavisados. Aí você vai estudar essa desgraça mais a fundo e descobre que para que a pessoa comece a urinoterapia se recomenda que ela faça uma dieta vegetariana e com alimentos crus por 15 dias antes de tomar seu primeiro shot de mijo.

Não fica difícil perceber que uma pessoa que passa a se alimentar de vegetais crus vai emagrecer, bebendo ou não sua urina. Se era uma pessoa que comia alimentos processados (e quem não come?), uma dieta mais saudável vai trazer mudanças ao organismo, não importa que você beba mijo, coma merda ou se vista de tartaruga e dance Macarena.

Em tese, essa “terapia” teria diferentes graus de comprometimento, que os adeptos chamam de “modalidades”. E, importante ressaltar, o que vou escrever nos próximos parágrafos não é piada. Pode rir, mas saiba que estas modalidades são divulgadas como tratamentos benéficos, todas juntas ou algumas delas. Beber mijo é só a ponta do iceberg.

Na primeira modalidade, você deve beber a primeira urina do dia. Sim, péssimo, mas acredite, as outras são piores. Na segunda modalidade, você deve beber urina várias vezes ao dia “seguindo suas próprias vontades de consumo líquido”, ou seja, se sentiu sede, tem que beber mijo. Na terceira modalidade, é jejum completo e você vai “nutrir” seu corpo apenas com urina, ou seja, não come nada, apenas bebe mijo o dia todo. Sim, eu sei, você pode estar se perguntando o que é pior do que isso. Leia o próximo parágrafo e vai descobrir. Ou então seja gentil com você mesmo e pule o próximo parágrafo, para não perder a fé na humanidade.

No quarto estágio desta jornada amarela você deve “ungir o corpo inteiro com a urina, principalmente: rosto, cabeça, pescoço e pés”. Olha, nem bicho faz isso. Mano, estão mandando a pessoa se cobrir de mijo! No quinto estágio você deve “embebecer panos com urina e fazer compressas em regiões acometidas por tumores, bolhas, feridas, picadas, queimaduras e inchaços”. Agora não basta mais se cobrir de mijo, é preciso fazer compressas com ele. Não, obrigada, deixa o tumor ali mesmo, morro, mas morro digna e higiênica. Finalmente, o último estágio, o apogeu do mijo: “Tomar banhos de imersão em água misturada à urina que foi eliminada nas últimas 8 a 9 horas”. ESSAS PESSOAS QUEREM QUE VOCÊ FIQUE MARINANDO NO MIJO!

Obviamente médicos e cientistas sérios surtam quando são confrontados com uma coisa dessas. Pasmem, se deram ao trabalho de fazer estudos para refutar algo que quadrúpedes tem a decência de não fazer. Estudos comprovaram que urina ou ureia não ajudam em nada pacientes com câncer, seja ingerindo, seja fazendo compressas no tumor.

A nutrição também deu seu parecer: não há qualquer benefício comprovado, muito pelo contrário, pode te fazer mal. Ao ingerir a própria urina, mijá-la e ingeri-la novamente sucessivas vezes, você coloca para dentro um líquido cada vez mais concentrado que pode causar danos sérios ao organismo.

Nem para mitos da sabedoria popular a urina serve. Até o clássico fazer xixi em uma queimadura provocada por uma água-viva é contraproducente. Mijar em cima da picada de uma água-viva não ajuda, porque o sódio da urina pode reativar os nematócitos (milhares de pequenas agulhas venenosas que são liberadas na picada) e piorar a dor, enquanto as bactérias presentes na sua urina ganham uma viagem gratuita para dentro da sua corrente sanguínea. Não faça.

A coisa é tão séria que nem como último recurso a urina serve. Qualquer manual de sobrevivência decente e estudos científicos afirmam que nem em um estado de necessidade imperioso, como estar perdido na selva, você deve beber sua própria urina, pois ela contém sódio e vai fazer com que você desidrate mais rápido. Se você estiver em uma situação de vida ou morte, seu corpo tentará conservar tanta água quanto puder. Beber sua própria urina seria tão prejudicial quanto beber água do mar, só que muito mais indigno. Se você não beber nada, vai viver mais tempo.

