O Gambito da Rainha

Eu honestamente não sei o quão popular essa minissérie se tornou desde o lançamento, mas algo me diz que não o suficiente. Gambito da Rainha é uma minissérie ficcional da Netflix em 7 episódios que conta a história da prodígio americana do xadrez Beth Harmon entre os anos 50 e 60. Pra mim foi uma das melhores, senão a melhor série do ano, mas isso talvez dependa de quanto você aprecia o xadrez e sua história…

Minha relação com o xadrez é meio bizarra, eu acompanho mais ou menos como futebol: interessado em partidas e jogadores atuais e antigos, mas raramente com vontade de jogar. Isso provavelmente me fez apreciar a série muito mais do que se fosse um completo leigo no assunto, mas antes de entrar em spoilers, posso dizer sem medo que a história se sustenta numa boa mesmo se você não souber nem como mover um peão. Harmon, a personagem central, tem sua dose de conflitos e desafios na medida certa para nunca deixar as coisas ficarem chatas.

E apesar de ser a história de uma mulher lutando por seu espaço num ambiente quase que totalmente masculino, não tem aquela mão pesada da propaganda hollywoodiana tentando politizar demais as coisas. Eu confesso que torci o nariz esperando algo do tipo, mas o foco no xadrez me fez assistir, o que foi uma boa coisa. Se você tinha preconceito também, pode ficar em paz: tudo está a serviço da história.

Pois bem, a partir daqui vai ser complicado evitar spoilers. Um que você pode ler é que não é uma série baseada em reviravoltas e surpresas, e sim numa progressão natural que qualquer um familiarizado com a Jornada do Herói vai reconhecer de cara. Pode parecer clichê usar esse recurso narrativo, mas quando você quer que a história seja veículo para suas personagens e um tema central raro como o xadrez, nada melhor do que um fio condutor mais tradicional.

Um dos pontos de destaque da Netflix na divulgação da série é a luta de Harmon (a personagem central) contra questões psicológicas e dependência de álcool e remédios enquanto tenta ter sucesso no mundo do xadrez. Não que isso não apareça nos episódios, são temas importantes, mas acima de tudo é um estudo sobre uma personalidade obsessiva arrebatada por um dos jogos mais complexos que existem. A personagem parece ter algum grau de autismo, mas altamente funcional.

A tentação de fazer um dramalhão sobre problemas mentais e vícios poderia ter feito a série perder o rumo, mas em momento algum a história soa apelativa. O roteiro não tenta te forçar a ficar com pena dela ou mesmo contar uma história de “superdeficiente” sem defeitos. Beth é o que é, às vezes você torce por ela, às vezes ela te parece uma escrota sem consideração. Típico de quem tem respostas emocionais reduzidas. Não é necessariamente alguém que você gostaria de ter grande envolvimento emocional, até pela baixa capacidade de reciprocidade, mas a série não sai do seu caminho nenhuma vez para pintá-la como insuportável.

Acho que a melhor palavra para definir o tom da série é sobriedade, por mais irônico que isso seja com uma protagonista lutando contra seus vícios. Agora, quando falamos de xadrez, as coisas mudam de figura e não há economia: o Gambito da Rainha é de longe a representação mais realista do xadrez, seus jogadores e a cultura ao redor do jogo que já vi na mídia. Grandes enxadristas foram convidados para cuidar dessa parte, incluindo o ex-campeão mundial Garry Kasparov. Cada movimento de peça filmado foi decidido por grandes mestres, desde as partidas mais importantes da série até mesmo jogos rápidos de treino e lazer das personagens.

Está um pouco além do meu conhecimento reconhecer a maioria das partidas, mas especialmente nos lances finais, você pode ver jogos históricos sendo replicados, e alguns até melhorados com a ajuda de computadores avançados. A atenção aos detalhes é impressionante: se uma personagem diz para outra que havia um lance melhor do que o jogado em uma cena da série, pode apostar que tem a cena do estado do tabuleiro naquele momento e se você fizer o lance, vai ver que era verdade.

Você não só está vendo xadrez realista de altíssimo padrão nas cenas, como também está vendo uma visão quase que perfeita do que era o mundo do xadrez naquela época. As personagens mencionam jogadores antigos verdadeiros e falam sobre suas partidas reais, mas até pelo caráter ficcional da série, os jogadores contemporâneos a Harmon são ficcionais também. Alguns tem alguma semelhança com quem jogava na época, mas fica claro que estamos falando de uma realidade paralela.

E falando em realidade paralela, Harmon é uma jogadora americana genial vivendo no limite da sanidade, o que dentro da série é sugerido como um paralelo com Paul Morphy, um outro jogador americano que fez história no século XIX; mas os mais atentos ao mundo do xadrez sabem que o paralelo mais realista é com Bobby Fischer, o absurdamente genial e absurdamente perturbado jogador americano que viveu e jogou mais ou menos na mesma época que Beth Harmon.

Momento fofoca: provavelmente ninguém menciona Bobby Fischer oficialmente porque logo após dominar de forma incontestável o mundo do xadrez, derrubando inclusive os grandes mestres russos, Bobby foi perdendo a cabeça rapidamente e terminou precocemente sua vida enquanto denunciava uma conspiração dos judeus para controlar o mundo… os americanos lembram de Bobby na fase boa, mas normalmente não gostam de ser lembrados dos últimos anos de sua vida.

Harmon não tem arroubos antissemitas, mas segue o caminho de Bobby na sua luta para vencer os russos, não por motivos patrióticos da Guerra Fria, e sim porque sabe que naquele tempo, os melhores do mundo estavam todos lá. A série dá algumas dicas sobre esse tema, mas nunca descreve em detalhes: durante a Guerra Fria, os russos investiram pesado no xadrez, era uma forma de sugerir superioridade intelectual sobre os fúteis ianques. Ser chamado para um campeonato na União Soviética era uma grande honra para qualquer enxadrista. Na vida real, Bobby foi até lá e deu uma vitória histórica para os americanos, o xadrez russo continuou fortíssimo por mais algumas décadas, mas aquele foi um ponto de virada.

Como a história é muito focada nas personagens, podemos ver uma questão muito bem apresentada: a diferença brutal entre uma pessoa boa de xadrez e um grande mestre. Eu diria que é uma das diferenças mais brutais entre categorias de jogadores de qualquer esporte individual no mundo, talvez a maior. O grande mestre do xadrez não é uma pessoa qualquer, não só é capaz de memorizar milhares de posições no jogo, como acessar esses dados de forma quase que intuitiva durante uma partida. Harmon é apresentada como uma jogadora mais impulsiva, desesperada pela vitória e capaz de enxergar lances que quase ninguém mais consegue.

Claro, isso tem um custo. Harmon é obcecada, coloca o xadrez na frente de praticamente tudo e paga o preço com dificuldades de se relacionar com outras pessoas. É interessante ver como na medida que ela vai melhorando, vai sendo notada por outros grandes jogadores, e quanto melhores esses jogadores, mais facilidade ela tem para se conectar. E se você está achando que eu ou a série estamos jogando a carta do “só maluco fica tão bom assim no jogo”, ledo engano. Eu enxerguei toda essa questão de diferenças entre seres humanos médios e grandes mestres como um ensaio sobre a solidão que uma obsessão pode causar. Harmon parece ter seus problemas mentais, mas outros jogadores são apresentados das mais diversas formas. A maioria precisa se cercar de outros obcecados para dar vazão ao que pensam e não se sentirem tão isolados. A maioria dos jogadores apresentados na série não soam como excêntricos bizarros, são pessoas relativamente normais como a maioria dos grandes enxadristas da vida real.

E sim, eu sei que tem um elefante na sala: não é meio forçação de barra fazer uma mulher ser a melhor jogadora do mundo? Sim e não, mas… com mais ênfase no não. Explico: embora a esmagadora maioria dos grandes mestres sejam homens, não é totalmente bizarro uma mulher entrar na lista. Quem conhece bem xadrez sabe que a húngara Judit Polgár já entrou na lista dos 10 melhores do mundo, num respeitável 8º lugar. Parece pouco, considerando que um brasileiro já foi o 3º… mas se você considerar quantas mulheres realmente seguem a carreira de enxadrista e tentam disputar contra homens oficialmente, dá para fazer o argumento que nessa modalidade pode ser só questão de números na base para formar mais grandes mestres em colocações altas.

E, Harmon é tratada como uma anomalia na série mesmo. Mesmo que você ache que só caindo um raio dez vezes no mesmo lugar para ter uma Bobby Fischer de saias, na vida real já caiu pelo menos umas três vezes no caso da Judit. Em tese é possível. Ainda mais considerando como o xadrez está vivendo uma renascença em 2020: o jogo na versão online se popularizou muito com a quarentena, com inclusive um grande mestre virando streamer popular no Twitch (Hikaru Nakamura, que apesar do nome é americano). Mais e mais mulheres estão jogando. Não sei onde isso vai dar, mas, repetindo: em tese é possível.

Vamos falar um pouco de detalhes e a parte técnica: a série toma algumas liberdades para deixar o xadrez mais palatável para episódios de uma hora, na realidade os jogos de grandes mestres tem uma grande tendência de terminar em empate, normalmente eles jogam melhores de 8 a 12 partidas, com mais da metade terminando empatadas. Mas é compreensível: ficaria chato. É que nem fazer filme de futebol e ficar mostrando lateral e cera do goleiro. Outra coisa que não é muito realista é a conversa entre jogadores. O que às vezes é essencial para o drama da cena, mas que na vida real seria recebido com um “shhh!” do juiz. Detalhes pequenos que só deixam a série mais interessante e não tiram em nada o valor da apresentação do jogo como ele é.

Como eu disse antes, é uma história pautada pela sobriedade do roteiro: todos os atores e atrizes trabalham muito bem, vários autistas de internet se apaixonaram pela atriz principal, o que era previsível pela cara de desenho japonês misturado com alien dela (não me entendam mal, ela é bonita, mas demora alguns segundos para o cérebro se ajustar). Os cenários, a direção de arte e de figurino são perfeitos, pelo menos até o ponto onde eu sou capaz de reconhecer. Série de época caprichada nos mínimos detalhes. Na parte do xadrez então, não tem o que retocar.

Por isso, recomendo e muito o Gambito da Dama. Quanto mais você entender de xadrez e do mundo ao redor desse jogo, melhor a série fica. Tem muitas sutilezas que não dá para explicar para quem não tem noção desse tema, por exemplo, a partida final da série é baseada num jogo do Vassily Ivanchuk, um jogador espetacular que nunca ganhou o título mundial por ser inconsistente, mas que desde que começou a jogar, já ganhou (e muitas vezes ganhou de lavada) de todos os campeões mundiais. Um verdadeiro Robin Hood do xadrez. Ivanchuk tem a mania de olhar para o teto enquanto decide seus lances… vendo a série você vai entender isso.

Se você entende esses detalhes, percebe como a coisa foi bem feita. É uma carta de amor ao xadrez. Mas, escrita de um jeito que muita gente vai entender a ideia geral.

Para dizer que está cagando para xadrez com os EUA pegando fogo, para dizer que não viu e agora não vai ver mesmo, ou mesmo para dizer que eu não contei quase nada da história (verdade…): somir@desfavor.com

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Comments (12)

  • O xadrez aguça a mente e sinto que eu deveria experimentar. Mas esse jogo milenar também requer um grau de paciência e capacidade de antever os movimentos do adversário que eu sei que não tenho.

  • Somir, acabei de assistir aos episódios e… estou sem palavras. O que mais me chamou a atenção, além da trilha sonora de arrepiar, foi como eles conseguiram fazer uma série que falasse de xadrez sem ser chato, até mesmo de temas como inclusão sem ser mi-mi-mi. Valeu mesmo pela recomendação!

  • Vou assistir porque parece interessante e por causa da minha recém-descoberta admiração pelo Xadrez. Além disso, vou aproveitar pra deixar minha recomendação.

    Nunca fui familiarizado com o e nunca entendi direito porque era um esporte, mas após ver um documentário no YouTube que contava a história do Deep Blue e seu confronto épico contra Kasparov eu mudei de opinião.

    Quem tiver interesse, procura “Deep Blue” do canal Down the Rabbit Hole. É em inglês e é um pouco longo, mas ele consegue contar a história e passar informação de forma que até mesmo alguém que nunca jogou xadrez na vida consegue entender.

  • “durante a Guerra Fria, os russos investiram pesado no xadrez, era uma forma de sugerir superioridade intelectual sobre os fúteis ianques. Ser chamado para um campeonato na União Soviética era uma grande honra para qualquer enxadrista”.

    Na última vez em que o Anatoly Karpov (grande rival do Kasparov) esteve no Brasil, ele deu uma entrevista na ESPN em que contava que os enxadristas treinavam pesado junto com os atletas olímpicos soviéticos até nevando.

    “Outra coisa que não é muito realista é a conversa entre jogadores. O que às vezes é essencial para o drama da cena, mas que na vida real seria recebido com um ‘shhh!’ do juiz”.

    Uma vez em um campeonato mundial, mostraram uma mesa no formato de “T”, segregando os enxadristas por baixo da mesa. “Para que os jogadores não se chutarem durante as partidas”, disse o comentarista…

    Excelente recomendação. Vou assistir!

    • Tirando a corrupção e a fome generalizada, tinha coisa bacana na USSR sim. Trocava as cinco copas do mundo por um campeão mundial de xadrez e um Nobel.

  • Eu fui um desses casos da quarentena. Comecei a jogar xadrez no chess.com
    Minha pontuação varia na casa dos 600, ridículo, porém é alguma coisa. Hahahah
    Somir, você sabe o que significa gambito?
    Obs.: ele quase não deu spoiler. A minissérie é bem mais detalhada do que ele escreveu.

    • 99,9% da humanidade está abaixo de 600. Não é algo de se jogar fora mesmo.

      Gambito é uma estratégia no xadrez de oferecer uma peça ao adversário para ter vantagem posterior. Se ele tomar aquela peça, está seguindo o seu plano de jogo. Mas são apostas… especialmente as de começo de jogo, já que jogadores mais bem treinados conhecem quase todos os gambitos tradicionais e como lidar com eles.

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