FAQ: Coronavírus – 11 – Vacinas

Se a vacina russa é igual às outras, por qual motivo sua eficácia é bem maior do que a das outras vacinas similares? Ela é a melhor vacina?

Muita calma. A eficácia divulgada em um estudo publicado na Lancet da vacina Sputnik V foi de 91,6%. Porém, foi um estudo com poucas pessoas, o que é pouco para bater o martelo que essa será a eficácia real da vacina. Se isso se confirmar com mais pessoas, será uma maravilha, pois a eficácia é absurdamente alta, mas eu não colocaria minha mão no fogo.

Quando comparada com a outra vacina de vetor viral (adenovírus) mais famosa, que é a de Oxford, a Sputinik V tem de fato resultados muito melhores. Se esses resultados de fato se confirmarem com um número decente de voluntários, é possível começar a pensar que a estratégia para desenvolver a vacina russa foi mais inteligente. Vamos explicar com calma.

Como já falamos em outras postagens, a vacina de vetor viral (ou adenovírus) são vacinas onde você tem um vírus inofensivo (vetor) carregando um pedacinho do vírus que se quer combater. É uma forma de levar o coronavírus para dentro do nosso corpo sem que ele nos mate.

O vírus que nosso corpo consegue combater (geralmente um vírus respiratório que causa, no máximo, uma gripe leve) carrega consigo um pedacinho do SARS-Cov2 (coronavírus), na expectativa que nosso sistema imunológico identifique o corona, aprenda a combate-lo e o reconheça se ele tentar entrar novamente.

É como se um carteiro levasse até você a foto de um assaltante que pode estar planejando assaltar a sua casa. Uma foto é incapaz de te machucar, mas com essa foto você aprende a reconhecer quem é a ameaça e, com sorte, se prevenir e estar alerta caso um dia o assaltante efetivamente apareça.

O grande problema das vacinas de vetor viral é que nem sempre se pode controlar muito bem o que o corpo vai atacar: se espera que ela reconheça o pedacinho do corona e se prepare contra ele, mas, às vezes, o corpo foca apenas no adenovírus que leva o pedacinho. Voltando ao exemplo do parágrafo anterior, é como se o carteiro fosse levar a foto do assaltante para você e você atacasse o carteiro.

Para tentar fazer com que nosso corpo não ataque o carteiro, ou seja, que ele foque no pedacinho do corona que está sendo levado para dentro e não no adenovírus, são usadas várias estratégias. E, ao que tudo indica até agora (novamente, é preciso um resultado com mais gente para ter certeza), a estratégia da Sputnik V parece ser mais eficaz.

A vacina de Oxford optou por usar um adenovírus de chimpanzé, por ser algo que o corpo humano nunca viu, garantindo que o sistema imunológico identifique rapidamente como um invasor a ser combatido. Na tentativa de chamar a atenção do nosso sistema imunológico, a vacina de Oxford pode ter exagerado na dose e ter feito que nosso corpo foque mais no adenovírus do que no pedacinho de corona que ele transporta. Isso justificaria a grande incógnita do estudo dessa vacina: com uma dose menor os resultados foram melhores, pois expõe menos a pessoa ao adenovírus.

A Sputnik V usa outra estratégia. Assim como a de Oxford, ela também é aplicada em duas doses. A diferença é que a de Oxford usa o mesmo adenovírus nas duas doses (fazendo com que o corpo fique duplamente irritado com o adenovírus) e a Sputnik usa dois adenovírus diferentes (papo técnico: adenovírus 26 e adenovírus 5), um em cada dose. Isso, em tese, poderia reduzir as chances do corpo “bater no carteiro”, pois são suas pessoas diferentes indo dar o alerta, único denominador comum de perigo é o pedacinho do corona.

Supondo que o adenovírus da primeira dose irrite muito o sistema imune e tire o foco do corona, pode ser que na segunda dose isso não aconteça, pois se trata de um vírus diferente: a única coisa que ambos tem em comum é o coronavírus, deixando mais fácil para o corpo interpretar quem é o inimigo.

