Excesso de informação?

O presidente Jair Bolsonaro afirmou nesta terça-feira que não irá se vacinar contra a covid-19, mas deixou claro que o Ministério da Saúde irá comprar qualquer imunizante aprovado pela Anvisa. “Eu não vou tomar vacina e ponto final”, disse o presidente em entrevista ao apresentador José Luiz Datena, da TV Band. “Se minha vida está em risco, o problema é meu”, acrescentou, ressaltando que a imunização não pode ser obrigatória. LINK


Não bastasse o coronavírus, o brasileiro médio começa a desenvolver sintomas de alergia ao conhecimento. desfavor da Semana.

SALLY

Não se dá um carro a uma pessoa antes que ela aprenda a dirigir, pois se ela cometer um erro (e alguém que não tem treino e aprendizado fatalmente vai errar) ela pode se machucar e machucar terceiros. Pelo mesmo motivo não se dá uma arma a quem não sabe atirar. Não se dá explosivos a quem não entende seu funcionamento. Entenderam meu ponto? Ótimo. Guardem essa informação.

Séculos atrás, não havia democratização de informação. Uns poucos sabiam ler, detinham os livros e tinham acesso a eles. Uns poucos estudavam o suficiente para compreender o corpo humano e a medicina e virar “doutor”. Todo o resto era excluído intelectualmente e reverenciava aqueles poucos que tinham conhecimento e não se ousava discordar ou contrariar o que estes poucos diziam.

Era o melhor dos mundos? Óbvio que não. Qualquer coisa que exclua, separe ou segregue é péssimo. Mas, será que estamos melhor hoje apenas por todos terem acesso à informação?

Democratizar qualquer coisa antes de educar é um baita tiro no pé. Somos sempre a favor da democratização, mas antes as pessoas precisam ser educadas para o que vão receber, seja um carro, seja uma arma, seja uma informação científica. Para o seu bem e para o bem coletivo.

Uma opinião difícil de engolir: se hoje, se tivéssemos uma população onde poucos tem acesso à informação e os demais reverenciam esses poucos, teríamos nos saído melhor na pandemia, não apenas no Brasil como no mundo.

Foi uma constatação muito dolorosa: permitir o acesso das pessoas a todo tipo de informação sem educá-las para que elas tenham a capacidade de interpretar, entender e concatenar essas informações pode ser pior do que impedir que acessem a informação. Melhor proibir a venda de armas do que fornecê-las indiscriminadamente a quem não sabe manuseá-las.

Informação pode ser usada como uma arma. Dar uma arma nas mãos de quem não sabe atirar pode causar a morte da pessoa e de terceiros. Não dar uma arma a quem não vai saber usá-la é censura? É exclusão? É elitismo? Não. É cuidado.

Em um mundo ideal, todos estariam devidamente educados para entender, interpretar e aplicar qualquer informação, inclusive científica. Assim, não haveria necessidade de sonegar nenhuma informação a ninguém. Infelizmente não estamos em um mundo ideal e se democratizou a informação antes de educar as pessoas. O resultado é esse que vocês estão vendo.

Não é sobre a pessoa do Bolsonaro gritando aos quatro cantos que não vai tomar a vacina, é sobre o que ele representa: uma boa parcela da população brasileira, que tem acesso a uma grande quantidade de informação e que não tem cognição, entendimento, inteligência para interpretá-la e compreendê-la da forma correta.

Parte do que lhes é dito, entendem errado. Para preencher as lacunas do que não entendem usam achismos, dedução, presunções, todas partindo de premissas erradas e, portanto, levando a conclusões erradas. Pessoas usam suas opiniões pessoais, políticas, suas crenças, sua vivência para dar interpretação à ciência, que é algo objetivo e não subjetivo.

Isso gera bares, praias e festas lotadas no meio de uma pandemia. Isso gera um Ministro da Saúde que diz que não entende o motivo de tanta ansiedade e angústia envolvendo a vacina. Isso gera um Presidente que desmerece todas as medidas de proteção contra um vírus que já matou mais de cem mil brasileiros.

O Brasil está nas mãos de pessoas que tem acesso à informação, mas não conseguem compreendê-la e a interpretam de forma distorcida. O Brasil possuí um povo que, em sua maioria, tem acesso à informação, mas não consegue compreendê-la e a interpreta de forma distorcida.

