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Puro suco de Cloroquina…

Puro suco de Cloroquina…

| Desfavor | | 26 comentários em Puro suco de Cloroquina…

Três pacientes que receberam nebulização com cloroquina na cidade de Camaquã, região sul do Rio Grande do Sul, morreram durante o tratamento que não tem comprovação científica. As vítimas vieram a óbito entre segunda-feira, 22, e quarta-feira, 24, depois de receberem o tratamento que também não faz parte dos protocolos do Hospital Nossa Senhora Aparecida, onde eles estavam internados. LINK


O brasileiro não só erra, como consegue errar de formas cada vez mais espetaculares… Desfavor da Semana.

SALLY

A notícia escolhida é meramente ilustrativa. É possível pegar milhões de coisas que estão acontecendo no país agora para convergir com nosso ponto de vista: problemas estão acontecendo no mundo todo, mas não na mesma escala, na mesma intensidade, na mesma categoria do que está acontecendo no Brasil.

O mundo está há um ano gritando que não é para usar cloroquina contra covid. Toda semana saem estudos novos provando que não ajuda e que ainda faz mal. Cientista do mundo todo, inclusive brasileiros, se esgoelam para implorar que médicos não prescrevam essa porcaria e, ainda assim, a esta altura do campeonato, tem médico botando paciente para fazer nebulização com cloroquina! O resultado, óbvio, foi a morte dessas pessoas.

Percebem que foge a todos os parâmetros aceitáveis, humanos, minimamente decentes? Percebem que não é uma questão de “todos os lugares têm problemas?”. Perecem que no Brasil a coisa destoa de toda e qualquer média, por seu conjunto da obra?

E tem muita gente que pensa que nós falamos mal do Brasil por birra, por nos sentirmos superiores ou por qualquer outro motivo elitista. Nós tentamos apontar o problema por ser a única forma de solucioná-lo. Quem não toma consciência do problema não entende o que fazer para resolvê-lo. Nós falamos esse tipo de coisa para que quem faz a coisa certa e se sente deslocado ou frustrado saiba que não está sozinho e, acima de tudo, que não está errado.

Não é normal o que está acontecendo no Brasil, não é aceitável, não é tolerável. O país é o epicentro mundial de uma pandemia e insiste no uso de medicação que não ajuda e ainda adoece ou mata quem a toma. O sistema de saúde colapsou e está morrendo gente na fila por atendimento. Estão acabando os anestésicos. Ontem (data na qual eu escrevi este texto) o Brasil registou 3650 mortos em 24h. É tudo um grande absurdo: vacina de vento, vacina falsificada, remédio que te mata em vez de te ajudar e um povo que faz o oposto do que a ciência pede no combate ao vírus.

O Brasil já saiu do status de país que precisa de ajuda humanitária para o patamar de “ameaça mundial”. O Brasil já é o pária do mundo e quase todos os países estão com as fronteiras fechadas para ele. O mundo todo dá sinais de que o Brasil está se comportando como o idiota da vila, de forma inaceitável, de forma reprovável. E o brasileiro insiste em fazer a coisa errada, parece que cada dia com mais ênfase.

Cada um erra na sua medida. O médico prescreve cloroquina, ivermectina, azitromicina e outros que matam o paciente. O Presidente não é capaz de organizar ações de combate ao vírus e ainda propaga um discurso errado. O povo não se cuida, prioriza seu lazer e imediatismo e não faz o isolamento social que deveria ser feito. Todo mundo erra de forma cega, sem conseguir ler os avisos, sem conseguir rever sua postura. Todos marchando juntos para um precipício sem conseguir parar. São 3650 mortos por dia e a postura de ninguém mudou. O que vai precisar acontecer?

E aqui eu vou por uma via sutil que talvez seja difícil de entender: além de toda a danação práticas de viver no Brasil, existe o esforço que a pessoa mentalmente sã tem que fazer para reeducar sua mente e conseguir agir da melhor forma possível. Vou explicar com calma.

Existem consensos mundiais, diretrizes gerais comuns a todos os povos que já estão meio que no inconsciente coletivo. No Brasil isso não se aplica, pois o Brasil é um lugar bizarro que destoa de qualquer média ou normalidade. Um exemplo: a premissa mundial é a de que você deve confiar no médico, pois ele sabe mais do que você. Você não deve mentir para um médico, deve dizer toda a verdade e fazer o que ele mandar. No Brasil não, no Brasil você precisa verificar no Google, com um conhecido ou até em um blog se de fato deve obedecer ao médico ou se ele vai te matar.