Se de fato se consolidar essa eficácia muito melhor da Sputnik, essa estratégia de usar “dois carteiros” pode se provar realmente melhor. De fato já existem conversas entre o pessoal da vacina de Oxford e da Sputnik sobre aplicar uma dose de casa uma, de forma combinada, para tentar obter o melhor resultado possível.

Por sinal, a tendência é que comecem os estudos com diferentes combinações de vacinas, é provável que vejamos isso acontecer em breve. O pessoal da vacina de Oxford já está conversando com o pessoal da vacina da Pfizer também. Quando o mundo entender os prós e contras de cada vacina pode fazer diferentes combinações favoráveis para diferentes necessidades de determinados grupos.

A melhor vacina é a que imuniza de forma eficiente. É cedo para falar em “melhor vacina”. Talvez nunca seja possível fazer essa afirmativa genérica, talvez determinados grupos (idosos, jovens, pessoas com certas doenças) tenham uma vacina específica considerada “a melhor”. Talvez a melhor vacina seja uma combinação de duas vacinas. Temos que esperar para entender melhor.

Mas, para não te deixar sem resposta, as vacinas que utilizam adenovírus podem ter o seguinte problema: se o pedacinho de coronavírus que o adenovírus leva para dentro sofrer uma mutação no vírus original, a vacina não funciona mais. É como se o carteiro levasse uma foto do assaltante e o assaltante fizesse uma cirurgia plástica que o deixa irreconhecível. Pode acontecer e talvez já esteja acontecendo na África do Sul, como vamos falar mais para frente.


Por qual motivo a Europa não recomenda vacinar idosos com a vacina de Oxford e o Brasil está vacinando idosos com essa vacina?

Quando falamos de imunidade, é preciso ter em mente que nem sempre um organismo jovem tem as mesmas reações do organismo de um idoso. Por isso, o ideal é que as vacinas sejam testadas em diferentes grupos etários ao se medir sua eficácia, para observar se elas protegem da mesma forma pessoas de idades diferentes.

A vacina de Oxford (o nome correto é CovidShield, mas ninguém chama assim) não foi suficientemente testada em idosos durante os testes clínicos (teste que mede a sua eficácia), enquanto que a vacina da Pfizer foi testada e um grupo grande de idosos e se provou capaz de produzir uma boa resposta imune. Por isso, como os países europeus têm uma opção testada em idosos, que é a da Pfizer, eles dão preferência a essa, por ter certeza absoluta que ela desperta uma boa resposta imune em pessoas com mais idade.

Não é que a vacina de Oxford seja ruim, é que entre o incerto e o certo, a Europa escolheu, com muita sabedoria, apostar no certo: aplica em idoso a vacina que eles têm certeza que desperta boa resposta imune em idosos e aplica nos mais jovens a vacina que eles têm certeza que desperta uma boa reação imune nos mais jovens.

Isso quer dizer que a vacina de Oxford vai matar idosos? Não. Os testes de segurança foram todos feitos da forma correta, caso contrário a vacina nem teria chegado ao mercado. O que se discute é qual pode despertar uma boa resposta imune em um organismo da terceira idade.

Como o Brasil não tem essa opção, pois a Pfizer ofereceu a vacina três vezes ao país e ela foi recusada, resta vacinar com o que tem e esperar pela melhor resposta imune possível.


Já existe alguma variante que tenha aprendido a burlar uma vacina? Se isso acontecer, quanto tempo demora até fazerem uma nova vacina?

Não sabemos. Há indícios que sim.

A África do Sul suspendeu a vacinação com a vacina de Oxford por acreditar que ela oferece uma “proteção mínima” contra a variante da África do Sul (B1351), responsável por 90% dos casos de covid no país. Há vários indícios de que sim, ela pode ter aprendido a burlar a vacina (ou boa parte de sua eficácia), mas é preciso esclarecer alguns pontos antes de dar certeza disso.

A primeira coisa a se analisar é que a suspensão da vacina de Oxford foi determinada com base em um estudo não revisado e não publicado, portanto, é uma informação preliminar que pode não se confirmar no futuro. Vamos ao que se sabe até aqui, que levou o país a acreditar que a vacina de Oxford não seria eficaz o suficiente.

Não é toda mutação que inviabiliza uma vacina, apenas a mutação em pontos chave usados pelo nosso sistema imunológico para reconhecer o vírus.