Não são filhos da puta, são pessoas que, dentro das suas possibilidades, acham que estão fazendo o que é melhor. O problema é que estão causando um dano imenso à coletividade, pois não possuem as ferramentas para avaliar as informações que recebem dentro do contexto certo. Para entender um estudo científico é preciso entender muita coisa anterior, não apenas as palavras que estão escritas nele. Dói assistir.

Dói constatar que a maior parte do povo brasileiro é tão despreparado para interpretar informações complexas que seria melhor que nem tivesse acesso a elas. Dói ver as consequências da democratização da informação, que sempre defendemos com unhas e dentes, quando mal aplicada. Eu estava errada. Eu estive errada esses anos todos. Democratizar informação não é necessariamente uma coisa boa.

A sociedade brasileira caminha para o colapso, e, como sempre disse aqui, nisso eu consigo ver um lado positivo. O que me deixou em choque foi realizar que o agende da destruição não seria a corrupção ou a belicosidade, e sim o acesso à informação, que eu sempre julguei como algo que só poderia trazer benefícios.

É um caminho sem volta, com internet, o acesso à informação veio para ficar. A sociedade que fizer ou permitir que se faça mau uso da informação, que não estiver apta a interpretar a informação que detém da forma devida, que não conseguir aplicá-la da forma correta, vai colapsar (e por isso eu sou grata). Não vai ser bonito de ver, vai ser doloroso e vai ser demorado. Provavelmente nós não veremos o desfecho desse processo, mas algo melhor vai surgir disso.

Não temos opção, não dá mais para monopolizar informação, é preciso passar por isso. Mas, ao entender que essas pessoas que jogam a favor do vírus não são escrotos, egoístas ou filhos da puta, podemos lidar melhor com a situação. Ao ver o que uma pessoa diz ou como ela se porta diante de uma pandemia e diante da própria mortalidade, vemos muito do que está dentro dela. Ao ver os erros de interpretação que ela comete, vemos um raio-x de deu interior.

As crenças, os medos, as vivências são cruciais na interpretação de uma informação que a pessoa não tem, por si, subsídios para compreender. Ao fazer uma interpretação equivocada, a pessoa se desnuda, se expõe e, sem perceber, deixa claro o que tem dentro dela, que tipo de pessoa é, as fraquezas, os medos.

Na mãe natureza, quando um membro do bando causa danos ao bando, o grupo que está sendo prejudicado se junta e o neutraliza. E, para isso, o bando observa suas fraquezas. Estou me fazendo entender? Espero que sim, pois não posso ser mais direta do que isso.

Se você está muito puto com a irresponsabilidade, restrições e perda de vidas nesta pandemia, faça sua parte: observe os pontos fracos daqueles que estão contribuindo para majorar o risco de morte para você e para aqueles que você ama, através das informações que eles entendem de forma errada. Observe o discurso equivocado e compreenda de onde ele vem. Ciente do perfil, dos pontos fracos e das falhas dessas pessoas… faça sua parte.

Para dizer que tudo isso deve ser um grande estratagema para o Bolsonaro esconder que tem medo de injeção, para dizer que a paciência com negacionista acabou e você vai sim fazer a sua parte ou ainda para dizer que a única parte que tem que ser feita é sair do Brasil e deixar esses símios se matarem: sally@desfavor.com

SOMIR

A primeira vez que eu fiquei sozinho com a internet foi um momento mágico. E nem foi por achar o site da Playboy. Apesar do meio novo para saciar a curiosidade adolescente, não é como se o sentimento fosse alguma novidade. Na verdade, foi a primeira visita a um site de busca. Mesmo sendo uma era pré-Google, a quantidade de informação disponível em cada categoria era absurda. Pelo menos para os meus padrões naquela época.

Eu soube ali mesmo que aquilo faria parte da minha vida. Respostas rápidas para qualquer pergunta, integração com o conhecimento e a cultura do resto do mundo, contato com gênios, malucos e todas suas variações! Tinha encontrado um estoque virtualmente infinito de informações para preencher minha mente sempre que quisesse. Na vida, tem muitas coisas que você só percebe que faziam falta quando finalmente entra em contato com elas, a torrente interminável de dados oferecida pela web foi uma delas para mim.