Seria o caso de nos perguntarmos por qual motivo essa maravilha amarela que supostamente cura doenças para as quais não há cura (como câncer, esclerose múltipla, HIV e doenças autoimunes) não está sendo amplamente utilizada.

Quem responde são os médicos homeopatas (uma das principais vozes é uma energúmena chamada Martha Christy) que são os levantadores desta bandeira dourada: segundo eles, “a comunidade médica está conspirando para manter a urinoterapia em segredo, para poder continuar te vendendo remédios caros”.

Reparem que este é sempre o argumento de qualquer estelionato científico. Sempre. SEMPRE. É sempre uma conspiração da indústria malvada dos remédios. Eu não sei qual é o grau de retardo mental e desempoderamento que alguém tem que ter para achar que ele venceu uma conspiração de toda a indústria médica e farmacêutica do mundo e alcançou uma verdade que os demais seres humanos ainda não descobriram. É muita necessidade de se sentir especial!

Vocês têm noção de que cientistas do mundo que poderiam estar pesquisando a cura do câncer se deram ao trabalho de fazer pesquisas para refutar que BEBER MIJO não é bom? O ser humano falhou, ele merece ser exterminado do planeta. Precisar gastar tempo e recursos para provar o óbvio, algo quem nem animais irracionais fazem.

E, obviamente, quem defende a urinoterapia jamais conseguiu publicar um estudo científico, com duplo cego, revisado pelos pares e publicado em uma revista científica com credibilidade. Por qual motivo será? Talvez por esta aberração não ter benefício algum. Talvez pelo fato de que quem tem algum apreço à ciência NÃO BEBE O PRÓPRIO MIJO!

Defender uma “terapia” sem prova científica é mais do que charlatanismo, é irresponsabilidade. Você não sabe o que isso pode causar às pessoas. “Ain Sally, mas eu fiz e comigo funcionou”. Primeiro, nunca mais me dirija a palavra, seu bafo de mijo. Segundo, o efeito placebo é poderoso, ele funciona em muitos casos.

Só que para isso, meu anjo, você não precisava ter bebido mijo. Podia ter criado uma alegoria menos desagradável, como abraçar um cobertor mágico, rezar para o unicórnio que peida arco-íris ou cantar Shimbalaiê para o pôr do sol. Só por ter “dado certo” com você, floquinho de neve amarelo e especial, não quer dizer que não possa causar sérios danos ao organismo de outras pessoas. Você não é o centro do universo. “Dar certo” com você não é aval para recomendar aos outros.

“Ain, mas se a ciência ainda não encontrou um remédio eficiente para a doença, não custa dar uma chance”. Olha o absurdo: por não existir cura, isso avaliza dar uma falsa esperança para um doente. NÃO. Se eu adoecer quero saber exatamente quanto tempo me resta, para poder aproveitá-lo da forma que eu achar melhor e fazer tudo que acho importante antes de morrer. Não quero uma falsa esperança, não quero perder a minha dignidade e a minha higiene.

Então, vamos ter um pingo de ética e responsabilidade: antes de divulgar qualquer “terapia”, façam estudos científicos como manda o protocolo e, só depois, ao obter provas concretas, à luz da ciência, de benefícios para a saúde humana, divulguem. Recomendar uma terapia qualquer antes disso é falta de caráter, de ética, é criminoso.

Não acredito que estou escrevendo isso, mas faz parte da rotina de quem tem um blog maluco: em hipótese alguma bebam o próprio mijo.

Para dizer que está chocado com o número de adeptos da urionoterapia, para dizer que o ser humano está involuindo ou ainda para dizer que não vai demorar até as pessoas começarem a comer merda: sally@desfavor.com

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