A variante da Inglaterra (B117), que torna o vírus mais apto a reconhecer as nossas células, por isso ele se liga melhor aos humanos e se torna mais transmissível, não tem o poder de burlar vacinas, mas na variante da África do Sul a mutação ocorreu em um dos pontos usados pelo sistema imune para reconhecer o corona, portanto, cientificamente, ela teria chances de fazê-lo.

Outro indício de que a variante da África do Sul teria capacidade de burlar ou reduzir os efeitos da vacina são os testes realizados com a vacina na Novavax no país. Segundo divulgado pelo laboratório, mais pessoas pegaram covid do que em outras populações do mundo que também foram vacinadas com esta vacina. Mas, novamente, ainda é preciso aprofundar os estudos, pois há dúvidas se isso aconteceu por causa da mutação ou por causa da população.

É que a África do Sul foi um país extremamente negacionista no que diz respeito ao tratamento do HIV, acreditando em absurdos como o vírus ser uma mentira, que era “coisa de gay”, que remédios caseiros resolviam o problema. Isso fazendo com que o vírus exploda por lá. Estima-se que 20% da população adulta tenha HIV, o que pode comprometer seu sistema imune e, por isso, não pela variante do covid, justificar que existam mais mortes no país.

Tem cara de porco, tem focinho de porco, cheira como um porco, mas ainda não é possível dar certeza de que seja um porco: a mutação que ocorreu é justamente na parte do vírus que o corpo usa para reconhecer o covid, a população está respondendo pior à vacina, mas não dá para bater o martelo.

Vamos acompanhar de perto, pois o que quer que fique provado por lá, afeta diretamente o Brasil. É que a variante que circula no Amazonas (P1), adivinha só? Tem as duas mutações: é mais contagiosa e é mais esperta para burlar a resposta imune. Então, a África do Sul é o canário de mina, tem que observar o que acontece com essa mutação por lá e criar estratégias conforme forem confirmadas as consequências delas.

É possível adaptar uma vacina a uma mutação com relativa facilidade, de forma muito mais rápida do que criar uma vacina do nada. Em meses, talvez até em semanas, uma nova vacina estaria pronta. O problema não é fazer a vacina, é vacinar 8 bilhões de pessoas (com duas doses, ou seja, 16 bilhões de vacinas). O grande gargalo é a distribuição e aplicação dessa nova vacina.

Como essas variantes se espalham rapidamente, não adiantaria vacinar apenas os países onde eles surgissem, em poucos meses essa porcaria estará no mundo todo. Então, o melhor que o mundo pode fazer é isolamento social, para que não surjam variantes que bulem vacinas, até que todos estejam vacinados. Enquanto algum lugar ainda tiver covid, ninguém está a salvo.

Achou tudo muito ruim? Não ache. Agradeça de joelhos estas mutações, pois podia ser pior, bem pior. Se, a qualquer momento, uma variante aumentar a letalidade do coronavírus, aí sim vocês vão ver o que é realmente ruim.


Estão dizendo que tem uma droga para tratar câncer que pode tratar o covid, se isso der certo, posso parar de me preocupar com a vacina?

Não. De jeito algum. O que pode resolver a nossa vida por agora é apenas a vacina, esquece o resto.

Essa droga que você citou se chama Plitidepcina, o estudo está sendo conduzido pelo hospital Monte Sinai (em Nova Iorque) e foi publicado na revista Science, ou seja, tudo indica que possa sim ser eficaz, pois há nomes sérios envolvidos. Porém, mesmo que dê muito certo, não resolve a nossa vida. Vamos entender o motivo.

Essa droga seria utilizada em estágios avançados de covid, ou seja, quando a pessoa já está internada e está mal. Isso quer dizer que ela não evita o colapso no sistema de saúde, principal problema que enfrentamos com coronavírus. Você precisa ser internado, indisponibilizar um leito e chegar a um estágio de risco de vida para que ela seja indicada. Queremos isso? Não, não queremos isso.

É um fármaco de quimioterapia, o que quer dizer que não pode ser tomado em casa pois, além de ter efeitos colaterais violentíssimos, custa uma pequena fortuna. Valor de remédio quimioterápico fica na casa do 5 ou 6 dígitos, como mínimo. Então, não, não é uma opção: não impede que a pessoa adoeça e precise de hospital e não pode ser tomado em casa. Arregaça essa manga e vai se vacinar.