E aqui é hora de lembrar que as pessoas não são iguais. Eu realmente desejava viver num mundo com uma quantidade de informação imensa chegando em alta velocidade pra mim o tempo todo. Tenho certeza que boa parte dos primeiros adeptos da internet também. Para a maioria desse grupo, a popularização do acesso e o aumento exponencial da quantidade de conteúdo eram exatamente o desejado.

Mas, pelo visto, a maioria não pensava exatamente assim. A informação da internet não era algo que estavam esperando ativamente e sim uma imposição da sociedade. Eu pedi por isso, mas eles não. Nem estou dizendo que só eu e um grupinho seleto que somos inteligentes, estou falando sobre estar preparado para o que vai acontecer: se você é um criador de gado e alguém entrega 20 vacas na porta da sua fazenda, é um presente. Afinal, você sabe o que fazer com elas. Se alguém te entrega 20 vacas na portaria do seu prédio e você trabalha com T.I., é um problema dos grandes!

Eu queria mais informação e me esforcei para ter o espaço e a capacidade de processar essa informação. Foi algo natural baseado num interesse prévio. Obrigado pelo presente, internet! Mas vai ficando claro que para boa parte da população mundial, a informação está solta na rua, cagando em tudo quanto é lugar e atrapalhando o trânsito. Nunca pediram por isso, chegou de surpresa para quem nem sabe o que fazer com ela.

Dr. Google já era um problema para a medicina moderna antes da pandemia: muita gente fazia suas consultas médicas com uma ferramenta de busca da internet. Apesar de prática, a ideia esbarra na falta de treinamento do cidadão médio de diagnosticar problemas de saúde. Um sintoma pode ser mil coisas diferentes, na maioria dos casos. Nem médico depois de 8 anos de curso e residência costuma acertar tanto assim, imagine só uma pessoa aleatória?

Mas ainda tinha alguma proteção nos sites, normalmente os primeiros resultados de pesquisa são de fontes relativamente seguras e exigem um pouco mais de capacidade de compreensão de textos. O cidadão médio ainda tinha uma rede de segurança, mesmo que fosse baseada na própria insegurança sobre sua habilidade de entender direito o que leu. A medicina tomou uma chacoalhada, mas parecia ainda ter algum grau de controle.

Só que a internet não para. O cidadão que não pediu pela informação continuou sendo bombardeado por ela, e pior, charlatões, malucos e seres do tipo aprenderam a ser mais e mais atraentes. O movimento antivacina foi um dos primeiros a se especializar em internet. Fazer diagnósticos e sugerir tratamentos era eficiente para gerar atenção, mas assustar o povão era uma mina de ouro! E foi isso que fizeram. Aproveitaram que o cidadão médio não conseguia mais desviar da informação e começaram a envenenar alguns blocos dela. O resultado foi impressionante.

Uma boa parcela da população brasileira diz que não vai se vacinar. O presidente do Brasil compartilha dessa ideia. Você pode até ficar com raiva do desserviço que prestam ao mundo, mas tem que admirar a eficiência. Foram séculos explicando para o mundo que vacinas eram uma das maiores armas da humanidade contra as doenças, mas em poucos anos um bando de malucos virou tudo de ponta cabeça!

E tudo isso com o uso astuto de bulas. Todo remédio tem efeitos colaterais, mas normalmente não prestamos muita atenção nisso. Medicina não é mágica, não existe nada que resolva um problema de saúde 100% das vezes com 100% de segurança. Não existe alternativa a esse fato da vida. Talvez os futuro nos traga isso, mas eu não apostaria num futuro próximo. Qualquer tratamento tem o potencial de não resolver e/ou causar efeitos colaterais. O que acontece quando esse fato inescapável chega aos ouvidos de quem nunca pensou sobre o assunto antes?

Bom, acontece o que estamos vendo atualmente. Milhões de brasileiros que tomam cerveja diariamente, comem muito açúcar e gordura, fumam e usam drogas como se nada… achando que uma vacina é a maior ameaça a sua saúde até hoje! Qualquer informação sobre vacinas cai em mentes que nunca se prepararam para lidar com isso. E aí, é esse show de bizarrices. Informação sem capacidade de decodificar essa informação pode ser muito perigosa. Fico na dúvida se dizer a verdade para quem não tem a menor capacidade de entender o que está ouvindo realmente é dizer a verdade para ela.