Isso se aplica a milhões de premissas que não valem para o Brasil. Premissas mundiais que aprendemos que temos que ignorar. Essa reprogramação mental de ter que ficar sempre desconfiando de tudo e de todos é exaustiva, de ter que ser sempre o responsável por tudo sem poder entregar a mais mínima tarefa na mão de terceiros pois há grandes chances deles cagarem tudo. Talvez quem está nesse círculo vicioso não perceba, pois já faz no automático, mas eu lhes garanto: é exaustivo. Eu só percebi o quanto é exaustivo depois que saí do país.

Para qualquer coisa que você dependa de terceiros tem que se perguntar: será que essa pessoa está tentando tirar algum proveito de mim? Será que essa pessoa é competente o suficiente para me orientar da forma certa? Será que essa pessoa está tentando me tomar dinheiro? Será que essa pessoa está agindo em interesse próprio em detrimento dos meus interesses? Será que se eu fizer o que essa pessoa diz eu vou morrer ou me machucar? São centenas de perguntas, preocupações e medos por se tratar de um povo desonesto, filho da puta e irresponsável.

Não é normal viver com esses cuidados, o normal é confiar no médico, confiar em qualquer profissional, em qualquer prestador de serviços. O normal é que o médico não te mate. O normal é que o médico respeite a orientação de cientistas do mundo todo, da OMS, de estudos e pesquisas sérios. Não pode ser normal que um médico prescreva um medicamento que eu, uma leiga, sabe que vai te matar, que vai causar problemas no seu coração, que vai te colocar na fila do transplante de fígado. Não é normal um mundo onde blogueiros sabem mais do que médicos.

Viver assim, sem poder confiar nos demais, é um inferno. Consome energia, estressa, toma um tempo precioso da pessoa. Isso não é vida. Isso faz mal.

Para viver no Brasil você tem que ser médico (se não te medicam errado e você morre), engenheiro (se não demolem a coluna errada e o seu prédio cai), advogado (se não te passam a perna e você perde seus direitos), veterinário (se não atendem mal e matam seu pet), mecânico (se não seu carro quebra e fazem uma gambiarra para te tomar dinheiro) etc. Você tem que ser tudo, pois não dá para contar com quase ninguém.

Isso não é normal. Isso não acontece em todos os lugares. Isso não é aceitável. A sociedade brasileira vai ruir, pois nada tão podre se sustenta por muito tempo. A sociedade brasileira está se autodestruindo: quanto pior fica a pandemia, mais merda o brasileiro faz. O precipício está bem à frente de vocês e, em vez de frear, vocês estão acelerando ou arrumando desculpas para não pular do carro pois “não é tão fácil”. Sabe o que não é fácil? Cair do precipício.

Não posso oferecer uma solução para tornar o Brasil um lugar decente, mas posso te dizer que sim, é normal estar exausto, cansado, desanimado, estressado, com insônia, com dificuldades para seguir em frente. Não é frescura sua, não é falta de força de vontade, não é nada individual. É realmente um inferno viver nesse contexto brasileiro, que está cada vez mais acentuado pela pandemia.

Você está coberto de razão se está se sentindo mal, desconfortável, triste. Isso é um sintoma de normalidade. Anormais são os outros, que estão imersos nessa sociedade doente agindo como se ela fosse normal. Espero que vocês encontrem algum conforto nisso: se você está se sentindo mal, você é uma pessoa decente e consciente.

Para dizer que este texto trouxe tudo menos conforto, para dizer que nunca tinha parado para pensar em como é exaustivo viver no Brasil ou ainda para dizer que não tem forças para dizer nada: sally@desfavor.com

SOMIR

Às vezes parece que estou num conto de ficção científica: um onde o Brasil entrou num loop temporal e voltamos para o começo de 2020. Notícias como essa até fariam algum sentido quando a pandemia ainda era desconhecida, mas em março de 2021?

Onde estava essa médica nos últimos doze meses? Onde estavam os milhares de médicos ainda teimando em tratamento precoce? Onde estavam os governantes que foram pegos de surpresa com o aumento de casos depois de relaxarem todas as medidas de proteção? Não viram que as mutações de vírus eram mais perigosas? É como se 2020 não tivesse existido.

Mas existiu. E foi um ano onde seja lá o que gera esse comportamento insano do brasileiro médio, só deixou isso mais concentrado. Diante da dificuldade, os piores comportamentos desse povo foram se tornando mais e mais fortes. Sim, o brasileiro sempre foi irresponsável e teimoso, como é de costume em povos que vivem em países de baixo desenvolvimento humano; mas está há mais de um ano piorando sem parar.