Posso tomar todas as vacinas disponíveis contra coronavírus de uma vez?

Não, não acho nem que isso seja possível, pois nenhum país tem todas elas disponíveis ao mesmo tempo. Mas, supondo que fosse possível, é um risco enorme tomar todas as vacinas de uma vez, você pode ter um choque anafilático e morrer.

Uma única vacina (nas suas duas doses) é mais do que suficiente para garantir que você não vai morrer de coronavírus.

Para dizer que vai repassar este texto para pessoas que você tem certeza de que nunca vão ler ou entender, para dizer que a qualquer momento o Brasil desenvolve uma nova variante ou ainda para continuar xingando “chinês que comeu morcego”: sally@desfavor.com

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Comments (17)

  • Sally, Somir e Impopulares, dêem uma boa olhada neste vídeo do canal Cadê a Chave, publicado no Youtube há uma semana, em que o casal Leon e Nilce, num serviço de utilidade pública, conversam sobre a vacinação contra o Covid-19 com a epidemiologista Cristiana Toscano, que é a única brasileira do grupo de pesquisa de vacina da OMS:

    O link: https://www.youtube.com/watch?v=QdqqeqRk5sM&list=PLYHoqTjX7zMrNd7fAnUdr8Z8anqYDt2H1&index=2

    Lembando que o canal Cadê a Chave foi recomendado pela própria Sally em uma postagem de um ano atrás intitulada “Sobrevivendo à quarentena”. Ah! E, claro, já espalhei o link desse vídeo para todo mundo que eu conheço, sejam negacionistas ou não.

  • “Para dizer que vai repassar este texto para pessoas que você tem certeza de que nunca vão ler ou entender (…)” Mas eu repasso mesmo! Estou cansado de saber que, muito provavelmente, não vai adiantar muito, mas pelo menos posso ajudar a disseminar informações corretas em vez de mergulhar nesse mar de bobagens que tem circulado por aí.

  • Não sou especialista de nada, mas costumo me esforçar pra pensar.
    Pensando globalmente, vacinar uma pequena parcela da população mundial talvez não seja tão efetivo assim.
    Quanto maior for a porcentagem da população exposta ao vírus, maior é a chance de ele ter uma mutação de “sucesso”.

  • Que desânimo pensar que pode ir tudo por água abaixo essas vacinas tudo por causa dessas mutações e dessa gente que insiste em negar a pandemia e não faz por onde pro bem coletivo! Dá até vontade de migrar pra outro planeta, pena que ainda não tem como.

    Aliás, que difícil também é fazer um trabalho pesado e amplo de conscientização coletiva, pra ver se muda a cabeça desse povo pra tomar a vacina! Tristes tempos que estamos vivendo.

    • Não precisa ir para outro planeta, basta ir para um país pequeno e decente, que tenha a consciência de manter as fronteiras fechadas pelo próximo ano.

      • Com o andar da carruagem: ainda tá de pé aquela ideia de tomar o Suriname? Parece que o contágio tá caindo por lá, e a quarentena deles tem sido bem rigorosa. Ah sim, fronteiras fechadinhas, e já pegaram Br contaminado tentando evadir pra lá… Até Suriname tá servindo de prova que ser de terceiro mundo não é desculpa pra não se cuidar…

  • Dessa história da Plitidepcina eu não estava sabendo… E, com as vacinas contra o Coronavírus já à disposição – ainda que por enquanto não para todos -, quem iria preferir se medicar com um fármaco de quimioterapia que, além de caríssimo, também tem severos efeitos colaterais ?

  • Badalhocas Perdidas

    Sally, você já pensou em se candidatar a uma vaga no Departamento de Comunicação do Ministério da Saúde? Esse seu jeito de explicar as coisas seria muito útil lá.

    • Olha, eu duvido muito que competência seja um dos requisitos para contratação… Mais fácil chamarem quem fala bem de Cloroquina.

      • No Brasil, “a Terra do Contrário”, competência nunca foi requisito para contratação para uma função em um órgão público, mas um entrave.

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