Bolsonaro serve como o grande exemplo da limitação do brasileiro médio. Um representante do povo como poucos, muito mais que Lula, eu diria. Não tem a menor ideia do que está acontecendo, não acho que seja intenção de fazer mal ao povo, é incapacidade mesmo. E pior, colocou mais gente assim em cargos chave. O ministro da saúde parece alguém que está fazendo o máximo possível para fazer senso do seu trabalho, e falhando terrivelmente. Infelizmente, é isso o que acontece quando se dá muita informação para quem não tem o cérebro preparado para ela.

Como lidar com isso? Bom, eu pretendo me aprofundar nesse tema durante a semana, mas em resumo: na dúvida entre o que o seu instinto diz e séculos de estudos científicos testados em centenas de milhões de seres humanos com a erradicação de muitas das doenças mais mortais da história, não siga seu instinto.

Para dizer que tem medo, para dizer que não confia na ciência (você só está vivo por causa dela), ou mesmo para perguntar onde fica o seu direito pessoal (vá viver no mato, hippie): somir@desfavor.com

Se você encontrou algum erro na postagem, selecione o pedaço e digite Ctrl+Enter para nos avisar.

Etiquetas: , ,

Comments (14)

  • Greta Steiner Rabbinovitz Ocasio de Kamala von Thunberg und Soros

    O único show de horrores ideológico que eu vi nesse ano foram os conservadoidos (na grande maioria das vezes) fazendo de tudo para que chegássemos ao cenário atual de pandemia… aliás, o cidadão médio tende ao ser conservorismo, né??

    • Tem muita gente que não tem ideologia alguma, que nem sabe o que é ideologia, saindo, usando máscara no queixo, indo à praia e contribuindo de muitas outras formas para a pandemia. Tem que despolitizar questões de saúde, o brasileiro, independente de ideologia, não tem senso de sacrifício e sempre que pode burla regras.

      • Greta Steiner Rabbinovitz Ocasio de Kamala von Thunberg und Soros

        Todo mundo tem e segue até mais de uma ideologia. O único ser humano que não tem ideologia é o que está em coma. Ideologia é um formato de raciocínio pronto, uma narrativa, se mais correta aos fatos ou não. Claro que, junto à ideologia também tem o comportamento mais instintivo ou espontâneo. Religião é uma ideologia.

  • Divulgaram muito sobre a letalidade mas divulgaram menos sobre a eficiência dos cuidados, do isolamento, do uso de máscaras e quase nada sobre os esforços de outros países, que deram resultados. Uruguai tá se saindo melhor,mas é pouco mencionado.

    Quem confia na ciência, se informa apenas sobre o necessário. Quem duvida da ciência acaba procurando outras fontes, nunca fica saciado, busca mais e mais informações e acaba ficando paranóico, negacionista ou com positivismo tóxico de curto prazo.

  • Eu pensei que vcs iam falar da treta do político que meteu a mão na teta e deu uma encoxada na outra política na seção de votação. Mas se o Bozo já pegou coronga e se curou de boas, pra que ele vai se arriscar a ter reação a vacina? E quer saber dum negócio que me contaram? BR é foda, já tem gente armando esquema pra cobrar propina e constar que a pessoa se vacinou, anotado na carteirinha sem ter vacinado. Se for “obrigado” paga lá e fica livre.

    • Até onde eu vi, o deputado imbecil já está se fodendo muito por causa disso. Quando a reação ao fato não vira um show de horrores ideológico, a gente costuma pular o tema. E sobre tomar vacina, Bolsonaro podia ter só ficado quieto. Falar que não vai tomar é tomar o lado da desinformação. E por último, não me espanta em nada que no Brasil tenha esquema pra tudo, nossa economia depende disso.

  • É duro ter que dizer isso, mas, às vezes, as pessoas precisam ser salvas de si mesmas. Dados, por si só, de nada adiantam para quem não os compreendem. Tudo fica ainda pior quando há tanta coisa nova e complexa sendo despejada a cada segundo na cabeça de todos nós enquanto ainda há muitos que não sabem o que fazer com o que recebem. E, tão ou mais preocupante do que ver tanta gente intelectualmente limitada se afogando nessa enxurrada de informação é o que que pode vir a acontecer com esse conhecimento ficando nas mãos erradas.

    • Também é duro ter que pensar em ideias impossíveis, porém um Unificado Conselho Científico deveria ser o verdadeiro judiciário…

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: