Encalhado.

O navio cargueiro Evergreen está preso no Canal de Suez há 3 dias. Isso já custou cerca de 31 bilhões de dólares para o comércio global. E logo logo, custo para todos nós. Não, a pandemia não é problema suficiente…

Vamos estabelecer os elementos da história, o Canal de Suez fica no Egito, criado artificialmente em 1869 para gerar uma rota entre o Mar Vermelho e o Mediterrâneo. É a principal conexão marítima entre Ásia e Europa, mas mesmo quem faz a viagem até as Américas costuma passar por lá. A ideia é evitar dar a volta na África, o que adiciona mais de 7.000 quilômetros à viagem e ainda por cima coloca as embarcações sob risco constante de ataques de piratas.

Mas, é claro, não é como se pudéssemos simplesmente cavar o quanto quiséssemos do continente para fazer uma passagem marítima. A passagem é estreita (e foi alargada algumas vezes desde o começo) e rasa, especialmente para os monstruosos navios cargueiros que o usam diariamente. Para vocês terem uma noção, o Evergreen, que está enroscado na passagem, tem 400 metros de comprimento!

O Canal, não. O Evergreen cometeu algum erro ou deu muito azar numa tempestade de vento enquanto fazia a travessia e girou sobre o próprio eixo, fechando o canal como se fosse uma porta. Ninguém mais passa. Está rolando um boato que foi a primeira capitã mulher de cargueiros que fez isso, mas é só boato mesmo, eu já verifiquei e é uma montagem com outra notícia mais antiga. Essa não vai para a conta delas.

Boa parte do comércio mundial depende desse Canal, estima-se que um décimo dos navios cargueiros do mundo passe por ele. Tanto que se formou um mega congestionamento de navios dos dois lados, especialmente com os navios que carregam combustível vindos da Arábia Saudita e imediações. O que provavelmente significa que a sua gasolina deve ficar mais cara, de novo. Lembrando que o petróleo brasileiro não funciona com as refinarias brasileiras (sim, bizarro), ainda dependemos muito do que vem de fora.

O Canal de Suez tem 205 metros de largura e 24 metros de profundidade, cobrindo quase 200 quilômetros de uma ponta a outra. Você, ser pensante, deve estar se questionando como foi que não pensaram numa alternativa para isso, afinal, se todo dia passam cargueiros imensos por lá, já era para ter um plano B pronto faz tempo, não?

Pois é, não tem. E é por aqui que eu começo a falar do que realmente queria falar. Por um misto de falta de planejamento e principalmente custos, o mundo ao nosso redor não é tão estável quanto parece. Mês passado, o Texas (estado dos EUA) enfrentou uma tempestade de neve com recorde de temperaturas baixas. O sistema de energia de um dos lugares mais ricos do país mais rico do mundo não estava preparado para segurar o tranco de todo mundo usando aquecedor ao mesmo tempo.

Resultado: muita gente morreu de frio porque a energia acabou. No Texas. Existiam alguns sistemas de proteção e planos de contingência, que acreditem, foram feitos da forma correta, os responsáveis ativaram todas as contingências com uma semana de antecedência. Mas a margem de segurança que eles tinham era muito menor do que precisaram nos dias daquela tempestade. Até mesmo sistemas em países sérios falham quando algo sai suficientemente do script.

Não é possível que o Canal de Suez tenha passado tanto tempo sem ter um plano para lidar com um navio virado, não? Mas passou. Não é que ninguém tenha percebido que passar navios de 400 metros de comprimento por um canal de 200 metros de largura daria errado eventualmente, é que provavelmente não dava para fazer muito diferente sem gastar muitos bilhões de dólares no processo. Basicamente um “a gente se mexe quando precisar”.

A construção de canais é uma das tarefas de engenharia mais terríveis da história da humanidade. Estima-se que a do Canal de Suez tenha matado mais de cem mil trabalhadores. O do Panamá não foi muito diferente, a França tentou construir e desistiu porque as mortes de trabalhadores estavam absurdas (para o padrão europeu do século XIX), foi só quando os EUA assumiram a obra sem ligar para o número de casualidades que a coisa ficou pronta.

Quando se olha no mapa, parecem minúsculos, mas sabemos que na vida real estamos falando de dezenas ou centenas de quilômetros de terra cavada e inundada! Sim, o comércio mundial precisa deles, mas o custo é astronômico. Ainda mais hoje em dia que os salários são muito maiores e existem consequências para matar milhares de funcionários…

Tem gente dizendo que é só construir uma passagem ao lado do navio encalhado, mas esquecem que ela tem que ser enorme para que os navios cargueiros tenham qualquer chance de manobrar lá dentro. Esses navios fazem curvas de centenas de quilômetros por vez, não tem essa de virar o volante para pegar um desvio. Nunca duvide do poder da inércia quando se fala de milhões de toneladas…

E mesmo se fossem fazer isso, boa sorte cavando mais de 20 metros de solo pela distância absurda necessária para fazer essa passagem. Estão cavando um pedacinho da margem onde o navio encalhou há três dias sabendo que estão perdendo bilhões de dólares e ainda não chegaram nem perto de soltar o Evergreen. Essas obras duram anos, não dias.

Sugerem também que se desmonte o navio, mas se fizerem qualquer erro nesse processo e uma parte do navio afundar, não tem mais como tirar de lá. A única coisa evitando que muita gente se mate agora é o Evergreen ainda conseguir boiar. Se ele descer, esquece o canal por muito tempo!

No inglês tem uma expressão “too big to fail”, que significa grande demais para falhar. Mas eu adicionaria mais uma: existem coisas grandes demais para consertar. A humanidade depende de uma série de construções e sistemas interligados gigantescos, e dependendo do problema que eles enfrentarem, corremos grandes riscos de passar anos e anos lidando com as consequências de uma falha.

E trazendo esse assunto do Egito para o Brasil, podemos pensar em como o nosso sistema de saúde vai lidar com toda a pressão da pandemia. Já está colapsando, mas por incrível que pareça, as coisas ainda não desabaram no nível que realmente podem desabar. Quanto maior o sistema, maior o impacto quando algo realmente passa do ponto de não retorno.

Crise hospitalar que vira crise funerária que volta para piorar a crise hospitalar, e os sistemas vão se contaminando… pode demorar anos para retomar o controle da situação. Tem um Evergreen encalhado no meio do sistema de saúde brasileiro, o custo já está aparecendo, mas se continuarmos fazendo besteira, o navio afunda e aí não tem mais jeito. Não só a questão de não conseguirem atenderem todos os doentes, mas o efeito devastador no psicológico de médicos e enfermeiros, isso demora uma geração para resolver!

A gente se acostuma com a vida cotidiana e sem perceber começa a achar que o mundo moderno é só uma cidade ou alguns bairros que visitamos… não é. O mundo é uma série de sistemas extremamente complexos com pouca redundância em pontos chave. Um navio podia causar o caos no comércio global, uma tempestade pode derrubar o sistema de energia, uma doença pode quebrar o sistema de saúde…

Por isso, eu quero deixar o aviso: não caia na ilusão de que “logo logo passa” quando estamos falando de sistemas inteiros falhando. Não passa logo. Estamos falando de escalas gigantescas e valores astronômicos. É muito saudável para sua mente começar a considerar o longo prazo do que está acontecendo no Brasil. Porque sim, uma hora ou outra os casos começam a baixar e vai parecer que as coisas estão voltando ao normal. Não estarão, é só sua capacidade de adaptação funcionando.

Prepare-se para alguns anos de mundo pós-pandemia, isso se a gente não conseguir criar uma variação do vírus que impeça que a pandemia acabe. Claro, é pra ser bem melhor do que agora quando estivermos vacinados, mas é um melhor contaminado pela comparação. O sistema que falhou no Brasil foi um dos maiores do mundo, e isso vai ter consequências de longa duração. Não tem escapatória de curto prazo quando as coisas acontecem nessa escala.

Qual é o seu plano para os próximos 5 anos? É mais importante do que nunca ter algo planejado, porque esses anos 20 vão ser pra lá de complicados. Se a gente sair dessa pandemia com alguma coisa positiva, que seja com a capacidade de enxergar mais longe… vai fazer diferença.

Para dizer que nem neste texto dá para escapar da pandemia, para dizer que um mês a mais ou a menos no AliExpress nem faz diferença, ou mesmo para dizer que o aquecimento global vai resolver isso: somir@desfavor.com

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Comments (18)

  • Agradecendo a decisão de não termos tido filhos que hoje teriam de 5 a 8 anos.
    Continuamos com o mesmo ideal, só nós dois já é perrengue suficiente por esses tempos calamitosos.
    Ninguém tem bola de cristal, mas na época previ que o futuro seria apenas suportável, com filhos o sofrimento seria bem maior.

  • Eu li por aí – não sei se tem cara de fake news – que esses navios ficam a maior parte do tempo no piloto automático, e que o sistema do navio foi hackeado, daí encalhou. Será que procede?

  • No momento, pra mim é impossível pensar em qualquer tipo de futuro no Brasil. Nos próximos 5 anos, quero terminar a faculdade, sair daqui e me esforçar pra construir uma vida bem longe…

    Em tempo, chocada com toda essa logística do Canal de Suez. Não tinha ideia do tamanho do rolê! Não há nada tão ruim que não possa piorar rs

  • Esses jornalistas tinham que ir presos, é tanto sensacionalismo que puta que te pariu. Já teve gripe espanhola, gripe aviária, gripe suína, peste negra, ebola e o caralho aquático, mas não, o cornovírus vai acabar com a humanidade, ninguém vai conseguir criar uma vacina pra essa merda, nada vai voltar ao normal, todo mundo vai morrer de fome, novas cepas, novas ondas, gente colapsando no meio da rua.

    VÃO TOMAR NO CU!

  • Só chamar os chineses pro canal eles são ótimos em grandes obras, e resolvem rápido.
    Ou nossos coveiros, estão craques em cavar….cavar….cavar

    • O problema de chamar o chinês é que eles fazem tudo na especificação do cliente… se pedir um canal barato e rápido, eles fazem. Mas cai rápido também.

  • Se o Somir queria me deixar AINDA MAIS preocupado com o que o futuro do que eu já estava… Conseguiu! E nós também temos que ter em mente que, no Brasil, o problema não é apenas o colapso de sistemas inteiros. Há também a incompetência e corrupção generalizados que em muito atrasariam – ou até mesmo impediriam – o restabelecimento desses sistemas.

    • Normalmente quem se dá mais mal é quem é pego de surpresa. Tem gente achando que é alarmismo, na verdade é apenas reduzir margens de risco para viver mais tranquilo(a). O que está acontecendo no Brasil não é uma coisa de dois meses, é uma coisa que vai durar anos. Provavelmente não por causa da doença em si, mas pelo monte de coisa que ela quebrou no caminho.

      Saber observar o mundo como ele é faz bem. Suas chances de sucesso aumentam.

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