Não basta achar que a maioria absoluta da comunidade médica internacional está errada e só eles estão certos, tem que inventar uma forma ainda mais danosa de aplicar cloroquina e fazer um experimento bizarro em pacientes extremamente fragilizados. É gente que está perdendo tudo e continua dobrando a aposta.

E se você está prestando um mínimo de atenção, não consegue deixar de perceber o componente político: não é como se fosse apenas a insistência numa teoria científica incomum, receitar cloroquina é um ato de posicionamento ideológico. A pessoa acha que está enfrentando o comunismo ou lutando contra a mídia manipuladora, talvez as duas coisas. Imagine só: trair seu juramento como médico e demonstrar seu posicionamento político colocando vidas em risco.

Sim, acreditam na cloroquina, mas é uma crença contaminada pela ideia de que estão “enfrentando o sistema”. Era para a pandemia ter diluído um pouco a polarização, como crises normalmente fazem, mas uma escolha política de negação lá no começo da história conseguiu prender uma boa parcela da população brasileira numa espécie de mundo paralelo, onde os problemas são inventados pela mídia para forçar seus filhos a se tornarem gays, ou algo do tipo.

Ao mesmo tempo, a costumeira displicência com a qual o brasileiro lida com questões públicas foi piorando mês após mês: sem saber no que acreditar e sem suporte do Estado, cada um decidiu sozinho o que fazer. Não podemos nos esquecer que o ser humano médio não tem o hábito ou sequer a capacidade intelectual de formular um plano próprio baseado em informações científicas comprovadas. A frase que eu acabei de escrever é basicamente ininteligível para a maioria da humanidade, não importa em que língua estiver escrita.

Sim, outros povos fizeram coisas erradas, outros governantes abriram antes da hora e mataram gente, mas o único país que parece satisfeito e disposto a errar mais e mais é o Brasil. 300.000 mil mortos (subnotificados) deve ser pouco para um povo tão brutalizado, só pode ser. É como se o Brasil fosse uma criança testando os limites dos adultos ao seu redor: quanta coisa errada podemos fazer até alguém gritar com a gente?

Não é só sobre ser o país mais incompetente do mundo na reação à pandemia, é sobre uma parcela da população parecer ter orgulho disso e uma maioria de gente que simplesmente não acha isso um problema tão grande assim. Governadores e prefeitos sabem que só tem a perder em capital político quando aplicam restrições, porque não é tanta gente assim que espera deles as medidas corretas. E pra falar a verdade, eu não duvido que uma parte desse povo que quer ver os políticos levando a pandemia a sério só estão nesse barco por causa da polarização.

Houve uma concentração de teimosia ignorante de um povo que não valoriza ciência, talvez resultado direto da exigência de aprender sobre o assunto. Alergia à racionalidade, reação adversa à exigência de consumir e processar informações corretas de fontes confiáveis. É difícil mesmo. Na situação anterior, as consequências do achismo eram menores, e isso era confortável: a pessoa podia acreditar em qualquer besteira, se sentir especial e não correr o risco imediato de morrer por causa disso.

Mas o jogo mudou: crenças estúpidas de rede social começaram a matar pessoas, ignorância científica extrema é fator de risco em pandemias. Ao invés de se adaptarem, aumentaram a aposta! Talvez se conseguirem ter crenças ainda mais absurdas e ignorantes, vençam o problema.

O resultado está aí, a pessoa chega no hospital porque não se cuidou ou porque foi contaminada por gente que não se cuidou… e a médica inventa nebulização de cloroquina para provar para o mundo que não é esquerdista! Idiocracia, versão tupiniquim. O ponto que estamos trazendo aqui é que essa concentração de insanidade e estupidez vai separando o Brasil do resto do mundo, mesmo que em tese não sejamos mais estúpidos que o resto do mundo subdesenvolvido.

O Brasil se torna pária e ameaça à saúde pública global porque vai insistindo em ser ignorante e gerando uma identidade nacional ao redor disso. Extremamente estúpidos, mas com muito orguuuulho, com muito amooooor! Sim, está ruim em vários outros países do mundo, mas nenhum deles parece tão satisfeito com o resultado como o Brasil.

Para dizer que morrer de Covid é um ato de patriotismo, para dizer que brasileiro se odeia, ou mesmo para dizer que só você – Q.I. de dois dígitos e dificuldade de entender frases longas – sabe a verdade sobre epidemiologia: somir@desfavor.com

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