Desigualdade intelectual.

Muito se fala, e com razão, do aumento da desigualdade social no mundo. Ricos cada vez mais ricos afastando-se a passos largos de boa parte da população humana, encastelados em suas megacorporações, algumas maiores que a economia de muitos países. Mas esse não é o único movimento de separação entre grupos humanos, há algo ainda mais assustador acontecendo: uma separação cada vez maior entre o nível intelectual das pessoas.

Eu não me canso de repetir que passamos por um divisor de águas na história humana com a popularização da internet, principalmente porque quanto mais o tempo passa, mais e mais pessoas vão precisar ser lembradas que até o final dos anos 90 o mundo era muito diferente. Não diferente “as pessoas usavam roupas engraçadas e escutavam música vergonhosa”, diferente no sentido de ser outra era da humanidade.

Eu adoraria ver uma pessoa inteligente que nasceu depois da virada do milênio passar uma semana nos anos 80, por exemplo. Não por bobagens saudosistas de mostrar como as coisas eram melhores ou por “elitismo etário” de dizer que tudo é muito fácil hoje em dia, não… eu queria ver a reação sincera de alguém com curiosidade e costume de ter acesso a quase todo conhecimento humano na palma da mão o dia inteiro lidando com um mundo que não está conectado.

Eu sou uma pessoa razoavelmente inteligente com uma família próxima que valoriza muito educação e conhecimento. Eu não tenho filhos, mas eu tenho contato com adolescentes e jovens bem acima da média nacional, e posso afirmar: ano por ano, estão todos muito acima do nível que eu estava na idade deles. Eu era uma criança das cavernas em comparação. Não por falta de massa cinzenta, isso provavelmente é constante na humanidade há milênios, mas o acesso à informação já é algo absurdamente diferente no espaço de uma geração.

Acho importante falar disso antes de desenvolver melhor o tema: estou falando de pessoas razoavelmente inteligentes com acesso à informação porque essa é a comparação válida aqui. Não adianta pegar o Isaac Newton de 1670, comparar com um cantor sertanejo de 2020 e dizer que éramos muito mais inteligentes alguns séculos atrás. Eu mesmo seria um semirretardado em comparação, oras. Temos que equiparar o equiparável.

Quando eu digo que as pessoas de hoje são mais inteligentes, é uma questão de realização de potencial, ainda estamos comparando pessoas com mais ou menos o mesmo interesse pelo desenvolvimento intelectual. Hoje e há décadas atrás, o padrão são pessoas que simplesmente não foram criadas para valorizar conhecimento e pensamento crítico. Mas o padrão não é uma prisão, hoje ou no tempo de Newton, sempre existem pessoas que conseguem ir além dessa mediocridade.

E o mundo de 2020 é terreno extremamente fértil para o crescimento intelectual de quem realmente estiver interessado. Não só o conteúdo acumulado do conhecimento humano está disponível de forma instantânea pela internet, como de uma forma muito mais palatável também. Não precisa começar a sua viagem pela física quântica com um texto técnico cheio de fórmulas, pode ver um vídeo de YouTube com uma pessoa simpática explicando as coisas com ilustrações e analogias. Pode se aprofundar com aulas online das maiores universidades do mundo, pode encontrar algum especialista e trocar mensagens imediatamente.

Na prática, isso quer dizer que desde que você tenha a curiosidade e a condição financeira mínima de utilizar a internet, praticamente toda a informação do mundo está ao seu alcance de forma bem simples. Parece e é muito positivo, mas tem algo nas entrelinhas. Sempre houve uma demanda por conhecimento na humanidade. Pode ser no meio de um castelo da realeza britânica ou num barraco numa favela indiana, sempre tem alguém que só precisa da oportunidade.

Historicamente, a oportunidade estava quase que totalmente nas mãos daqueles que já nasciam em famílias mais abastadas e/ou próximos de centros de conhecimento como cidades com grandes universidades. A demanda surgia e morria em outros ambientes. Sim, gente que se interessa por aprender mais e exercitar a inteligência não é maioria, mas essas pessoas estão lá. O mundo e a tecnologia precisavam alcançá-las, e a cada dia que passa, isso acontece em mais e mais lugares.

Talvez a proporção de gente querendo explorar sua inteligência e o cidadão médio não tenha mudado muito nesses últimos séculos, mas o número dos que conseguem aumenta exponencialmente. Fique feliz porque mais pessoas capacitadas vão começar a trabalhar nos mais diversos campos de conhecimento, mas se preocupe com a separação crescente. Quem realmente quer aprender e tem condições para isso avança numa velocidade absurda perto do resto das pessoas.

Falta de oportunidades de aprendizado mantinham a humanidade mais ou menos homogênea. Tem um limite do que sua força de vontade pode conquistar se suas interações sociais são com pessoas medianas e a única biblioteca disponível está longe, mal equipada e com livros desatualizados. A internet abre quase todas as portas que impediam o avanço de quem tinha potencial de desenvolver sua inteligência. Nem precisa mais querer tanto assim, basta ficar curioso.

E é aí que as coisas começam a se complicar. O abismo entre as pessoas que conseguem desenvolver o cérebro e as que não conseguem vai aumentando dia após dia. Preparem-se para a afirmação polêmica: desigualdade intelectual tem mais influência no cenário sociopolítico e cultural de 2020 que até mesmo a desigualdade econômica. Sim, os ricos cada vez mais ricos não são um bom prognóstico, mas uma separação muito grande entre inteligentes e medianos arrisca quebrar a estrutura social como nada visto anteriormente.

E já vemos isso. Eu escrevi num texto recente que hoje em dia temos os burros mais inteligentes da história. De direita ou esquerda, lacradores ou conservadores, quando esse povo erra, erra com um grau de refinamento impressionante. Não é mais acusar a pessoa de bruxa porque ela tem uma pinta na cara, é passear por conspirações incríveis envolvendo ciências exatas e sociais para tirar conclusões absurdas, mas que ao mesmo tempo parecem complexas o suficiente para serem verdade. E por que eu estou dizendo isso? Simples: quem disse que ser mais inteligente te faz uma pessoa melhor para o mundo? Ninguém erra de forma mais espetacular que uma pessoa inteligente.

É muito verdade que essa coisa de direita e esquerda e guerra cultural são coisas de uma parcela reduzida da população. O cidadão médio continua trabalhando para conseguir a refeição do dia e não tem tempo para essa masturbação mental toda tão popular na internet e grandes mídias em geral. Muito se fala de lacradores e conservadores vivendo numa bolha onde se acham oprimidos, é diretora de empresa dizendo que sofre com o patriarcado, é cristão dizendo que está sendo perseguido… parecem cada vez mais dissociados da realidade. Por que será que isso acontece?

Redes sociais e fóruns de internet não são vida real, mas são os lugares onde naturalmente se esperaria a congregação de pessoas que conseguiram realizar pelo menos um pouco do seu potencial intelectual. E como cada vez mais pessoas conseguem desenvolver inteligência acima da média, o volume desses grupos que erram espetacularmente como só pessoas inteligentes conseguem errar não para de aumentar.

Mas a gente já fala bastante aqui sobre guerra cultural, que tal olharmos para quem está ficando para trás? Quando o lacrador reclama da estupidez do conservador, está pensando numa maioria de dinossauros que ainda nem entenderam que mulher precisa sair de casa para trabalhar. Quando o conservador se enfurece com a burrice do lacrador, está visualizando uma adolescente fazendo um vídeo contra o Bolsonaro ou o Trump só por atenção. Formam-se grupos muito críticos da visão política um do outro, mas na verdade eles estão furiosos mesmo é com o povão, com a maioria de pessoas que ontem, hoje e provavelmente sempre vão ter pouco ou nenhum interesse em nada mais complexo do que prazeres momentâneos.

Eu sei que é polêmico, mas vale a pena pensar nisso: será que no final das contas todo esse clima de animosidade e divisão cultural não é baseado num número recorde de pessoas olhando para o cidadão médio e percebendo que esse povo não está nem aí para quase tudo com o que elas se importam? É frustrante mesmo. “Como essa gente não percebe que as coisas podem ser melhores?”.

Mas talvez falte a experiência. A humanidade não lida com essas diferenças de intelecto desenvolvido há muito tempo. Era só uma elite intelectual que quase sempre era elite econômica também, mas inteligência democratizou demais com o acesso à informação. Novamente, ser inteligente significa processar mais informações por vez e por consequência ter mais curiosidade, e não que a pessoa vá tomar boas decisões ou agir de forma positiva para o mundo em geral. Muita gente foi alçada ao mesmo tempo a uma espécie de classe média intelectual com a internet, e como conhecimento não é recurso finito, a maioria pode continuar acumulando, até que um dia olhem ao redor e não se reconheçam mais entre a maioria das pessoas.

E aí, tal qual conquistadores diante de povos indígenas, comecem a considerar que não tem problema desumanizar essa massa simplória. Não te chama atenção que esquerda e direita costumem sempre se mover em direção do autoritarismo? Claro, sempre pelo bem da população. Para proteger minorias ou para fazer valer a vontade da maioria, todos pedem mais controle sobre o povo que não sabe o que faz.

É a desigualdade intelectual agindo. A diferença entre classe social desumaniza o mais pobre sim, mas numa escala muito menor que a intelectual desumaniza o cidadão mediano. E com o aumento da mecanização e da utilização de inteligência artificial, vamos ver o espaço entre os que desenvolvem sua inteligência e os que continuam no padrão ficar cada vez maior. Muita gente vai perder a capacidade de funcionar na sociedade, enquanto um grupo crescente de inteligentes mal guiados vai continuar acumulando poder e aumentando o grau de ressentimento com esse humano “desatualizado”.

E a tendência é que quem já está preparado para acumular conhecimento e processar mais informações continue evoluindo numa velocidade cada vez mais inalcançável para quem não tem as mesmas oportunidades. Se você está lendo este texto, provavelmente já está no barco que não vai afundar (inclusive se estiver discordando de tudo), mas preste atenção ao seu redor, as coisas estão acelerando nesse sentido, e pode ser que muita gente que você conhece agora fique presa numa espécie de idade da pedra intelectual sem chance de retorno em questão de uma ou duas décadas.

Espero estar errado, aliás, espero estar espetacularmente errado, mas eu estou sentindo que eventualmente o mundo vai parar de melhorar para uma grande parcela da população. Ou você está do lado “certo” da desigualdade intelectual, ou as coisas tendem a piorar, e muito.

Para dizer que não entendeu porra nenhuma e está com medo (pode ser que eu seja maluco mesmo), para dizer que ainda não sabe lidar com “burros mais inteligentes da história”, ou mesmo para dizer que agora entendeu a crítica da semana temática (todos odeiam pobres): somir@desfavor.com

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Comments (20)

  • SarahSummersXX

    Um texto burro cuja espinha dorsal é a eterna falsa equivalência.

    Cristão dizer que sofre perseguição é pau no cu.

    Agora, tem muita mulher que sofre um bocado com muito maxo babaca, principalmente com maxo empoderado.

    pondera sua birra instintiva com a esquerda.

    • Na verdade eu estou ponderando o que diabos você está tentando falar, a cada frase faz menos sentido. Falsa equivalência do quê? Dos cristãos? Ou a frase não é relacionada? E qual a conexão do “maxo empoderado”? Tem conexão? Onde entra a birra com a esquerda? Por que ela é instintiva? Argh! Meu cérebro vai derreter.

      Eu não sabia que comentários podiam ter um AVC até agora.

  • É por causa de textos assim que eu gosto tanto do Desfavor! Acho admirável essa capacidade que o Somir tem de nos fazer pensar em coisas que estavam debaixo de nossos narizes o tempo todo, mas sobre as quais não costumamos pensar muito, ainda mais sob o ponto de vista abrangente e completamente fora do comum que ele apresenta. Acesso à informação hoje em dia é fácil; o difícil é saber o que fazer com essa informação. E a perspectiva para um futuro nem tão distante, infelizmente, é sombria. Uma pequena “casta” de pessoas mais desenvolvidas intelectualmente “governando” uma sociedade rachada que sequer se dá conta disso. Ao mesmo tempo, enquanto o povão vive uma realidade cruel em que a “frescura” de pensar vale pouco na luta selvagem pela sobrevivência, grupos de “privilegiados” mentalmente, com ideologias opostas, ficam ensimesmados em suas respectivas bolhas e se digladiam sem parar pelo “sagrado direito” de tentar salvar esse mesmo povão de si próprio.

    • Duas bolhas que se convencem a cada dia que o certo mesmo é tirar os direitos do povão “pelo seu próprio bem”.

  • A medida que fui lendo o texto, pensei, “poxa, Somir, tu é tão esperançoso de dizer que a humanidade tem mais conhecimento que antigamente! Até porque, o que vejo de gente ficando cada vez mais imbecil aí com seus iPads nas mãos, olha…”, mas daí fui lendo mais e percebi o ponto que tu queria chegar. Continuo achando um pouco esperançoso, mas ainda assim, dá medo o que informação e conhecimento pode fazer se cair nas mãos erradas. Elas são poder, de fato, mas podem ser bem maléficas se mal utilizadas.

    • Dizer que as pessoas ficam mais inteligentes não quer dizer que eles são pessoas melhores. Talvez tenha um ponto onde o acúmulo dessa inteligência leve a uma sociedade mais justa e livre, mas nesse caminho tem muita coisa que não é agradável.

  • Eu não uso Facebook nunca tive Twitter, por que eu usaria? O Facebook era um conceito interessante, mas mídias sociais são mais convenientes pra vocês do que mensagens, telefonemas e e-mails eram? Se você quer que as coisas mudem não use esses produtos. Se um amigo não mandar mensagens ou e-mails pra entrar com contato com você ele não é seu amigo.
    Estou fora do Facebook há vários anos e eu continuo funcional na sociedade. Argumentar que você precisa dessas mídias pra funcionar é como um alcoólico argumentando que precisa de álcool pra funcionar. A riqueza do futuro será a sanidade mental, cultive isso.

    • Não acho que seja tanto questão de redes sociais em si, mas sim a informação que está acessível de maneira muito mais fácil. Vamos combinar: nós dos anos 80/90 crescemos fazendo trabalho da escola consultando a barsa, sentando a bunda na cadeira da biblioteca e passando horas lá lendo, escrevendo etc. Hoje tá tudo bem mastigadinho, resumido, colorido e bonitinho num vídeo no youtube ou mesmo app interativo.

      • Sim, é que as pessoas falam tanto dessa coisa de “guerra cultural” como se 1- isso fosse relevante na realidade do cidadão médio, eu inclusa 2- algo obrigasse elas a continuarem discutindo com malucos por razão nenhuma em vez de simplesmente deletar ou privatizar a conta. Acho que só masoquismo explica :P

  • Não tem nada de desumanização não, é a pura verdade. A maioria das pessoas são burras e só uma pequena parte é inteligente, quando deixam qualquer um tomar decisão ou fazer revolução, matematicamente já temos uma proporção de gente burra necessária para a escolha da maioria ser uma escolha burra. E revolução popular só traz mais pobreza e ditaduras, assistencialismo é a ideologia do povo. Aí ficamos num looping eterno de instabilidade política, crise econômica, ideologias merda, promessas e mais promessas, com 1 ou no máximo 5 anos de fôlego pra não colapsar 100%. Além disso, que democracia é essa se todos tem que seguir diretrizes de organizações internacionais que não são eleitas por ninguém?

    Por isso que eu já parei de me importar com essa merda toda e não defendo nenhum sistema. Não existe nada que não esteja destinado a ser tornar pó. Eu apenas vejo qual rumo o mundo está encaminhando para eu amenizar os meus próprios danos.

    • Uma visão um tanto pessimista a sua, Anônimo. Mas concordo com o que você disse sobre assistencialismo ser “a ideologia do povo”.

    • Mas como negar a relação entre aumento de qualidade de vida média em virtualmente todos os indicadores e a popularização de regimes capitalistas democráticos?

      Metade da democracia não funciona, só não sabemos qual.

  • Num livro chamado “Nutrition and Physical Degeneration” fala do mal que a dieta industrializada fez ao ser humano, e também tem fotos interessantes. Povos que tem a dieta baseada mais em carne vermelha/gordura animal e menos em carboidratos tem uma melhor arcada dentaria e saude bucal do que povos que tem a dieta baseada em grãos, carboidratos e gordura vegetal “saudável”.
    Povos indígenas, daqui do Brasil até aborígenes australianos, possuem vários problemas alimentares depois que foram expostos à dieta moderna, tem índio que não consegue comer amendoim e nada que vem do leite, coisas comuns que comemos no dia a dia.
    Aliás, a gente que não é indígena também não anda muito bem não. Metade do mundo é obeso, a maior causa de morte é doença cardíaca, as pessoas usam aparelho dental durante a adolescência e buscam tratamento dentário anualmente. Sem contar o aumento das doenças tidas como “modernas”. Déficit de Atenção, Depressão, Alzheimer, Parkinson, Esquizofrenia, pessoas que não se identificam com o próprio sexo, pessoas achando que são cachorros, pessoas querendo ser deficientes, coisas que não eram comuns na antiguidade. Se somos o que comemos, e é claro, se os nutrientes afetam o funcionamento cerebral, não é fantasioso dizer que pode ter alguma ligação com o que comemos.

    • Como notório junkie, não me sinto qualificado para analisar essa questão. Talvez a Sally possa se interessar por explorar essa via.

      Porque faz mesmo sentido que a mudança da dieta humana mude o comportamento médio…

  • “pode ser que muita gente que você conhece agora fique presa numa espécie de idade da pedra intelectual sem chance de retorno em questão de uma ou duas décadas.”
    Tipo o meu pai cinquentão me falando pra fazer concurso toda vez que nos reunimos, apesar dos meus freelas me sustentarem bem, obrigado?

    • Acho que nesse caso a questão não é necessariamente de inteligência… É a experiência dele falando mais alto, né? Vivendo em um país instável que nem o nosso, a estabilidade que um concurso público proporciona é insubstituível pra muita gente.

    • Talvez. Como eu escrevi naquele texto da Tiktokalização da Economia, as gerações mais novas estão sentindo o cheiro do colapso do modelo econômico clássico. Pode ser que dessa vez os dinossauros não tenham tempo de se aposentar.

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